quarta-feira, 20 de julho de 2016

A dolorosa morte do Padre Dimas


Por Michele Calliari Marchese

Foi no inverno seguinte ao seu sequestro e oito meses depois da nomeação do novo delegado da Campina da Cascavel. Toda a população quando acordou, percebeu a brisa gélida a entrar pelas portas das casas e um silêncio incomum adentrava impunemente em todos os corações. Pois que muitas mulheres choravam de tristeza sem saber exatamente o porquê, e as crianças queriam ficar deitadas em suas camas, apáticas, sem ânimo para as brincadeiras ou para o estudo. As pás jaziam encostadas nos galpões, pois que não se tinha vontade do trabalho e um abatimento geral assolou a cidade. O comércio não abriu naquele dia, porque todos os comerciantes assim o resolveram sem se conversar, sem darem os costumeiros “bons dias” e sem varrerem suas calçadas. Nenhum rádio foi ligado para que a música não alegrasse as almas dos que ainda viviam, nenhuma criança nasceu, nenhuma semente brotou e as árvores não balouçavam ao sabor do vento. Os animais não saíram de seus abrigos mesmo sendo livres e não havia passarinho no céu.
Todos ouviram o que não queriam ouvir jamais: o badalar mais fúnebre do sino da igreja. E conforme ele virava em seu soar, as lágrimas caíam de todos os habitantes de nossa cidade e o som daquele dia lúgubre foi ouvido muito além do que se possa imaginar porque já havia gentes de outras cidades chegando para a última homenagem ao Padre Dimas. Autoridades da capital tiveram que sair um dia antes da morte porque todos sabiam que a bondade e a justeza partiriam da Campina da Cascavel no dia seguinte. Tropas de cavaleiros aguardavam do lado de fora da igreja, todos desconhecidos e bem vestidos para as exéquias, toda a cidade estava tomada por pessoas de outros lugares, muitas carroças cheias de gentes e se podia ouvir a lástima da população muito longe, muito além dos montes que cercam nossas casas e não houve muro intransponível que não fosse sobreposto pela chegada de mais e mais pessoas. 
O Frei Leonardo não conseguia conter a emoção daquele momento, pois sabia em seu íntimo que jamais teria o brio, a coragem e o amor do Padre Dimas pelos seus amigos crentes e descrentes. Chorava carregando uma vela e o marceneiro quase não conseguia colocar o corpo do padre dentro daquele caixão; o mais bonito que fizera na vida, fazia três meses que trabalhava naquela empreitada e deixara muitos mortos sem esquife para poder dedicar-se exclusivamente ao último descanso do amigo. Terminara naquele dia e espanara o pó do caixão exatamente quando o Padre Dimas dera o último suspiro de vida. Todos sabiam.
O velório foi rezado interminavelmente pelo bispo de Chapecó, porque Frei Leonardo não tinha nenhuma condição psicológica de fazê-lo e tampouco as beatas que não rezavam a ladainha porque ela não era dita e sim sentida pelas lágrimas das almas que sofrem a perda de um ente muito amado. Assim o foi Padre Dimas, no seu incansável altruísmo, na busca do perfeito sentido de se viver, consolando, dando palavras de ajuda e de apoio incondicional a quem viesse pedir-lhe e a quem não viesse, tinha a aura dos santos, pois que convivia diariamente com as assombrações que assolam nossa pacata cidade e não houve jagunço sem perdão, doente sem oração, criança sem batismo e bicho sem proteção. 
As estradas se fecharam porque não cabia mais ninguém na cidade e o sermão de despedida foi ouvido até o Rio Uruguai, numa transmissão etérea e sagrada, pois que tudo era transmitido de boca em boca, numa singela oração em honra ao passamento do Padre Dimas.
Mesmo com a forte comoção que todos sentiam ninguém adoeceu e o sol não apareceu, pois que o brilho dos auspícios havia partido para todo o sempre.
Frei Leonardo que encabeçou a fila da despedida. Chegou muito transtornado, olhou demoradamente para aquele rosto plácido, beijou a fronte, pegou em suas mãos que estavam enroladas no terço de todo o sempre e chorou tão amargurado que lhe doíam os músculos, a garganta, e sentiu que ali se ia um ser da maior importância, da maior cultura e de bom caráter, sempre apaziguador e que nunca desacreditou uma pessoa sequer. Aquilo lhe doía tão profundamente que não queria separar-se jamais daquele homem que fora seu pai por algum tempo e lhe dera guarida nos momentos mais tenebrosos de sua existência. Foi o Júnior que tirou o Padre Dimas do abraço apertado. Ninguém queria separar-se dele.
Inevitavelmente todas as pessoas choraram em cima do caixão. E as flores que enfeitavam o esquife abriram-se o mais que podiam, porque eram lágrimas de amor a lhe banharem os caules secos. 
Muitas cartas foram deixadas em seu colo inerte e as crianças cantavam cantigas de ninar, para que ninguém ousasse conspurcar sono tão sagrado.

Foram necessários três dias para que a última pessoa pudesse chegar até o corpo do Padre Dimas para dar-lhe comovidamente, o seu amoroso adeus.

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