quarta-feira, 29 de junho de 2016

A Diarista


Por Helena Frenzel

Meus mais íntimos temores estariam ainda ocultos não tivesse atendido ao telefone naquela manhã. Se do outro lado do fio um vozinha fina não tivesse perguntado: "Vem daí o anúncio de 'procura-se...'?" e se eu não tivesse logo cortado e dito: "Sim, foi daqui mesmo" e marcado às dez do dia seguinte para acertos e apresentações, teria há muito deixado de escrever. 

Assim Creuza entrou em minha vida, e mal sabia eu que a teria virada "de pernas pra arriba" –a vida, que fique bem claro, pois que a jovem... – bem, a jovem confirmou o que eu havia imaginado ao telefone: séria, corpo miúdo, cabelo virgem de qualquer alisamento, negro e em estado natural, pelo menos pareceu-me; uma mínima falha nos dentes da frente, brancos, que ela tentava esconder ao falar, lábios roxos e carnudos, tingidos levemente de batom escuro. Vestia-se simples e decentemente: camiseta branca, tênis, jeans, nada de pele excessiva à mostra como as famosas do Funk. Nos cabelos, uma tiara barata e um elástico prendendo-os para trás num farto crespo rabo de cavalo. Contratada com carteira assinada, –coisa rara em Fufu Lalau–, começaria o serviço na semana seguinte. 

E chegou pontual. Casa de homem solteiro, ex-casado mas não só, serviço havia a dar com o pau. Uma das visitas femininas das mais recorrentes insistira para que eu limpasse o local, ou mandasse limpar, sob pena de não voltar nunca mais à pocilga. Eu escrevia resmas e fumava maços, lia aos montes e aos borbotões. A princípio eu queria deixar a casa livre nos dias de faxina, mas a pressão para concluir um livro obrigava-me a usar todo o tempo que ainda tivesse para tentar escrever. Não sei escrever livre, preciso das algemas do meu canto para que minhas palavras possam voar. E como as invejo, leves como nascem, enquanto eu me vejo com meu corpo pesado, tão preso ao chão, ao bolor dos anos e à poeira dos padrões. 

Um dia eu estava lendo e ela, de início tímida, resolveu falar: "Sei que o senhor é escritor. Li todos os seus livros já." "Mesmo?", respondi surpreso (ela vivia numa favela.  E veja o leitor o meu preconceito!). "E gostou?", perguntei. Daí ela soltou-se: "Gostei de alguns; já de outros, gostei não. Os últimos foram repetições dos primeiros, o mesmo molde." Tossi de susto e no meio do pigarro perguntei: "Como é que é?!". 

"O Seôr me discurpe", ela prosseguiu, "mas seus personagens carecem de tutano, a gente até espera que eles comecem a respirar a qualquer momento passada a metade do livro, mas daí se chega ao final e nada, nem uma marca pra lembrar deles depois. E sabe por quê? Porque nunca existiram, nem na sua cabeça, sequer um nome forte eles têm, como Teresa Batista ou Diadorim, por exemplo, só umas descrição sem cor. Discurpe a sinceridade, o Seôr tem talento mas carece de um pouco mais de sal. É o que eu acho!" 

Faxineira metida a crítica, era só o que me faltava acontecer! –E veja o leitor o meu preconceito outra vez–, mas no instante da explosão contive-me e soltei: "Até que série você estudou mesmo?" "Até a quinta. E o Seôr é dôtor pela John Bostikins, o seu diploma eu acabei de ver ali ó:" e apontou para a parede. Então não dissemos mais nada, ajeitei os óculos, afundei na poltrona e voltei a ler. Ela terminou o serviço, pegou o envelope que eu havia deixado sobre a mesa, com o pagamento do dia, e se foi. Voltou calmamente na próxima semana, dirigiu-me o olhar e depois a palavra ao ver sobre a mesa o jornal. No suplemento literário havia uma crítica sobre o meu último romance, há muito tempo ninguém se dignava a escrever sobre meus livros. "Agora o Seôr me crê?”, ela disse, "Eu e esse crítico aqui pensamos do mesmo jeitinho. Só que ele é dôtor de Letras e eu, não.” "Tem fundamento", respondi seco prendendo a respiração até me perder num preso riso que, ao final, acabou me libertando. "Sim, mas o que você não gostou mesmo nos meus livros? Sente aqui e me conte, talvez eu possa melhorar". 

