quarta-feira, 23 de março de 2016

As incríveis aventuras do Delegado Jurandir - O causo dos passarinhos


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo que aconteceu foi deveras assustador. Foi num dia muito ensolarado, na semana da Páscoa. O Jurandir e seu vizinho foram caçar passarinhos na mata da propriedade dele e levaram provisões e munição para passarem o dia lá. Depois de exaustiva caminhada sentaram-se sob frondosa árvore e trataram de carregar suas espingardas quando encontraram uma meia dúzia de passarinhos no chão, mortos. O vizinho riu-se da tragédia alada e achou tratar-se de caçadores não convidados e invasores de propriedade alheia e, sendo assim, trataram de esquecer os passarinhos e caçar os caçadores. 
Andaram por toda a terra do Jurandir, vasculharam cada matinho, cada arbusto e ergueram tantas pedras quantas lhes foram possível erguer. Não encontraram nada, nem sinal de pegadas, galhos partidos, cartuchos disparados. Chegaram à conclusão que aqueles passarinhos deveriam estar mortos há dias pelos incautos invasores que fugiram sem leva-los.
Voltaram para o ponto de partida e já não encontraram mais os passarinhos no chão e preocuparam-se deveras porque poderia ser que o desaparecimento dos corpos fosse obra de onça, ou de javali, e ficaram em dúvida se javali comia passarinho ou não, porém por via das dúvidas resolveram fazer outra busca pela mata.
Se fosse onça, aqueles cartuchos de espingarda de pressão só fariam cócegas e era acertar ou correr e começaram a ficar com medo, inclusive de javalis. Arrumaram as armas e quando voltaram àquele ponto de partida não puderam mais andar, pois que era tão grande a quantidade de passarinhos mortos pelo chão que faziam pequenos montes aqui e ali, impedindo que eles avançassem e eles iniciaram – cada um por si – rezas silenciosas, porque aquilo era obra do capeta e não da natureza e tampouco de invasores. O vizinho do Jurandir tratou de ajoelhar porque estava tão assustado que lhe faltaram as pernas e ele nunca tinha visto nada igual em sua vida, e cruzou as mãos enquanto balbuciava palavras ininteligíveis e apavoradas e o Jurandir – para se mostrar mais corajoso que aquele ajoelhado – deu um tapinha nas costas do amigo e disse que sendo assim estavam economizando cartucho e pontaria e ele já não estava mais tão bom das vistas como há trinta anos atrás. 
Bastavam-lhe que ajuntassem o que iriam comer mais à noite. O vizinho não acreditou naquelas palavras embusteiras, pois via um fio grosso de suor escorrendo pela testa do Jurandir e lhe disse que também se ajoelhasse porque estavam vivenciando coisas do além, que fechasse os olhos e rezasse porque aquela miséria na frente deles não era normal.
O Jurandir muito a contragosto ajoelhou-se também e fechou os olhos e nenhuma oração lhe vinha à mente e arrependeu-se de dormir durante as novenas no Frei Leonardo e ficaram os dois assim, tomados pelo medo e pelo desconhecido e quando o vizinho abriu os olhos, aquela montoeira de pássaros mortos não estava mais lá. Desabalaram numa correria de dar dó, esqueceram tudo naquele local e então os pássaros começaram a cair em cima de suas cabeças, como uma chuva sem precedentes e machucavam todas as partes do corpo aonde batiam para depois estatelarem-se ao chão e eles olhavam para trás e aqueles pássaros que antes caíram em suas cabeças não existiam e no horizonte se via uma nuvem escura de aves a avançar-lhes e os passos apavorados de homens impotentes perante o sobrenatural.
Foi quando caiu um urubu em cima da cabeça do Jurandir que ele caiu no chão desmaiado pelo impacto. O vizinho voltou para acudir e dava tapas esbaforidos no rosto do amigo enquanto mais e mais pássaros caíam em cima deles sem piedade, para depois sumir e voltar com força ainda maior como se de um deles se fizessem dois e assim sucessivamente até que o vizinho tratou de deitar sobre o corpo do Jurandir para protegerem-se os dois daquele inferno pascoal. O piar daquele exército era ensurdecedor e mal se podia respirar ante o ataque inusitado das milhares de penas que iam se amontoando sobre eles, enterrando-os numa fofura impossível de descrever.
O Jurandir por fim acordou com o peso do amigo sobre si e tentou desvencilhar-se daquele contato indesejado e não sabia onde estava e inconscientemente saiu apalpando a cinta para pegar o revólver, mas estava tudo nebuloso, sem ar, sem o silêncio da mata, só os gritos do vizinho em seu ouvido lhe davam conta da gravidade da situação.
Achou o revólver e começou a atirar a esmo, para que tudo se aplacasse enfim e gastou todas as balas e acabou dominado pelo cansaço da empreitada e conseguiu tirar o vizinho de cima de si com um supetão e descobriu aparvalhado que o amigo era desmaiado. Decerto de tanto lutar contra aqueles pássaros e passou a mão na cabeça e sentiu que estava molhado e olhou os dedos e constatou ser sangue e desmaiou logo em seguida, pois não era muito forte para ferimentos.
Acordaram os dois com os chacoalhões dos familiares que se assustaram com os tiros de revólver e resolveram ir atrás para saber o que acontecia e esperaram respostas que não puderam ser dadas porque ninguém acreditaria numa história dessas e tentou mostrar o ferimento na cabeça – que ainda lhe doía – mas também, assim como os pássaros, não estava mais lá.


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2 comentários:

  1. Acho que foi A Vingança dos Pássaros Assassinados!
    Adorei!

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  2. Hahahaha, quem manda caçar passarinho?? Coitado do delegado. Obrigada ana pela leitura, beijos Michele

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