quarta-feira, 25 de maio de 2016

A trágica morte do Coronel Luis


Por Michele Calliari Marchese

O Frei Leonardo mandou que o coveiro enterrasse aquele corpo sem mais demora e que fincasse uma cruz de madeira dizendo que ali jazia o Coronel Luis. A voz do Frei rebombou naquele vazio frio do cemitério, como acontece em todas as mortes e mesmo sendo o verão mais quente de que se tem notícia; todas as mortes são frias, gélidas. Não havia ninguém por lá a não ser o Frei e o coveiro que sozinhos rezaram, acenderam algumas velas e não tinha gentes a chorar e tampouco carpideiras fazendo seu trabalho.
O corpo havia sido largado na porta da igreja. Assim, sem mais nem menos e a posição em que caíra, por ter sido jogado de alguma carroça, fazia daquele defunto uma coisa assustadora e não adiantava olhar para os lados ou tentar vislumbrar alguma poeira de fumaça que pudesse delatar a frieza da atitude de quem fizera aquilo. Não havia nada. Mandou umas crianças que estavam brincando por ali para chamarem o marceneiro, o coveiro e o Júnior – o tabelião.
Ficou de cócoras ao lado do corpo esperando que os chamados fossem atendidos e não teve nenhuma vontade de dar a extrema unção, pois reconheceu, depois de virar aquele jazido, que se tratava do Coronel Luis. 
Sem nenhum sentimento, vistoriou as roupas daquele homem findo e tirou o revólver da cinta, pois pensou que decerto para onde iria não precisaria de armas e resolveu que a daria ao delegado para que esse usasse em benefício justo e de salvaguarda. Procurou ferimentos pelo corpo porque não lhe aprazia olhar nos olhos daquele homem mau. 
Encontrou um ferimento na cabeça e teve que olhar infinitamente para aqueles olhos abertos que viram o seu assassino e que não pôde sequer abrir a boca para gritar de dor ou desferir seus costumeiros impropérios e uma visão se lhe colocou na mente quando se lembrou das inúmeras vezes em que a esposa daquele vilão vinha ter em confissão e chorava muito a pobre coitada, dizendo não aguentar mais. E se odiou quando lembrou as palavras que disse para ela, de que o casamento é sagrado e que deveríamos perdoar. 
Fez um esforço incomum para fechar os olhos daquele infame, mas a dureza do cadáver era nítida; fechou as suas pálpebras, não deveria pensar bobagens, também aquele ali era um filho de Deus, e finalmente conseguiu com as mãos trêmulas fechar para sempre aqueles olhos de cão. A ternura daquele olhar morto não condizia com o caráter rude e grosseiro.
Muitas gentes se aproximavam para ver quem era aquele deitado na porta da igreja e quando lhe reconheciam a face, suspiravam aliviados e não lhe dirigiam nenhum sinal da cruz, muito pelo contrário e teve uma moça que lhe cuspiu no rosto frio e hirsuto.
O Júnior chegou primeiro, esbaforido pela corrida e quando deu com o morto, disse ao Frei achar-se que era qualquer pessoa menos aquele ali, e que bem poderia ter esperado, e que “jagunço” era uma palavra para bandido com nome e sobrenome, aquele ali jogado na porta da igreja era disfarçado, a pior espécie de ser humano que existe, tinha-lhe asco. Mas faria os papéis com muito gosto, mais ainda por vê-lo morto e o Frei lhe chamou a atenção para que respeitasse aquele Coronel que estava ali sem defesas. “Ainda bem!” disse o Júnior e saiu para avisar a família e preparar os papéis.
Em seguida chegou o marceneiro que teve o mesmo sentimento do tabelião e disse ao Frei que faria o esquife da tábua mais grossa que pudesse encontrar para não haver surpresas depois de enterrado e que não pudesse quebrar o caixão para assombrar a vida do povo mesmo depois de morto. E o Frei pediu-lhe ajuda para levar o corpo para dentro da igreja porque provavelmente a família não tardaria em chegar.
O coveiro nem se achegou do Coronel, simplesmente entendeu o silêncio do Frei Leonardo, deu meia volta e partiu com seus apetrechos em direção ao cemitério; também ele teve uma sensação de alívio ao ver o fim das muitas maldades que eram cometidas na Campina da Cascavel, todas na surdina, todas sem provas, tudo a seu mando.
O delegado Jurandir apareceu de uma ronda que fazia e avistou o Frei Leonardo que olhava a estrada da porta da igreja, como a esperar por alguém, em seguida notou também que o marceneiro apareceu numa carroça com um caixão e ajudou-lhe a carrega-lo para dentro e depois colocar o corpo do Coronel Luis dentro. Não perguntou nada a ninguém, não precisava de respostas, já as tinha na cabeça, lamentou o fato de nunca ter tido provas suficientes para coloca-lo na cadeia do Paraná, aquela onde o bandido nunca chega.
Pediu ao Frei o que fazia ali na porta ao invés de rezar a missa e o Frei lhe respondeu que esperava os familiares que nunca chegaram e que foram vistos pelo menos mais uma meia dúzia de vezes pela Campina e depois sumiram com o horizonte e ninguém soube precisar quando.
Os bens do Coronel foram divididos entre a família, assim informou o tabelião e quando a viúva teve que assinar os papéis lhe confessou que nenhum dinheiro pagava a quantidade de sofrimento que havia passado na mão daquele diabo e que sempre temera pelos filhos. Agora estavam livres, livres e em paz.
O delegado Jurandir nunca investigou o caso para alívio da população.