Daquele dia em diante passamos a conversar sobre tudo. Ela gostava muito de ler e tinha idéias impressionantes, expressas sem o capuz da erudição. Era uma pessoa simples, me arrisco a dizer, mas nada comum; e era muito bem informada sobre os contemporâneos. "Trabalhei já para muita gente que gosta de ler", ela explicou-me. "Ganho muitos livros, tomo emprestado, leio tudo o que acho dando sopa por aí. Tem gente que pra falar de um livro se vale de opiniões alheias, se vale das 'otoridades', já eu me valho do que vi no texto, nada mais. Todo mundo pensa diferente, por que não poderia ter minha própria opinião? E lhe digo uma coisa, Seu Alberto: ninguém conhece melhor a vida dos patrões do que os empregados, ou seja: o que eles gostam de ler, o que comem, quem são os amigos, as intimidades, enfim... As pessoas não acreditam quando eu digo que leio muito porque eu continuo falando sem frescura, assim, sem enrolação, até gíria mermo, mas se eu começar a falar embotado não conseguirei mais me comunicar com os meus, o Seô mi intende? Basta então!" 

Com o tempo, fui adquirindo confiança a ponto de deixá-la até ler meus originais. "Olhe, Seu Alberto, aqui tem uma falha: esse menino programa o computador do pai na página 85, mas na 37 está mostrado que ele não sabia nem somar. Faz sentido isso, o Seôr acha? E a linguagem que o Seôr usa não combina com ele não, tá falando certinho demais para quem é de gang." 

E assim seguimos até que eu comecei a vender mais livros, ganhar prêmios e até fui convidado para ser colunista em jornais e revistas literários, meus livros haviam ganho bons olhos da crítica, o que muito me surpreendeu e fez sonhar com uma renovação literária em Fufu Lalau, até pensei que o talento fosse meu de fato. Então pedi que ela viesse outros dias, ao que ela respondeu: "Não posso, na quarta tem o Murilo Rufino, na quinta a Adélia Pinto, na sexta o Jorge Botelho, na segunda o Antônio Ribeiro" –todos escritores famosos, premiados como eu–, "na terça tem o Seôr mermo e o fim de semana é sagrado, é o tempo que eu tiro pra mim", piscou um olho sorrindo e seguiu faxinando. Do quebra cabeças que eu vinha montando tive uma imagem espantosa: de volta à pocilga, e sem talismãs? Pra lá!!




© 2016 Blog Sem Vergonha de Contar. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Buscando o Nirvana


