quarta-feira, 8 de junho de 2016

Um jantar em família


Por Michele Calliari Marchese

Ela sentou-se numa ponta da mesa e o marido na outra ponta, rodeados por filhos, noras, genros e netos. Uma verdadeira balbúrdia de conversas entre si e crianças gritando pedindo comida e refrigerante. Sempre fora contra os refrigerantes e nem sabia bem ao certo o motivo. Era contra e ponto final, uma das coisas que não abria mão era ser contra o refrigerante, talvez, pensou, para que os filhos pudessem discutir com ela sobre alguma coisa, mesmo que não pudesse muitas vezes acompanhá-los em suas conversas monótonas sobre empreendimentos, finanças e políticas, gostava de responder com um "sim" sempre que lhe perguntavam a sua opinião, e a respeito dos refrigerantes –um já tinha acabado; o que bebem essas crianças– poderia discutir acirradamente com cada um deles tendo a propriedade de mãe de todos e a idade que incutia algum respeito.
Mexeu com o garfo no arroz à grega que jazia no canto do prato e olhou para o marido na outra ponta e se questionou quando foi que se afeiçoou a ele, em que momento aconteceu isso e de que jeito. "Decrépito". E o marido olhou-a naquele exato momento em que pensara decrépito e achou que falara em voz alta e o marido ali a perscrutar-lhe a alma como que ouvindo o que pensara naquele momento em que mexia no arroz à grega. “Mas ele é tão bonito, mesmo em seus setenta anos”, pensou, colocando uma garfada de arroz na boca e mastigando sem vontade, não gostava quando ele a olhava daquele modo e baixou o olhar virando para um de seus filhos que sentava a seu lado. Tentou ouvir o que dizia aquele filho ao filho dele, que maneirasse no refrigerante já que a avó não gostava e o pequeno redarguia com muitos argumentos que passavam a semana tomando suco de caixinha e que nos jantares e almoços bem podiam tomar refrigerante.
Ela fez questão de se desviar para uma das noras que sentava do seu outro lado, porém ela estava tão cabisbaixa a remexer na comida, tão aérea quanto ela própria e pensou no "mote" que levara o filho a se casar com aquela ali, tão sem graça, tão dependente, tão sem filhos e tão desmotivada na vida e olhou novamente para o marido do outro lado da mesa se servindo da salada. Fora ele quem lhe motivou em seus pensamentos mais destruidores quando perdeu um filho na barriga, chorava demais e ela pensou que deveria –como mulher– consolá-lo porque afinal a perda tinha sido dos dois e não somente dela. Estaria com 34 anos aquele filho perdido e uma tempestade de tristeza abocanhou a sua alma, teriam mais quantas cadeiras naquela mesa imensa? Com quem se casaria aquele filho ido? Quantos filhos teria? "Decrépito" pensou mais uma vez, e na decrepitude dele encontrou a segurança do seu viver, fora ele a levantar-lhe da cama suja de sangue, fora ele a levar-lhe ao médico para ouvirem abraçados, que aquele filho não existiria jamais. Já tinha nome o pobrezinho. Marco Antônio. Nunca mais pudera colocar esse nome em algum outro filho vindouro, era uma conspurcação. 
O frango estava frio e levantou-se para ligar o forno e aquecê-lo, não gostava de frangos frios e um neto a tirou do estupor pedindo mais refrigerante e ela lhe respondeu que pegasse na geladeira, afinal havia ouvido daquele outro neto que só tomavam suco de caixinha durante a semana e provavelmente aquele que estava ali a lhe puxar a blusa feita para aquele jantar, também. Arrumou a blusa para dentro da calça, já que o neto havia tirado para chamar-lhe a atenção, e sentiu a presença contrastante do marido a seu lado; se por um momento sentia toda a juventude naquela beleza infantil do pequeno, por outro lado sentiu a morte a lhe rodear pedindo-lhe se ela queria que ele ligasse o forno para que ela não se atrapalhasse em atender os netos e aquecer o frango. "Sim", respondeu como sempre respondia, mas afinal, tinha que responder sempre sim, sim, sim, sim? Sim, tinha que fazer isso e por que não? Ele estava sendo prestativo e o tinha sido pela vida inteira; no ano que vem fariam cinquenta anos de casados e o que tinha de mal dizer sim para que ele ligasse o forno? Nenhum, decerto.
Sentou-se em sua cadeira e pensou que aquela nora grávida estava comendo além da conta e não admiraria se parisse naquela noite; mais uma neta, três ao todo e de netos perdeu a conta, eles corriam tanto que não era possível contar fisicamente aquelas crianças ansiosas. Colocou a mão no queixo enquanto brincava com a comida, resolveu entrar na conversa do filho que sentava do seu lado, mas a conversa era a mesma de muito tempo atrás e mais alguns litros de refrigerantes vazios eram amontoados num canto da cozinha para que fossem jogados no lixo mais tarde e ela fechou os olhos por um instante e abriu quando o marido gritou naquela voz de amante de toda a vida que o frango estava quente e que comessem logo para não esfriar.
Olhou como ele empurrava as pessoas para o lado para que pudesse colocar o frango quente na mesa e de como essas mesmas pessoas riam da atitude dele como pai, como família, tão amoroso e tão... decrépito.
Em que momento houve o amor, pensou e teve que olhar para o lado porque aquela nora cabisbaixa chorava; a outra sentia as dores do parto fazendo com que todos se levantassem em alvoroço e o marido que gritava "está na hora, está na hora" e as crianças que se enfiaram debaixo da mesa para cutucar os pés dos que ainda estavam sentados e então se levantou também a olhar para o marido como a dizer, deixa que eles se virem com isso e acompanhou todos até a porta ficando sós com aquelas pessoas ao seu redor. Entendeu porque a nora cabisbaixa chorava. Chorou também e o marido abraçou-a e os netos assustaram-se e houve muito mais tempo perdido consolando os netos do que remediando aquelas lágrimas de mulher sentida.
Pediria ao marido que esquentasse o frango novamente.

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3 comentários:

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