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quarta-feira, 18 de maio de 2016

O Poema


Por Helena Frenzel


Te sentias muito feliz naquela manhã porque acabavas de sair da livraria com o último livro que ele escrevera. Era uma alegria quase infantil sentir na sacola de tecido azul, que sempre trazias na bolsa mas que agora levavas na mão, o peso afetivo daquele volume mais que especial.

Naquele livro, te chamou a atenção, para além do conteúdo mais que excelente, a contracapa. Nela, a foto do poeta, nu, deitado de bruços numa esteira composta por retalhos de outros quadros que formavam uma grande colagem. Num dos retalhos, o que ficava próximo às firmes e bem-feitas nádegas, se via um apetitoso prato com mães-bentas. Do outro lado, uma montanha nos Alpes e outras paisagens igualmente mágicas. O texto da contracapa cobria sutilmente o encontro das nádegas e dava espaço para a imaginação. Exatamente isto te chamou a atenção naquele texto: não se tratava de um poema comum. Os versos eram compostos por espaços de fundo branco que deveriam ser preenchidos pelo leitor. A única coisa determinada era a posição de cada espaço na composição. Te sentiste fascinada por comprovar mais uma vez o poder da poesia naquela contracapa. "Poesia funciona assim", era exatamente isso que querias dizer à tua amiga quando se encontrassem mais tarde. 

A quantidade de pessoas nas ruas é algo que te incomoda, por isso evitas sair nos dias em que a cidade em peso vai às compras. "Tantos compram e poucos leem", era o que pensavas tentando desviar das pessoas que vinham ao teu encontro, como se a rua fosse só delas e fosse de uma só mão. Aquele era um local somente para pedestres, até aos ciclistas se pedia que apeassem as bicicletas, muito justo!, ou se cobrava a consciência de trafegar com elas bem devagar. Era um local para compras, um lugar para "não pensar" e as grandes lojas de marcas se estendiam por um quilômetro e meio de ilusão. 

Ilusão porque havia pedintes nas portas de várias das lojas e, mesmo que sentisses uma enorme pena deles, não conseguias dar-lhes dinheiro, pois imaginavas que... Bem, se estivessem ali a pedir comida ou roupas, trabalho ou ajuda de qualquer outro tipo não te furtarias a dá-la, mas dinheiro tu sabias que logo se transformaria numa nova dose da droga da vez. E eram todos muito jovens, em plena saúde e vigor, por isso não entendias aquela situação. Quem vem de um lugar pobre conhece a cara da verdadeira necessidade, dificilmente se deixa enganar pela indústria da compaixão, e tu vieste de um lugar assim. "Pode ser que eu esteja enganada", pensaste, mas... "julgar é sempre mais fácil..."

Deixaste este pensamento no começo da praça dos cafés, onde desembocava a rua das ilusões. Aliás, não só a rua das ilusões, também a rua dos prazeres e a rua das artes, a rua dos pubs e a dos bares, a rua dos cinemas e a das sorveterias. O dia estava ensolarado e as pessoas saiam de seus metros quadrados para encher a cidade de cores e olhares, e para deixar uma boa parte de seus recursos nas lojas locais. 

É um sistema interessante, concordávamos, e teus olhos de fotógrafa não te permitem vê-lo de outro modo, não permitem que te contentes com a superfície, sempre há um motivo complexo por trás do menor vestígio de simplicidade. 