Por Michele Calliari Marchese

Como todo mundo sabe, o Nirvana é a superação do desapego dos sentidos, do material e da ignorância; tanto como a superação da existência, a pureza e a transgressão do físico. Simplíssimo.
A Dona Miraflor também pensou assim e tratou de executar seu plano.
O Bartolomeu era um homem de muitas posses aqui na Campina da Cascavel, porém muito pão duro; a avareza ditava seus passos e acumulava fortuna cada vez maior. Ninguém na casa aproveitava tão lauto recurso, viviam praticamente na miséria e a Dona Miraflor, sua esposa, não se conformava de somente suspirar ao passar em frente à loja de roupas e calçados.
Aquilo soava como uma injustiça para quem não podia comprar quase nada, sabendo que poderia comprar quase tudo.
Um dia, lendo uma revista antiga que achou na lixeira do vizinho, Dona Miraflor encontrou várias páginas que versavam sobre o Budismo e sobre o Nirvana. Leu com avidez e releu inúmeras vezes. Tratou de exercitar o desapego e praticar uma espécie de isolamento meditativo. Passava horas debaixo de um ipê, contemplando seu ser e de olho no marido, que parecia não notar o esforço inaudito para alcançar a superação.
O marido só notou a diferença quando chegou a casa para almoçar e a comida estava queimada. E ainda teve que ouvir, entre choros e lamentações, que o alimento para o fortalecimento da alma não era só aquele servido na mesa, e sim algo muito maior e que era encontrado dentro de cada um, através de reflexão.
Bartolomeu, morto de fome, ficou pensando no dito da mulher e comeu o que jazia nas panelas pretas para não desperdiçar e pediu que ela falasse mais sobre o assunto e o porquê de tanto silêncio. Ela contou tudo e disse estar determinada em encontrar a paz interior, o Nirvana, e chorou que sozinha a empreitada estava muito difícil e que para um bem maior seria necessário que ele também participasse naquele empenho de felicidade.
Ele topou com um pé na frente e outro atrás, não envolvia dinheiro de modo que não custava nada satisfazer uma bobagem da mulher. Por incrível que pareça ele gostou do processo e comprou alguns livros sobre o assunto, que demoraram muito a chegar.
O maior defeito do Bartolomeu era a avareza, mas como estava tudo guardado num banco não se preocupou com gastos e despesas –que eram mínimas– e pôde juntar-se à Miraflor no duro trabalho da superação do desapego. 
Aconteceu que num determinado momento a esposa voltou aos seus afazeres domésticos, deixando o marido sozinho em seus mais íntimos pensamentos e ele, resoluto, abdicou de muitas das coisas que lhe davam prazer. Leu todos os livros que chegaram e quando estava na penúltima página do segundo livro a esposa lhe apareceu com algum documento sem importância para assinar, afinal, ela não queria incomodá-lo com coisas vãs e terrenas. Ele assinou, questionando o porquê do tinteiro existir, e ficou extremamente chocado com a pena que empunhara para escrever seu nome naquele papel, deixando despenado algum pato qualquer. Teria que superar essa angústia.
Pois bem, numa noite qualquer, Dona Miraflor sugeriu-lhe que dormisse em outro quarto para que o seu ronco não atrapalhasse suas funções contemplativas da alma e ele aceitou, afinal, estava feliz.
A Dona Miraflor era a mulher mais feliz do mundo, com aquele papel assinado, conseguira sacar dinheiro do banco e satisfazer suas mais mundanas ambições. Encheu o quarto com roupas e calçados novos, desfilava na sociedade como era de seu direito e sempre com os cabelos enrolados, os quais eram feitos antes de dormir, com bobes especiais que ela mandara buscar na capital. Viajava para todos os lugares possíveis e imagináveis sem que o marido percebesse a sua ausência. Havia atingido o seu antinirvana enquanto ele estava prestes a doar o terreno dos fundos da casa para a construção de uma escola.
O Bartolomeu além de desapegado de sentimentos estava desapegado do olfato, porque era impossível alguém não saber quando a Dona Miraflor estava chegando com todo aquele cheiro de jasmim que emanava. Desapegou-se inclusive das faculdades óticas e só sabia murmurar “ooouuummmmmm” pelos cantos da casa, geralmente sentado no chão, com a barba por fazer e cheirando a suor.
O causo culminou no dia em que chamara o prefeito, numa ocasião mais que especial para a assinatura da doação das terras para a construção da escola e do ginásio de esportes –que ele construiria com seu dinheiro. Aconteceu que o tabelião não aceitou a transferência do bem, por causo de que já estava empenhado no banco para saldar dívidas contraídas.
Pediu dos outros bens e obteve a mesma resposta, e o pior de tudo é que não podia fazer absolutamente nada a não ser pagar. Era o fim do mundo e do seu tão sonhado Nirvana. Esqueceu o amor pelos bichos assim que soube a cifra devedora, a felicidade da alma escorreu pelo ralo quando escutou não haver muito que fazer a não ser decretar falência. Olhou para a mulher que jazia em posição de lótus no meio da sala de jantar entoando cânticos de amor e tudo o que aprendera sobre desapego sumiu nas brumas do esquecimento.
Saiu porta afora para coordenar seus pensamentos, que a essa altura estavam bem conturbados. A primeira atitude a ser tomada –assim pensava ele– era o divórcio. Demoraria, mas não tinha pressa, aprendera bem direitinho a lição. Metade das dívidas recairia para a sua esposa gastadeira antinirvana. A esse raciocínio ficou louco de raiva e mais ainda quando foi tirar satisfações com a mulher que já estava no quarto, trancada. Arrombou a porta com um pontapé e viu coisas tão maravilhosas e brilhantes que se apavorou. 
Pegou tudo o que reluzia diante da choradeira interminável de Miraflor. Levou-a pelo braço até o tabelião e a fez assinar a separação com milhares de testemunhas. Descobriu-se até um amante da dita cuja por lá, que se apressou em assinar os papéis.
Feliz, Bartolomeu voltou para casa e não deixou Miraflor entrar. Que fosse embora, em definitivo, sem nada para meditar sobre seu mirabolante plano nirvanístico. Pegou as joias que nunca dera e conseguiu saldar a sua metade das dívidas. Tacou fogo nos livros que lera para a contemplação do ser, a superação dos sentidos e tudo o mais de lindo que existe no universo. 
E então, finalmente atingira o Nirvana. 


