quarta-feira, 27 de abril de 2016

As incríveis aventuras do Delegado Jurandir - Uma chave estranha


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu quando o delegado Jurandir estava assistindo à missa das oito e quando se ajoelhou para rezar encontrou uma chave enferrujada debaixo da cadeira do vizinho da frente. Esperou que aquela pessoa se levantasse para então perguntar se havia perdido a chave. Diante da negativa, não restou alternativa ao Jurandir que não fosse interromper a missa e explicar o ocorrido ao frei Leonardo que prontamente o atendeu.
A chave não era de nenhum dos presentes, porém ficaria guardada na sacristia se acaso dessem conta do sumiço da dita cuja ou se soubessem de alguém que a tinha perdido.
No final da missa o frei pendurou a chave num dos pregos da parede da sacristia, junto com as outras chaves do lugar. 
No dia seguinte, quando o delegado foi à mercearia comprar erva para o chimarrão, encontrou a mesma chave na calçada, igualzinha àquela de ontem, na igreja. Decerto que o frei havia sabido de alguma coisa e saiu para entregar a chave e acabara perdendo-a novamente. Iria até lá para devolver. Chegando à sacristia encontrou frei Leonardo esfregando alguma coisa em cima de sua mesa e tinha suor brotando de sua testa no esforço da lida, tinha também muitos livros abertos ao redor daquele trabalho e um óculo de aumento que volta e meia servia para olhar alguma gravura daqueles livros para em seguida continuar com o que estava fazendo.
O frei assustou-se com a presença do delegado e chamou-o para sentar ali onde estava esfregando aquela chave de ontem, aquela que o delegado achou no chão da igreja e assustou-se ainda mais quando o delegado sacou do seu bolso outra chave igual e colocou-a ao lado da primeira e viram que elas eram tão iguais que não saberiam dizer qual era a primeira que havia sido encontrada.
Pois o frei, recostando-se na cadeira, disse ao delegado numa voz de desgraça que faltavam mais cinco, então, de acordo com os vários livros que lera e que era por isso que estava esfregando, porque as chaves continham frases secretas e dizeres que quando postas na sequencia exata fariam com que o céu se instaurasse na terra. “No sentido figurado”, apressou-se em dizer o frei. “Acho.”
O delegado Jurandir passou aquela semana estudando os livros na sacristia do frei Leonardo e muitas missas foram esquecidas e alguns pequenos delitos também. O imediato é que ficara responsável pelas rondas e muita vez voltava com uma chave na mão. 
Tinham seis chaves iguais e postas em cima da mesa. Suas gravuras ininteligíveis tornavam o serviço extenuante, não havia meio de descobrir que língua era aquela e uma dúvida cruel abateu-se sobre os dois: se estariam sendo incautos em buscar uma coisa que jazia perdida por aí, entre a poeira e o esquecimento. 
Na fadiga daquela noite, o delegado mudou a ordem das chaves e então um vento ruidoso começou a soprar. “São os ventos fora de hora”, disse-lhe o frei, e ele nunca tinha ouvido vento uivar, parece cães ou lobos ou o diabo que o parta, e ficou assustado com aquilo e fecharam as portas à tranca, as janelas com os trincos e acenderam mais velas que o normal, para que não ficassem no escuro escutando aquele barulho medonho. Mas um misto de felicidade pela descoberta da posição de uma das chaves brotava como um prêmio pelos incessantes estudos daquela semana.
Quase que freneticamente eles trocavam a disposição das chaves e esperaram por algum tempo para ver se acontecia algum imprevisto como o do vento uivante e só o que conseguiram foi que o vento parasse de uivar.
Resolveram abrir a porta da sacristia para que entrasse ar puro e quando a porta estatelou na parede eles deram de cara com o além. Tiveram muita dificuldade em firmar as vistas diante daquela nebulosidade extremamente branca, doída e cujo cheiro – para o delegado - era da paz e do alento. Deram-se as mãos num instinto de sobrevivência e o frei foi capaz de soltar um longo suspiro de desespero e então eles vislumbraram entre as brumas daquele nevoeiro uma porta.
Essa porta era imensa e isso condizia com o tamanho que as chaves tinham e o delegado chegou a pensar por um momento que eram os portões do céu e estava pegando a primeira chave de cima da mesa quando o frei lhe chamou a atenção, dizendo que não fosse abrir porta alguma, que aquietasse o ânimo aventureiro e que o céu, se existisse, estava no coração das pessoas. Porém, o delegado muito crente em suas convicções religiosas não escutou os apelos do frei e tinha a cegueira nos olhos e a primeira chave na mão. 
O frei, muito apavorado, resolveu fechar a porta da sacristia rapidamente, mas o delegado – muito mais forte que ele – deu-lhe um empurrão e os dois atracaram-se como dois inimigos de morte e tombaram no piso frio desferindo-se coices e tapas. Numa reviravolta de corpos o frei conseguiu dar um chute na mão do delegado que soltou a chave e largou do frei para busca-la e percorreu a sacristia inteira de cabeça baixa olhando por sob os móveis e cadeiras e levantou-se para pegar a segunda chave de cima da mesa e deixando o frei caído com o nariz sangrando saiu porta afora. 
Mas aquela porta não mais se encontrava no lugar que tinha sido vista e o delegado deu-se conta do ocorrido e lamentou profundamente a surra dada no frei e levantou-o para que pudesse atendê-lo com unguentos. Muito provavelmente, só se poderia usar a segunda chave se esta estivesse na ordem certa e depois de se ter aberto a primeira porta com a primeira chave, aquela dos ventos, e então se aperceberam que o vento havia amainado e a neblina se desfazia aos poucos, dando lugar ao brilho das estrelas.
O delegado Jurandir ajoelhou-se e contou ao frei tudo o que tinha visto; as maravilhas do céu de sua alma e compadeceu-se por ter perdido tudo aquilo ao seu alcance, mesmo faltando a última chave, e o frei, muito consternado com aquela situação tão diferente da sua, pois que tinha visto o inferno a corroer-lhe as entranhas, mas isso ele nunca contou ao Jurandir, pois se fosse realmente o céu a desprender-se à frente do delegado, este nunca teria tido atitudes de violência inconsolável. As chaves eram o acesso às portas da desgraça da Campina da Cascavel.
Depois do ocorrido, lançaram as chaves ao léu, a quilômetros de distância uma da outra para que nunca pudessem ser juntadas novamente e para que nunca abrissem as portas do desconhecido e da morte iminente. 

Muitos anos depois, quando frei Leonardo faleceu, encontraram num dos bolsos da batina uma chave que não coube em nenhum lugar e resolveram enterrá-la junto com o corpo. Era a sétima chave.



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