Ergueste os olhos aguçados pela curiosidade e identificaste em algum ponto no círculo da praça a placa com o nome do "Café Concerto". Com passos relaxados porém decididos venceste os poucos metros que te separavam daquele idílio e verificaste que todas as mesas externas estavam ocupadas, Geyse não se encontrava em nenhuma delas e esta conclusão te levou imediatamente a entrar. Numa mesa ao fundo deste de cara com o sorriso alegre que procuravas, isso levou-te a aproximar-te e fazer o cumprimento usual: um abraço rápido porém sincero, três beijos no rosto, "o terceiro é para casar", dizem, e tu te perguntaste mentalmente se Geyse ainda pensava em casamento. E por que não? Bom, pelo menos coca-cola ela ainda tomava e estava tomando então bem poderia ser que ela, como tu, ainda não tivesse perdido a esperança de... e te corrigiste: mas por que o casamento tem de ser uma esperança? O que buscamos todos não é o tal do amor enfim? E amor tem fim, o amor e a vida, amor e casamento, casamento e rotina, amor e convenções, casamento e... anulações... 

Teu pensamento girava em torno destas rimas e teu coração ordenou que te concentrasses na imagem da amiga querida que levantara-se para receber-te. Olhos amendoados vivos, há tempos não se viam e a alegria pelo reencontro foi mútua. Ela havia cortado o cabelo e o novo corte lhe caía muito bem. 

"Que alegria rever-te!", Geyse exclamou ao se abraçarem. "Senta, senta, temos tanto para contar!" 

A conversa seguiu efusiva e logo uma jovem se aproximou para anotar o pedido das amigas. 

"Um café e uma fatia de torta de chocolate", pediste. 

"O mesmo para mim", Geyse completou e a moça voltou ao balcão. 

Antes de dares sequência à conversa deixaste teus olhos girarem ao redor. O ambiente estava decorado em tons pastéis muito discretos, móveis num estilo entre o antigo e o usual, nada de exageros, nada de tão clean nem nada de tão chique. Havia mesas quadradas, redondas e retangulares muito bem distribuídas, espaço é sempre caro nas grandes cidades. 

Tu e Geyse estavam sentadas numa das mesas redondas com três lugares, a toalha era de um tecido consistente e de fino material, também em tom tranquilo. Eu poderia jurar que te arrependeste de não teres tido grande interesse pelo curso de corte-e-costura que fizeste na adolescência, pois se assim tivesse sido poderias agora identificar naturalmente o tecido pelo nome e tua descrição seria muito mais precisa, mas não te importaste com isso e voltaste a fitar a amiga que, como tu, o tempo conservara muito bem depois dos quarenta. 

Na parede à tua frente, uma tela de van Gogh, Terraço do café à noite, que se não me engano assim se chamava. A pele escura de Geyse brilhava tanto quanto suas unhas bem-feitas, pintadas de esmalte marrom. Geyse sempre deu muito valor à aparência, muito diferente de ti, que te limitas ao cuidado básico, te restringes ao simples ao máximo, e muito mais que no adorno de corpos teu interesse pousa nos detalhes das auras que contornam os corações. 

Estavas a ponto de contar a Geyse que acabaras de comprar o último livro do teu preferido poeta e mostrar a ela a curiosa contracapa, quando teus olhos foram atraídos para a parede e sentiste um leve mareio e tiveste a impressão de que uma estrela no quadro noturno de van Gogh se transformava num dos girassóis de outra sua famosa tela, e ainda não havias bebido nada que causasse alucinações. 

Todo o lugar agora tinha uma nova coloração, amarelo forte e bege, as calças das mulheres se encurtaram e se alargaram em saias godê, deixando ver nos pés as sapatilhas com curtas meias, e um figurino dos anos 1960 se abriu nos modos e penteados dos demais ocupantes do local. Meninos vestindo calças curtas com suspensório e meninas trajando estampado de bolinhas, homens com o cabelo engomado e a garçonete, que neste momento retornava, agora usava um penteado que parecia um capacete e trajava uma jardineira com motivo quadriculado. 

"Mais alguma coisa?", ela perguntou e tu, sem saberes como, conseguiste ainda balbuciar: "Uma água, por favor, urgente!". 

Voltaste teu olhar para Geyse notando que o novo corte de cabelo agora era um penteado de rolos que também lhe caía muito bem. O café estava quente e não podias beber aos goles, tua boca estava seca e não crias no que estavas a viver. A garçonete voltou com a água e fechaste os olhos ao sorver o líquido e os deixaste fechados, esperando que quando os reabrisse tudo teria já voltado ao normal. 