© 2016 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a). 

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Dos ditos e suas origens: pôr a mão no fogo por alguém


Por Helena Frenzel

Rolf-Bernhard Essig contou-me, em um de seus livros, a origem da expressão "pôr a mão no fogo por alguém". 

Dizem que se passou o seguinte: no ano 508 d.C. a cidade de Roma se encontrava sitiada pelos Etruscos. A coisa não estava favorável aos romanos, de modo que, numa noite, um jovem corajoso chamado Gaius Mucius conseguiu escapar do cerco e aproximar-se da tenda do rei etrusco. Ficou por lá quietinho esperando uma oportunidade para pôr em prática o seu plano. Num certo momento, dois homens saíram da tenda, um deles fez um pagamento ao outro. Como Gaius não sabia qual dos dois era o rei, decidiu atacar com sua espada o homem que havia dado o dinheiro. Ledo engano: era o tesoureiro. Gaius Mucius foi preso e mais tarde, diante do rei Porsenna, admitiu que queria matá-lo para livrar sua cidade do cerco. 

O rei se surpreendeu com a ousadia do romano e perguntou: "Escuta aqui, vocês romanos são todos assim, corajosos?" Em vez de responder logo, Gaius Mucius esticou a mão direita e alcançou a chama de uma vela que ardia bem à sua frente e ficou aguentando a queimadura sem dar um pio, ao final retirou a mão e disse: "Todos os romanos são corajosos. Eu sou apenas um dos mais de trezentos que estão só esperando uma oportunidade pra te matar, ó rei". 

O rei, diante daquele gesto, ficou com muito medo, mandou soltar Gaius e desistiu do cerco. Os romanos receberam Gaius como herói e passaram a chamá-lo "Scaevola", que significa "Mão esquerda", a mão que não tinha marcas de queimadura. Por causa desse episódio dizem que surgiu a expressão "pôr a mão no fogo por alguém". 

Porém, Rolf nos informa que essa expressão teve também suas origens nas práticas religiosas medievais. As pessoas, naquela época, costumavam considerar sem culpa quem conseguisse meter a mão no fogo sem se queimar, se é que isso é possível. E na Bíblia há também o relato de uma prova que se pode fazer para testar a pureza de certas coisas: o que for ouro brilha no fogo, já o que for palha... Então quando alguém acreditava piamente na inocência de outra pessoa, poderia "colocar a mão no fogo" por ela. 

