quarta-feira, 20 de abril de 2016

Nova Boston


Por Helena Frenzel


O que conto agora longe vai de uma figura ou inventiva de linguagem, foi o que de fato aconteceu; e tenho provas. Nem digam os mais neuróticos que se trata de uma crítica aos tempos atuais, que por tantas e tantas já passamos e, neste milênio, não estamos tão mal, há sempre espaço para piorar. 

Disseram as provas que tudo isso aconteceu onde antes havia uma ilha, uma cidade próspera cercada de água por todos os lados no vasto litoral de onde um dia foi aquele país que teria sido de todos, não tivesse antes sido tomado por poucos, um país de gigantes com um lugar no futuro ao qual nunca chegou, numa dessas terras outrora chamadas "novo mundo". 

Eis que um dia, assim do nada, a cidade se viu acordada por uma vaga que veio do mar, vaga não, revolta, e a força das ondas foi empurrando os habitantes para cada vez mais longe do litoral. Mostram os registros que os ativistas há muito já sabiam o que estava por vir, mas ninguém lhes deu ouvidos, como é comum acontecer desde os tempos de Noé. Tentou também Cassandra, avisando Plínio da desgraça da Guerra de Tróia há zilhões de anos atrás, sem sucesso. 

Pois naquele dia começou o oceano a devolver a Nova Boston tudo o que cidade lhe deu: cloaca. Em menos de meia década, dejetos e mais dejetos foram se acumulando e engolindo as praias, transformando o litoral num tapete fétido viscoso que matava tudo o que tocava e quem não se atreveu ao toque fugiu para os lugares mais altos, para onde pudesse se proteger. 

Tudo foi ficando para trás, não tiveram tempo de carregar nada pois o risco de morte era mais do que alto, quase uma Pompéia nova, não fosse pelo fedor. Os mais ricos que viviam nas praias foram os primeiros a terem de abandonar suas "casas", embora vivessem em torres de concreto perfumadas, porque era insuportável e muito mais forte o odor que os circundava. E os aeroportos lotaram porque naquela época só dispunham de aviões os mais ricos, e os mais pobres fugiram de carro próprio ou transporte coletivo, redescobriram os transportes em caçambas e caminhões, trens e bondes, tudo o que pudesse ser mais rápido que as pernas, que só tinham ordens para correr. 

Se antes os carros não podiam trafegar nas ruas de Nova Boston, que dirá nas ruas ora lodosas, o que fez com que a cidade passasse em poucos dias a ser chamada de Nova Bosta pelos meios de comunicação fétidos locais, e isto está registrado nos cristais da velha internet. 

Os que voaram buscaram os Alphos, pontos mais altos de outros países e lá se viram confrontados com a luta por sobreviver. Registros antigos trazem relatos de como os antepassados chegaram aos Alphos e o que os movera até ali, aquele lugar inóspito litorâneo, porém distante do alcance das ondas bravas do mar. E os relatos foram passando de pais para filhos, de geração em geração, e alguns estão em livros, nos quais poucos contam que fugidos de uma tsunami de bosta foram parar naquelas montanhas, e que na época em que o papel moeda valia alguma coisa puderam ainda comprar os pilotos e os aviões que lhes levaram até aquele lugar. 

Pois tiveram que aprender a lavar as próprias roupas, a preparar as próprias refeições e esquecerem os imperativos, pois os Alphos era terra de verdadeiros ricos, gente de pensar livre que nunca se deixou escravizar, como em terras antigas. E o ricos de Nova Boston só tinham dinheiro como riqueza, nada mais, e esse dinheiro de nada lhes serviu naquelas montanhas, pois não valia tanto a ponto de arrasar a dignidade das pessoas que viessem a lhes prestar qualquer serviço ou favor. 

Para os que ficaram em Nova Boston, o destino foi outro. A ilha e o litoral do país foram isolados, pois era altíssimo o risco de contaminação. E quem não conseguiu fugir antes, refugiou-se no ponto mais alto da ilha, que como era quase plana, não ficaram muito longe do chão. E a cloaca seguiu se espalhando à roda do que sobrou da população. A fome era tanta e a sede também que os sobreviventes, a cada semana, diminuíam em macabras proporções. Depois se soube que os mortos mantinham os vivos com sua carne e sangue e foram comendo-se uns aos outros até que só sobraram muito poucos que não dormiam para garantir que não seriam os próximos a proverem comida e bebida para os demais. 

Até que um deles, diante da morte certa, teve a idéia de abreviar o fim: tomou de um isqueiro velho que há muito trazia consigo e alisava a cada dia esperando não ter de usar, mas era chegada a hora, pois melhor morrer explodido do que ser "comido" ou enterrado vivo pelos dejetos que não paravam de subir. Pois que agora em Nova Boston era bosta na direita, na esquerda, no meio e em todo lugar e o velho não pensou duas vezes e acendeu o isqueiro acabando ali consigo e com o resto da população. A explosão foi gigantesca, dada a biomassa e os gases que se acumularam ao redor. 

E a cloaca seguiu seu caminho cobrindo o último ponto ainda avistável. E assim sumiu Nova Boston, riscada por um tempo da memória do planeta. Vestígios dessa cidade só foram encontrados séculos depois, por um grupo de arqueólogos, um deles foi meu tataravô. As novas técnicas de arqueologia marinha nos revelaram Atlântida, Pompéia e Nova Boston, e como as águas não guardam mágoas, simplesmente devolvem em dobro tudo o que lhes atiram.



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Um comentário:

  1. Mas que grande "m". No passado, presente e futuro, viva Nova Boston! E não adianta tapar narizes, pular poças de excrementos, não!!!! Temos que limpar nossas atitudes para que Nova Boston se chame Nova Limpom! Beijos querida!
    Michele

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