"Estás bem?", Geyse perguntou preocupada. 

O som de sua voz parecia vir de décadas atrás e te assustaste ainda mais com aquela sensação de distância próxima. Demoraste alguns segundos a abrir os olhos, por puro medo. Bom, medo não era bem o termo, na verdade era um receio de que aquela estranha sensação sumisse no momento seguinte, sem que pudesses experimentá-la mais. De certo modo te sentias muito bem naquele vácuo inexplicável

Então abriste os olhos com coragem. Geyse, penteada, ainda estava lá. Agora notaste o vestido branco de bolinhas pretas que ela usava, com saia rodada, e o colar de pérolas bege. Olhaste para ti mesma e constataste que estavas com as mesmas roupas de antes: "um guarda-roupas clássico sempre cai bem e nos deixa passar por décadas sem chamar a atenção", pensaste. Tiveste vontade de beliscar-te ou morder o próprio lábio só para ver... E ai!, doeu mesmo. Estavas ali, na realidade

Neste momento Geyse olhou para a porta e disse: "Lá vem o Dave, vou te apresentar". 

Ao olhar para a entrada, tu quase desmaiaste. 

"Dave, como assim?", eu e tu pensamos. 

Viraste o rosto e confirmaste: era ele, tão jovem como na capa do primeiro livro que seria lançado (seria?)... em 1966!

Não podias crer naquilo, eu também não, agora te faltava a voz e quase todos os sentidos. Ele era miúdo e tão... tão frágil! Em poucos minutos alcançou a mesa e Geyse levantou-se para cumprimentá-lo. Instintivamente te levantaste também. 

"Anne é uma velha amiga, não sei se já havia falado dela para ti antes", disse Geyse. 

Tu estavas muito fora de órbita para orquestrar qualquer lógica, tentei desligar nosso pensamento, muito interligado, e notei que tentavas dominar a onda da confusão ao mentalmente perguntar-te: "Desde quando Geyse conhecia Dave?" 

Ele também usava gomalina e por trás dos grandes óculos de aro negro de lentes finas deparamo-nos com o olhar mais doce e límpido de toda a nossa vida, o olhar de um poeta que, em abril de 2016, teria a publicação póstuma de seu último livro, justo aquele que acabaras de comprar. "Não, não pode ser", pensaste. 

"Prazer em conhecê-la", ele te disse oferecendo a mão e ficaste com a tua estendida pelo tempo que, do nosso ponto de vista, pareceu uma eternidade, mas que em realidade deve ter durado menos de um segundo, o tempo de Geyse convidá-lo a preencher o lugar vago e ele aceitar com todo o prazer expresso num sorriso tímido e no ato de puxar a cadeira e acomodar-se. 

Os dois sentaram-se ao mesmo tempo mas tu não, tu quase desabaste e tiveste instintivamente a reação de buscar com a mão o livro dentro da sacola, podias sentir o volume que ainda estava ali ao teu lado, aos pés de tua cadeira, mas naquele instante o medo de acabar com um futuro (futuro?) de sucesso te fez apertar as alças da sacola com mais força para que aquele livro jamais pudesse escapar dali, não naquela época, não naquele momento, não naquele... ano? 

"Em que ano estamos?", perguntaste de repente buscando pelas paredes, em vão, algum calendário ou alguma referência exata ao ano atual e os dois te encararam muito surpresos. 

"Como assim? Tu bebeste, foi?", Geyse perguntou sorrindo matreira e teu rosto estava agora vermelho, permitindo-me sentir como queimavas por dentro. Um dos teus poetas preferidos estava ali na tua frente, poderia ser a chance de perguntar a ele como e por que havia escrito "Solidez" e tu olhaste para aquele rosto e recordaste que era o mesmo rosto na capa do primeiro livro de 1966 e que isso talvez significasse que... Não! Era muita poesia aquilo tudo, não era mesmo? Isso pensei só eu, calado e protegido em ti.

"Poesia faz isso, ela tira do ar...", balbuciaste. 

"...a pura verdade", ele completou. 

Tu querias desmaiar e foste salva pela garçonete que se aproximou outra vez para perguntar se o recém-chegado desejava alguma coisa. Ele perguntou a Geyse que torta ela havia pedido e sem esperar resposta disse à moçoila: "O mesmo para mim, por favor. Ah, e uma coca-cola..." 

"Certas coisas não mudam", tu soltaste, e eles te perguntaram: "O quê?" 

"Nada!", te apressaste em explicar. "Estou um pouco confusa, essa mudança de tempo repentina nos deixa meio bobos." 