As coisas em Fufu Lalau estão cada vez mais „medievais“, por isso não me surpreenderia se logo voltassem a queimar livros e pessoas (principalmente as mulheres, consideradas as „bruxas“ de sempre) em praça pública. Sim, mas bom mesmo seria se a tal da "justicia" passasse a fazer o teste da mão: "Vossa Excelência põe a mão no fogo por sua inocência, põe?" Menino, e se as  „excelências“ pusessem as mãos, se tivessem pelo menos a coragem… seria o maior churrasco que Fufu Lalau já viu!

Referência: Rolf-Bernhard Essig (2011): Alles für die Katz - Die lustigen Geschichten hinter unseren Redensarten, Hanser, Munique.




© 2016 Blog Sem Vergonha de Contar. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Um jantar em família


Por Michele Calliari Marchese

Ela sentou-se numa ponta da mesa e o marido na outra ponta, rodeados por filhos, noras, genros e netos. Uma verdadeira balbúrdia de conversas entre si e crianças gritando pedindo comida e refrigerante. Sempre fora contra os refrigerantes e nem sabia bem ao certo o motivo. Era contra e ponto final, uma das coisas que não abria mão era ser contra o refrigerante, talvez, pensou, para que os filhos pudessem discutir com ela sobre alguma coisa, mesmo que não pudesse muitas vezes acompanhá-los em suas conversas monótonas sobre empreendimentos, finanças e políticas, gostava de responder com um "sim" sempre que lhe perguntavam a sua opinião, e a respeito dos refrigerantes –um já tinha acabado; o que bebem essas crianças– poderia discutir acirradamente com cada um deles tendo a propriedade de mãe de todos e a idade que incutia algum respeito.
Mexeu com o garfo no arroz à grega que jazia no canto do prato e olhou para o marido na outra ponta e se questionou quando foi que se afeiçoou a ele, em que momento aconteceu isso e de que jeito. "Decrépito". E o marido olhou-a naquele exato momento em que pensara decrépito e achou que falara em voz alta e o marido ali a perscrutar-lhe a alma como que ouvindo o que pensara naquele momento em que mexia no arroz à grega. “Mas ele é tão bonito, mesmo em seus setenta anos”, pensou, colocando uma garfada de arroz na boca e mastigando sem vontade, não gostava quando ele a olhava daquele modo e baixou o olhar virando para um de seus filhos que sentava a seu lado. Tentou ouvir o que dizia aquele filho ao filho dele, que maneirasse no refrigerante já que a avó não gostava e o pequeno redarguia com muitos argumentos que passavam a semana tomando suco de caixinha e que nos jantares e almoços bem podiam tomar refrigerante.
Ela fez questão de se desviar para uma das noras que sentava do seu outro lado, porém ela estava tão cabisbaixa a remexer na comida, tão aérea quanto ela própria e pensou no "mote" que levara o filho a se casar com aquela ali, tão sem graça, tão dependente, tão sem filhos e tão desmotivada na vida e olhou novamente para o marido do outro lado da mesa se servindo da salada. Fora ele quem lhe motivou em seus pensamentos mais destruidores quando perdeu um filho na barriga, chorava demais e ela pensou que deveria –como mulher– consolá-lo porque afinal a perda tinha sido dos dois e não somente dela. Estaria com 34 anos aquele filho perdido e uma tempestade de tristeza abocanhou a sua alma, teriam mais quantas cadeiras naquela mesa imensa? Com quem se casaria aquele filho ido? Quantos filhos teria? "Decrépito" pensou mais uma vez, e na decrepitude dele encontrou a segurança do seu viver, fora ele a levantar-lhe da cama suja de sangue, fora ele a levar-lhe ao médico para ouvirem abraçados, que aquele filho não existiria jamais. Já tinha nome o pobrezinho. Marco Antônio. Nunca mais pudera colocar esse nome em algum outro filho vindouro, era uma conspurcação. 
