quarta-feira, 29 de junho de 2016

A Diarista


Por Helena Frenzel

Meus mais íntimos temores estariam ainda ocultos não tivesse atendido ao telefone naquela manhã. Se do outro lado do fio um vozinha fina não tivesse perguntado: "Vem daí o anúncio de 'procura-se...'?" e se eu não tivesse logo cortado e dito: "Sim, foi daqui mesmo" e marcado às dez do dia seguinte para acertos e apresentações, teria há muito deixado de escrever. 

Assim Creuza entrou em minha vida, e mal sabia eu que a teria virada "de pernas pra arriba" –a vida, que fique bem claro, pois que a jovem... – bem, a jovem confirmou o que eu havia imaginado ao telefone: séria, corpo miúdo, cabelo virgem de qualquer alisamento, negro e em estado natural, pelo menos pareceu-me; uma mínima falha nos dentes da frente, brancos, que ela tentava esconder ao falar, lábios roxos e carnudos, tingidos levemente de batom escuro. Vestia-se simples e decentemente: camiseta branca, tênis, jeans, nada de pele excessiva à mostra como as famosas do Funk. Nos cabelos, uma tiara barata e um elástico prendendo-os para trás num farto crespo rabo de cavalo. Contratada com carteira assinada, –coisa rara em Fufu Lalau–, começaria o serviço na semana seguinte. 

E chegou pontual. Casa de homem solteiro, ex-casado mas não só, serviço havia a dar com o pau. Uma das visitas femininas das mais recorrentes insistira para que eu limpasse o local, ou mandasse limpar, sob pena de não voltar nunca mais à pocilga. Eu escrevia resmas e fumava maços, lia aos montes e aos borbotões. A princípio eu queria deixar a casa livre nos dias de faxina, mas a pressão para concluir um livro obrigava-me a usar todo o tempo que ainda tivesse para tentar escrever. Não sei escrever livre, preciso das algemas do meu canto para que minhas palavras possam voar. E como as invejo, leves como nascem, enquanto eu me vejo com meu corpo pesado, tão preso ao chão, ao bolor dos anos e à poeira dos padrões. 

Um dia eu estava lendo e ela, de início tímida, resolveu falar: "Sei que o senhor é escritor. Li todos os seus livros já." "Mesmo?", respondi surpreso (ela vivia numa favela.  E veja o leitor o meu preconceito!). "E gostou?", perguntei. Daí ela soltou-se: "Gostei de alguns; já de outros, gostei não. Os últimos foram repetições dos primeiros, o mesmo molde." Tossi de susto e no meio do pigarro perguntei: "Como é que é?!". 

"O Seôr me discurpe", ela prosseguiu, "mas seus personagens carecem de tutano, a gente até espera que eles comecem a respirar a qualquer momento passada a metade do livro, mas daí se chega ao final e nada, nem uma marca pra lembrar deles depois. E sabe por quê? Porque nunca existiram, nem na sua cabeça, sequer um nome forte eles têm, como Teresa Batista ou Diadorim, por exemplo, só umas descrição sem cor. Discurpe a sinceridade, o Seôr tem talento mas carece de um pouco mais de sal. É o que eu acho!" 

Faxineira metida a crítica, era só o que me faltava acontecer! –E veja o leitor o meu preconceito outra vez–, mas no instante da explosão contive-me e soltei: "Até que série você estudou mesmo?" "Até a quinta. E o Seôr é dôtor pela John Bostikins, o seu diploma eu acabei de ver ali ó:" e apontou para a parede. Então não dissemos mais nada, ajeitei os óculos, afundei na poltrona e voltei a ler. Ela terminou o serviço, pegou o envelope que eu havia deixado sobre a mesa, com o pagamento do dia, e se foi. Voltou calmamente na próxima semana, dirigiu-me o olhar e depois a palavra ao ver sobre a mesa o jornal. No suplemento literário havia uma crítica sobre o meu último romance, há muito tempo ninguém se dignava a escrever sobre meus livros. "Agora o Seôr me crê?”, ela disse, "Eu e esse crítico aqui pensamos do mesmo jeitinho. Só que ele é dôtor de Letras e eu, não.” "Tem fundamento", respondi seco prendendo a respiração até me perder num preso riso que, ao final, acabou me libertando. "Sim, mas o que você não gostou mesmo nos meus livros? Sente aqui e me conte, talvez eu possa melhorar". 

Daquele dia em diante passamos a conversar sobre tudo. Ela gostava muito de ler e tinha idéias impressionantes, expressas sem o capuz da erudição. Era uma pessoa simples, me arrisco a dizer, mas nada comum; e era muito bem informada sobre os contemporâneos. "Trabalhei já para muita gente que gosta de ler", ela explicou-me. "Ganho muitos livros, tomo emprestado, leio tudo o que acho dando sopa por aí. Tem gente que pra falar de um livro se vale de opiniões alheias, se vale das 'otoridades', já eu me valho do que vi no texto, nada mais. Todo mundo pensa diferente, por que não poderia ter minha própria opinião? E lhe digo uma coisa, Seu Alberto: ninguém conhece melhor a vida dos patrões do que os empregados, ou seja: o que eles gostam de ler, o que comem, quem são os amigos, as intimidades, enfim... As pessoas não acreditam quando eu digo que leio muito porque eu continuo falando sem frescura, assim, sem enrolação, até gíria mermo, mas se eu começar a falar embotado não conseguirei mais me comunicar com os meus, o Seô mi intende? Basta então!" 

Com o tempo, fui adquirindo confiança a ponto de deixá-la até ler meus originais. "Olhe, Seu Alberto, aqui tem uma falha: esse menino programa o computador do pai na página 85, mas na 37 está mostrado que ele não sabia nem somar. Faz sentido isso, o Seôr acha? E a linguagem que o Seôr usa não combina com ele não, tá falando certinho demais para quem é de gang." 

E assim seguimos até que eu comecei a vender mais livros, ganhar prêmios e até fui convidado para ser colunista em jornais e revistas literários, meus livros haviam ganho bons olhos da crítica, o que muito me surpreendeu e fez sonhar com uma renovação literária em Fufu Lalau, até pensei que o talento fosse meu de fato. Então pedi que ela viesse outros dias, ao que ela respondeu: "Não posso, na quarta tem o Murilo Rufino, na quinta a Adélia Pinto, na sexta o Jorge Botelho, na segunda o Antônio Ribeiro" –todos escritores famosos, premiados como eu–, "na terça tem o Seôr mermo e o fim de semana é sagrado, é o tempo que eu tiro pra mim", piscou um olho sorrindo e seguiu faxinando. Do quebra cabeças que eu vinha montando tive uma imagem espantosa: de volta à pocilga, e sem talismãs? Pra lá!!




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2 comentários:

  1. Oi, Helena. Que ótimo conto. Escritor e leitor precisam um do outro para ser livro. Adorei. Vou tentar comentário pelo celular neste Blog para ver se funciona. Meriam

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