"Nisto tens razão", disse Geyse.

"O tempo em abril é sui generis, ninguém consegue prever", ele completou.

"Ah, estamos em abril... ao menos isso ainda bate", pensaste, e tua intenção de expressar esse pensamento Geyse interrompeu: "Dave está escrevendo um livro!" 

"Sério? Sobre o quê?", perguntaste abobalhada e eu me perguntei o que poderia de fato estar se passando pela tua cabeça naquele momento exato, já que eu estava muito ocupado tentando baixar tua pressão.

"Dave é o poeta mais sensível que eu conheço", atalhou Geyse. 

"Eu também", disseste sem pensar. 

"Como? Você me conhece?", ele te olhou atônito. 

"Desculpe, desculpe, estou um tanto confusa. Apenas tenho a impressão que... Não sei, certas impressões não se pode explicar, entende? Me pareceste uma pessoa muito sensível e...", buscando socorro no quadro da parede, "é como neste quadro de van Gogh, por exemplo... Alguém consegue explicar a escolha desses tons? Muitos tentam, mas no final não há uma só lógica explicação." 

"É, não se pode explicar a arte... nem encontros nem impressões", ele coroou teu raciocínio. 

E eu fiquei pensando no privilégio que eu estava tendo de, naquele Café Concerto, poder estar em tua pele e viajar contigo através de tuas sensações. Tuas? Nossas, pois também participei. 

Sim, mas pouco importa, sei que cheguei a sentir teu deslumbramento diante daquele rapaz franzino e tímido, de óculos grandes, que um dia estaria nas estampas do jornais e das grandes livrarias, cuja morte, em 2014, com apenas 68 anos, causaria uma enorme sensação de orfandade para os amantes de poesia, para quem vê o mundo sob o véu da sensibilidade e da agudeza da mais limpa razão. 

Se era um sonho o que estávamos vivendo ali, isso também não poderei afirmar-te. Fato é que, em tua mente, presenciei como disseste a ele o quanto desejavas ter, dele, um livro autografado e ele sorriu timidamente e disse que não tinha ali um papel e que nunca sequer havia pensado em dar autógrafos e que tudo aquilo parecia um déjà-vu. Foi quando Geyse puxou uma folha de um bloco que trazia na bolsa e em tom de pilhéria deu a ele uma caneta. 

"Autografa, Dave, só de brincadeira..."

Ele autografou mesmo e ela te deu o papel e teus dedos tremeram ao tocá-lo.

E enquanto eles comiam suas fatias de torta e tomavam o café conversando amenidades, tu tiveste a lembrança (e do passado ainda se diz "lembrança"?) de que buscavas "Solidez" na Internet numa tarde em abril de 2016 (impossível!) e que exatamente dois anos após a sua morte (ele morrera mesmo em 2014?) tu imprimirias, naquele mesmo papel autografado, o poema premiado que, em 1992, lido pela primeira vez, te tirou de órbita e te revelou a verdade da poesia daquele autor. 

E aquele papel impresso e autografado seria emoldurado (foi?) e colocado numa parede de tua casa, em frente à tua escrivaninha... 

Os risos de Dave e Geyse foram perdendo distância e voltaste do teu transe quando ele já pagava à garçonete a sua parte da conta e agora se despedia dizendo que "havia sido muito bom estar com vocês, mas tinha que ir-se". 

Tu ainda tiveste tempo de perguntar impulsivamente a ele: "Dave, em lírica, de que matéria o sólido se faz?" e tiveste a impressão de que ele ficou parado por um tempo, com ar de deslumbramento antes de levantar-se estendendo a mão para ti, enigmático, dizendo: "Interessante, muito interessante!, pensarei a respeito. Mas agora tenho que ir-me". E foi-se. 

De repente olhaste para o quadro outra vez e sentiste novo mareio, o girassol de van Gogh foi voltando à estrela do "Café à noite", os tons pastéis voltaram à toalha da mesa e o penteado de Geyse voltou a ser um moderno corte, as saias das mulheres tornaram a ser calças e o demais voltaram ao figurino de 2016, o ano em que a Chanel fará um desfile em Havana, em maio, e a garçonete, agora sem a jardineira quadriculada, reapareceu perguntando se desejavam algo mais. Olhaste para teu copo vazio e pediste: "Água, por favor, urgente!" 

"Estás bem?", Geyse perguntou preocupada. 

Correste a mão, aquela que há pouco ele havia apertado, à sacola ao pé de tua cadeira e percebeste o volume do livro, que ainda estava lá. 