O frango estava frio e levantou-se para ligar o forno e aquecê-lo, não gostava de frangos frios e um neto a tirou do estupor pedindo mais refrigerante e ela lhe respondeu que pegasse na geladeira, afinal havia ouvido daquele outro neto que só tomavam suco de caixinha durante a semana e provavelmente aquele que estava ali a lhe puxar a blusa feita para aquele jantar, também. Arrumou a blusa para dentro da calça, já que o neto havia tirado para chamar-lhe a atenção, e sentiu a presença contrastante do marido a seu lado; se por um momento sentia toda a juventude naquela beleza infantil do pequeno, por outro lado sentiu a morte a lhe rodear pedindo-lhe se ela queria que ele ligasse o forno para que ela não se atrapalhasse em atender os netos e aquecer o frango. "Sim", respondeu como sempre respondia, mas afinal, tinha que responder sempre sim, sim, sim, sim? Sim, tinha que fazer isso e por que não? Ele estava sendo prestativo e o tinha sido pela vida inteira; no ano que vem fariam cinquenta anos de casados e o que tinha de mal dizer sim para que ele ligasse o forno? Nenhum, decerto.
Sentou-se em sua cadeira e pensou que aquela nora grávida estava comendo além da conta e não admiraria se parisse naquela noite; mais uma neta, três ao todo e de netos perdeu a conta, eles corriam tanto que não era possível contar fisicamente aquelas crianças ansiosas. Colocou a mão no queixo enquanto brincava com a comida, resolveu entrar na conversa do filho que sentava do seu lado, mas a conversa era a mesma de muito tempo atrás e mais alguns litros de refrigerantes vazios eram amontoados num canto da cozinha para que fossem jogados no lixo mais tarde e ela fechou os olhos por um instante e abriu quando o marido gritou naquela voz de amante de toda a vida que o frango estava quente e que comessem logo para não esfriar.
Olhou como ele empurrava as pessoas para o lado para que pudesse colocar o frango quente na mesa e de como essas mesmas pessoas riam da atitude dele como pai, como família, tão amoroso e tão... decrépito.
Em que momento houve o amor, pensou e teve que olhar para o lado porque aquela nora cabisbaixa chorava; a outra sentia as dores do parto fazendo com que todos se levantassem em alvoroço e o marido que gritava "está na hora, está na hora" e as crianças que se enfiaram debaixo da mesa para cutucar os pés dos que ainda estavam sentados e então se levantou também a olhar para o marido como a dizer, deixa que eles se virem com isso e acompanhou todos até a porta ficando sós com aquelas pessoas ao seu redor. Entendeu porque a nora cabisbaixa chorava. Chorou também e o marido abraçou-a e os netos assustaram-se e houve muito mais tempo perdido consolando os netos do que remediando aquelas lágrimas de mulher sentida.
Pediria ao marido que esquentasse o frango novamente.

© 2016 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a).

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Imersão


Por Helena Frenzel


"O feijão vai ficar sem gosto, já te falei pra usa Knorr e abóbora, nada de beringela no cozido; e beringela é com "gê" e também com "jota", já te disse não sei quantas vezes e pra isso tem corretor". 

"Como?!"

"Vê lá se não chega tarde que o filme começa às cinco e depois das oito é correr pra casa e pôr os meninos na cama. É, eles vão ficar brincando até caírem de cansaço, todo dia é o mesmo... "

"Fato!" 

E o problema é a prova dos trinta minutos que ela tem para escrever o texto perfeito numa língua que não é a dela, mais uma entre tantas que nunca foi nem nunca será e ela nem quer que seja ou queria que fosse, nem mesmo nunca sonhou, apenas deseja entender e falar melhor, mais claro. 

