quarta-feira, 30 de março de 2016

As incríveis aventuras do Delegado Jurandir - O cemitério abandonado


Por Michele Calliari Marchese

Foi quando o delegado Jurandir fazia uma ronda que viu um vulto esgueirando-se pela mata. Imediatamente pensou que naquela herdade não poderia ser morador, mas sim jagunço foragido. Amarrou o cavalo numa árvore próxima e silenciou como a calmaria de um poço profundo, cujas águas jamais se movem, e procurou escutar a respiração daquela figura sorrateira que decerto estaria escondida mais à frente.
Estava nervoso e tocou em seu revólver várias vezes para certificar-se de que estava em sua cinta e não ouviu nada além dos barulhos da natureza e de alguma fonte próxima que vertia incólume debaixo de alguma pedra.
Andou alguns poucos passos e se assustou com o estalido que sua bota provocara ao quebrar um galho seco e o suor brotou de sua testa. Respirou fundo e andou mais e mais e mais e não via mais aquele vulto e tampouco vestígios de que alguém ou algum animal passara por ali. Resolveu voltar.
No entanto, foi tomado de sobressalto ao ver à sua esquerda o vulto aparecer e desaparecer e mudou a direção, agora com o revólver na mão.
Chegou numa clareira e amaldiçoou-se por não ter trazido o imediato, porque ali estava um imenso cemitério. Um cemitério abandonado. Dos mortos não tinha medo, tinha medo dos vivos, mas aquela aparição que lhe chamara a atenção na estrada não estava no rol das buscas, pois que não era jagunço, tampouco foragido, não era bicho, não era nada e àquele pensamento teve ímpetos de fugir o mais rápido que pudesse, porém um jazigo coberto com as mais lindas flores brancas se sobressaía naquele deserto de extinção humana.
 Não lhe foi possível contar, sem se perder nas contas, a quantidade de cruzes de madeira, caídas, deterioradas e cujas inscrições – se havia – tinham-se perdido no tempo e no espaço e das lembranças dos vivos. Não tinha conhecimento daquele lugar e assustou-se com os diversos tamanhos das covas de terras já tomadas de matos a lhes enfeitar o túmulo. Sozinho não era possível fazer o censo daquele povo. Teria que voltar à cidade, chamar o imediato, o Frei Leonardo e quem se dispusesse a transferir aquele cemitério abandonado para o cemitério da Campina da Cascavel; também aqueles mereciam as missas de Finados.
Mas aquela tumba florida não lhe saía do campo de visão. Era linda demais no meio daquele caos miserável e esquecido. Foi até lá e a cruz estava de pé como se tivesse sido posta naquela semana e as inscrições feitas com uma letra muito caprichada dizia que ali jazia Baltasar. Sem sobrenome. Havia nascido em vinte e seis de junho de 1884 e morto de tiro em dezesseis de outubro de 1916. O delegado, acostumado com as lápides antigas, onde se dizia do que havia morrido aquele morto, não estranhou o fato de que aquele que estava ali morreu de tiro. Só não dizia onde. Mas enfim, se estavam em 1940, pensou, como é que pode um túmulo estar tão novo assim? A terra da cova era fresca e revirada como acontece quando o coveiro abre o buraco e depois tapa com a terra retirada; e aquelas flores? Frescas, lindas, cheirosas, como se tivessem sido postas naquele exato momento em que aparecera. 
Sim. Definitivamente deveria voltar à Campina para chamar o máximo de gentes dispostas a ajudar naquela empreitada. Antes, porém, teria uma conversa com o Frei Leonardo para que ele rezasse para aquelas pobres almas. Marcou o lugar abrindo uma trilha a facão e quebrando muitos galhos para não esquecer, apesar de que jamais se esqueceria desse episódio, porque aquele vulto que lhe apareceu na estrada o acompanhava invariavelmente e sem cansaço. Como uma sombra negra grudada em seu corpo.
Frei Leonardo ficou assustadíssimo com a informação sobre a existência desse cemitério abandonado e imediatamente ligou os fatos e datas e explicou ao delegado Jurandir que naquela data da morte do Baltasar havia acabado a guerra dos Pelados e que provavelmente aquele lugar era o refúgio de muitos soldados daquela conflagração, mortos, muito seguramente por rebeliões entre si e que o último, aquele Baltasar, fora enterrado pelo maior bandido dentre todos e que seguia fugindo, até ser preso pelos militares algum tempo depois.
Faria a missa sim, sem mais delongas e durante o sermão convocou os homens da Campina munidos de pás e carroças para, juntos, fazerem um imenso mutirão de retirada dos restos mortais de uma tropa remanescente da guerra dos Pelados. 
O delegado encabeçou a comitiva e quando chegaram lá identificaram rapidamente a trilha que ele havia feito no dia anterior, porém quando chegaram à clareira encontraram somente um túmulo, aquele do Baltasar, em frangalhos, sem nenhuma característica daquela que ele havia comentado ao Frei, e percebeu num frêmito que a sombra partira do seu lado para nunca mais voltar.
Ninguém desdenhou dos fatos relatados pelo delegado e começaram a cavar a tumba e encontraram os ossos, e mais ossos e esqueletos inteiros que se estendiam uns por cima dos outros, como numa grande carnificina, jogados numa vala comum, tendo somente uma cruz a lhes salvar as almas corrompidas pelas traições e pela guerra.
A consternação tomou conta de todos os que estavam lá para ajudar, e, arrepiados entoaram cânticos enquanto enchiam carroças e mais carroças com os ossos daqueles mortos sem lembrança, daqueles esquecidos por todos e encontrados pelo delegado, havia muitas armas junto, balas, facões, farrapos de roupas que dantes cobriam corpos saudáveis que lutaram por um ideal que se perdeu nas brumas do tempo.

E esse episódio nunca foi esquecido por nenhum daqueles que ajudaram na empreitada e foram enterrados juntos como sempre, porém com a diferença de serem encontrados um a um.


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