Incrível! "E Geyse, haveria ela também viajado?", nos perguntamos em pensamento; tu, muito só contigo mesma e eu, senhor muito de tua razão.

"Geyse, eu não sabia que conhecias Dave...", disseste a ela.

"Que Dave?", ela respondeu.

"Aquele poeta premiado que morreu há exatos dois anos, o meu preferido. Acabaram de lançar o último livro que ele escreveu... Comprei antes de vir aqui encontrar-te, queria te mostrar o poder da poesia e ..."

"Dave poeta? Nunca ouvi falar. Você sabe que de literatura eu não manjo nada, né? E toda vez que começa a falar de livros você embarca numas viagens tortas e não tem quem consiga te acompanhar... Bem, mas vamos tomar nosso café antes que esfrie, logo terei que voltar ao trabalho e ..." O resto da conversa não registraste, era fácil conversar com Geyse, bastava ficar queita ouvindo e assentindo com a cabeça de quando em vez.


Na fumaça daquele café, no concerto de nossas memórias (memórias?), tive uma vontade desmedida de sair da minha dis-forma e te dar um abraço bem apertado por teres me permitido ser testemunha de um momento tão especial. A única coisa que eu ainda fiz, antes de retirar-me, foi imaginar-te chegando em casa, naquela tarde, e fitando longamente o quadro autografado na "Solidez" de uma das paredes de tua casa, apertando junto ao peito o último livro que ele escreveu. "Sim, poesia tem disso, tem esse poder", era o que eu teria dito se espaço e mais tempo tivesse. Sobram-me as entrelinhas e os vazios da minha existência na contracapa do último livro, um livro que ele, mais uma vez, dedicou "a apenas Anne", que o levou a escrever "Solidez". 



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quarta-feira, 11 de maio de 2016