"É que tudo cai nas costas da gente não porque seja mãe mas porque a gente é besta", disse a vizinha do duzentos e três (se seria duzentos e quatro ela não sabe nem lembra) porque ser besta é algo maior que ser homem ou mulher, porque besta é animal dócil, nem mesmo se rebela à fina corda que a prende ao lugar de pastar: o pasto.

"Comida é pasto, bebida é água. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?" ela é uma titã desvairada, ela quer diversão, família e arte, quer ser ela mesma e quer ter tudo em qualquer parte, vestir-se (ou não) como quiser, e tem feito isso porque ela é forte pra dedéu, é pura humana, sobretudo gosta de estudar e às vezes exagera: soprattutto sobre, que não é sotto

Pensando na prova e também no exame pega o texto e começa a ler, estuda nas pausas e o tempo é sempre ótimo: não falta nem resta, ops que restar não é sobrar na língua dela: ela quer dizer exato, o tempo é exato e os trinta minutos... implacáveis! E ela acha é pouco. 

"Que não pense nisso", repete pra si na frente do espelho (do quarto, do banheiro, do retrovisor) "e esse trânsito que emperra"... Não reclama para que não piore e diz que prefere andar de ônibus pois ao menos poderia ler, e desliga rádio e pensamentos para não perder a atenção nos carros que correm em sentido contrário enquanto ela rasteja... Inveja deu! 

Porque o Po porque o Reno porque o Rhein... porque o Nilo e o Amazonas imenso... Imersa nas palavras da RAE e do TRECCANI, tre cani, três cães (lógico que não seria isso, mas ela gosta de brincar com sons) e três dias, trinta e três, e o exame no dia... vinte e três! E ainda tem que ir ao banheiro, como se não bastasse mais... e aperta mais um pouco, segura até não poder mais, que cinco minutos, que... quê... ai... e finalmente e ai e logo passa e já passou e "tua camisa passa tu mesmo com as tuas mãos" porque tudo cai nas costas da gente mas porque se é besta, não porque se é mãe e mulher que trabalha e estuda e vive e corre e luta e sempre busca o melhor. 

Depois das nove, meninos na cama, ela pega a gramática e vai estudar, gramática cara que ela comprou se dizendo "completa" e só dizer que uma língua é completa deixa lacunas por preencher e ela pensa em Iser (ou teria sido Jauß? ela gosta destes nomes e das idéias destes dois) e idéia não tem mais acento na nova ortografia do português, mas ela insiste no "erro", insiste na acentuação, insiste na leitura do texto e nelle parole che mancano (a lui o a lei? A loro! Ela não sabe o que tinha de saber...) 

Abre a gramática e estuda: está estudando quelle parole que tudo juntam mesmo na separação, quelle parole que subordinam ou coordenam, quelle parole que... mancano, quelle parole que... pero speri: como assim que "anzi" não aparece no índice final do livro e sim "así"

E folheia a gramática e não acredita no que lê: as últimas páginas estão todas em espanhol! Como?! Não era uma gramática de italiano? 

E pensa no caro que pagou por todas as suas gramáticas e antes de pensar mais nada pensa que teria que reclamar e escrever um email para a editora, em alemão, falando do erro e exigindo o dinheiro de volta e que "como deixaram passar um tremendo erro desses e ninguém reclamou?" e... 

Speri, stanca stai... cansada, fecha a gramática e volta para a página inicial: espanhol, em alemão; italiano e espanhol com capas vermelhas, ambas em alemão, claríssimo, e tudo por conta da conjunção e da capa, e fica claro e ela sorri de si mesma e recorda de Distraído, conto escrito uma vez, imersa em García Márquez. 

"E foram felizes e comeram perdizes". 

Ela apaga a luz e salda o amanhecer com o novo conto que acabou de engendrar para distrair-se e não pensar na prova, sobretudo para não pensar.



© 2016 Blog Sem Vergonha de Contar. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.