Sobre velas e esperanças


Por Michele Calliari Marchese

Talvez os cemitérios, longe de somente guardar os mortos guardam também as inesgotáveis angústias dos vivos, o cheiro das velas acesas e o riscar inclemente das ceras caindo incólumes em todos os tipos de chãos, terra, cimento, azulejos, gramas e lágrimas e o vento faz as árvores gemerem no lamento profundo da solidão.
De solidão se fazem os incansáveis corredores que levam de jazigo a jazigo, de jazigo a jazigo trazendo a dor e a desesperança nas fotos estampadas, muitos altaneiros, outros em preto e branco, carcomidas que são pela ação inexorável do tempo; números presos somente por pequenos parafusos que refletem a luz do sol da vida. Um paradoxo. Uma contradição.
Era nisso que pensava quando finalmente cruzou o portão do cemitério. Tinha ido colocar flores no túmulo da vizinha que havia lhe ajudado tanto com os filhos. E agora havia partido, para cair no esquecimento daqui a alguns anos, ou décadas talvez, mas haverá um tempo que ninguém mais se lembrará daquela mulher, do que morreu o que fez e talvez não haja mais herdeiros –pois na corrida muitas vezes lamentável do espaço– que chorem por ela e aquela foto não passe somente de uma foto e suas inscrições apagarão para todo o sempre. Como tudo na vida.
Lá fora o sol brilhava mais forte e pareceu que se transportava automaticamente para outro mundo: o dos vivos com o crepitar dos trabalhos aqui e acolá, ônibus apressados levando gentes mais apressadas ainda e a tinta dos paralelepípedos que se desgastam pouco a pouco, de chuva em chuva, como nós.
Passou em frente a uma casa amarela, com janelas marrons, muito cuidadas, um extenso jardim de rosas que se desdobravam à medida que seus passos iam avançando pela calçada e as pessoas que tomavam o chimarrão e falavam de outras pessoas no julgamento pertinente de todo ser humano.
A sacola que carregava, pois não queria carregar as velas na mão, agora pesava em seu braço, porque as velas não foram acesas no túmulo daquela vizinha, não achou jeito de fazer isso, mesmo tendo no pensamento que além das flores –uns crisântemos brancos dentro de um vaso– acenderia as velas e rezaria e também passaria um bom tempo por lá a lhe fazer companhia na solidão dos corredores do cemitério. A sacola que carregava pesou em seu braço, roçando-lhe as costas, fisgando seu rim. E não foi capaz de ficar cinco minutos em frente ao esquife da vizinha.
Ela encontrou adolescentes aos beijos cabulando alguma aula. Um ônibus passou levantando a poeira daqueles dias secos e lembrou-se de quanta coisa tinha que fazer em casa, varrer as calçadas, limpar os armários, espanar o pó, secar a roupa, encontrar o marido aposentado sentado numa cadeira de palha vendo o tempo passar e o mato crescer por entre o cimento da garagem.
O trinado de um passarinho que ela esquecera o nome aliviou o pensamento sombrio que estava tendo naquela manhã, fora os beijos apaixonados e agora esse trinado em hora tão propícia, andava pensando bobagens, que tudo sobrava para ela fazer e sorte os filhos terem crescido e pensando melhor, sorte não ser um deles aos beijos na outra esquina, não saberia o que faria e a sacola pesou mais um pouco em seu braço, pedindo arrego, uma troca de braço e foi o que ela fez. 
Faltava duas quadras para chegar em casa e mais uma vez um ônibus passou pela rua levantando migalhas de outras vidas e pensou em quanta gente havia passado por ali com as mesmas passadas que dava ou nas pessoas que tinham aberto aquela rua há muito tempo atrás, um retrocesso de memória invadiu sua mente e invocou recordações minúsculas de um tempo que nem sabia precisar se existira ou não, um vazio sem precedentes: e aqueles que se foram? Um dia iria também, mas a essa ideia arregalou os olhos, estremeceu e disse de si para si, falando alto mesmo para que alguém, mesmo que fosse ela mesma, escutasse que ainda não estava preparada, que não podia partir, queria ver tantas coisas, talvez um filho formado, ou um neto. Não se achava velha, mas vendo o marido da esquina, sentado onde achava que ele estaria sentado, imerso em pensamentos vazios, por que não acendera as velas no túmulo da vizinha?
Faltava pouco para chegar e resolveu comprar pães no mercadinho ao lado de sua casa. Tinham saído do forno. Cheiravam a infância, cheiravam a calor humano e pegou uma pontinha para saciar a fome de vida que tinha ao entrar naquele cemitério de outrora, quando tinha ido mesmo? Mastigava enquanto pensava no marido e nas velas que incomodavam sobremaneira; um peso incomum, uma inverdade que não foi capaz de levar adiante, não foi capaz de acender as velas em seu túmulo de amiga, não foi capaz de cumprimentar o marido sentado naquela cadeira de palha, onde acharia que estaria e de fato estava, o que fazia aquele inócuo?
Pendia para o lado, quase caindo, dormindo talvez, muito sol na cabeça dá nisso e como está quieto. Cutucou lhe o braço para acordar, porém não acordou, caiu no chão como caem os pássaros abatidos e sem defesas, esperando por ela talvez. Caíram os pães e todo o frescor infantil, caíram as vidas, dele e a sua por não ter derrubado a sacola com as velas não acendidas no cemitério. Caiu a noite em plena manhã de sol. Seria preciso acender as velas agora, sem mais tardar.

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quarta-feira, 4 de maio de 2016

O susto do dia 16


Por Michele Calliari Marchese

Aconteceu que esse dia foi marcado em todas as folhinhas penduradas atrás das portas para que nunca fosse esquecido, tanto pelo pavor quanto pela novidade climática. Passariam anos até que um novo alvoroço natural daquela estirpe desse as caras pela Campina da Cascavel novamente. 
Era verão e o dia estava especialmente quente, propício para secar as roupas no varal sem que alguma chuva ocasional –como vinha acontecendo diariamente naquelas semanas– molhasse novamente as vestes e tamancos. Deram banhos até nos bichos para aproveitar aquele dia excepcional, inclusive frei Leonardo pôde finalmente lavar suas batinas de rezar a missa e estava só de ceroulas em seu quarto preparando o sermão daquela noite. Abanava-se com um livro quando um dos ventos atravessados que assolam a nossa cidade adentrou com força no nariz do frei. 
Obviamente ele não entendeu a mensagem daquele vento fora de hora e vindo do lado errado e benzeu firmemente o alívio para o suor que o fazia perder o lápis escorregando por seus dedos molhados. Por conta desse empecilho, resolveu que o sermão daquela noite seria sobre Sodoma e Gomorra. Propício. Ainda mais que o sacripanta do Coronel Luis estaria na primeira fila rezando falsamente e essa passagem bíblica bem poderia atenuar suas atitudes malvadas e injustas.
Na parte onde dizia sobre as imoralidades acometidas pelos habitantes daquelas cidades, o frei resolveu estender-se mais e mais e mencionou atrocidades conhecidas pelo povo da Campina e praticadas pelo Coronel Luis. 
O sermão ficou comprido, mas decerto que valeria a pena. 
Pegou uma toalha para cobrir-se e foi tirar suas batinas do varal, teria que passar a ferro, porém lembrou que não havia acendido o fogão a lenha e, por conseguinte não teriam brasas para esquentar o ferro. Paciência. As vestiria amassadas mesmo.
Às oito horas, como de costume, o povo foi à missa e na primeira fila sentado muito ereto e de cabeça baixa, estava o famigerado Coronel Luis, aquele que nem o diabo quis para si, com as mãos cruzadas no colo, muito bem vestido e de brilhantina no cabelo. Quem não o conhecia tinha a impressão de ver um homem muito crente, muito bom, um verdadeiro beato que se ajoelhava mais que o normal e tinha os olhos fechados na oração e isso fez com que o frei Leonardo questionasse os muitos vieses da fé e esquecesse temporariamente o que fazia ali em frente àquele desprezível que lei nenhuma conseguira colocar na cadeia. 
O frei disse o sermão com uma ponta de ódio e enquanto falava das iniquidades dos habitantes de Sodoma e Gomorra olhava firmemente para o Coronel Luis e tinha a vontade de excomunga-lo naquele momento e exaltou-se no sermão pondo medo e pavor em toda a população. Menos no Coronel.
Aconteceu que quando terminou a missa as gentes que estavam lá escutaram um estrondoso trovão e apressaram-se na saída para não pegarem chuva na volta para casa, porém o que viram os deixou boquiabertos e apavorados diante daquele espetáculo nunca dantes visto no céu da Campina da Cascavel.
Entre as densas nuvens espocavam raios e a noite virou dia e todos se lembraram do sermão do frei e imaginaram em suas mentes que aquilo que se desdobrava no horizonte e no céu era a própria ira do Supremo. 
O rangido dos troncos das árvores era avassalador e ninguém mais colocou o pé para fora da igreja e amontoaram-se numa grande união, deixando de lado aquele Coronel dos diabos que provavelmente era ele o causador daquela desgraça iminente. Morreriam decerto ou virariam estátuas de sal, de qualquer modo não tinha como não olhar para aquela imensidão de raios que caíam sem dó nem piedade em cima das casas, estradas, e notaram que os cavalos estavam deitados a protegerem-se e não se escutava outra coisa a não ser o barulho medonho vindo do firmamento e o zum zum zum das orações dentro da igreja.
A senhora esposa do Coronel Luis começou a chorar, e nunca se soube se era por causa da intempérie ou se por carregar o imenso fardo que era a aliança de casamento. Diante daqueles soluços desgraçados, as outras mulheres se condoeram da pobre mulher e passaram a chorar também e o frei, arrependido de seu sermão, pois que nunca em sua vida imaginaria que suas palavras pudessem provocar tamanho desespero por parte daquela população tão pacata, sentou no chão do altar, bem em frente ao Coronel, que já tinha começado a ordenar isso e aquilo e ninguém sabia se devia obedecer ou não e olhavam atônitos para o frei, esperando algum soluço ou quem sabe um aceno de mão.
O frei empertigou-se e teve que gritar, pois que a barulheira dos raios e trovões era infernal e quase não se podiam concatenar as ideias e era tanto choro e ranger de dentes que ele deu um soco na mesa e pediu que se acalmassem. O povo se assustou e sentaram-se imediatamente, esperando as ordens do frei; para pegarem seus terços intermináveis e rezarem que logo tudo isso passaria, pois que o bem prevalecia sempre e o mal seria rechaçado sem mais demora, eram coisas da natureza, dizia.
Uma hora se passou naquela angústia, mas logo em seguida veio a tormenta e os raios amainaram e a noite reinou definitivamente na Campina da Cascavel.
Muitas crianças dormiam nos colos de suas mães, serenas. A calmaria daquela noite imprestável veio sem mais demora e o primeiro a sair da igreja foi o Coronel Luis, sendo seguido de perto por sua esposa chorosa e pelos filhos cabisbaixos. 
Frei Leonardo na sua ansiedade de jovem apenas desejou que aquele sacripanta percebesse que as palavras daquela noite e todo aquele magnífico espetáculo da natureza amolecesse as atitudes desvairadas e descabidas que vinham prejudicando a harmonia de nossa linda cidade. Mas uma ponta de dúvida grudou em seu coração. Porém o consolo de que nada dura permanentemente o fez dormir aliviado. Recebeu muitos tapinhas nas costas em sinal de agradecimento e de coragem. Tinha o bem ao seu lado.

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