quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Hora de agradecer

Queridas Leitoras e Queridos Leitores,


muito obrigada pela presença aqui em nosso canto neste ano de 2016, que agora está chegando ao final.  Até o dia de hoje foram 52.140 visualizações nas diversas postagens. Uau!

Neste ano, após longa pausa, voltamos ao ritmo normal de publicações. Todas as quartas-feiras tentamos trazer a quem nos acompanha um novo causo, um novo conto, uma nova história e, sempre, boas energias. 

Voltaremos a publicar todas a quartas a partir do mês de janeiro de 2017, se Deus nos permitir. Temos algumas coisas já preparadas, mas há ainda bastante espaço para boas surpresas. Assim sendo, não façamos tantos planos, vivamos simplesmente o melhor que pudermos um dia de cada vez. 

Agradecemos muito a presença, o carinho e eventuais comentários. Também as críticas são sempre bem-vindas, em suma: somos gratas por sua participação! 

Desejamos a quem prestigia nosso blog uma entrada de ano tranqüila, serenidade e energia para viver o que nos trouxer o novo ano. 

Boas Festas!

Com gratidão e carinho,
Helena e Michele

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O Trato e as Mensagens


Por Helena Frenzel

Olhe, eu não gosto de escrever não. Aliás eu morro de preguiça de escrever, mas o trato foi o seguinte: se eu contasse o causo ela me deixaria em paz. Eis que Ella me aparecia em sonhos e quanto mais eu me negava a contar sua história menos ela se dispunha a me deixar dormir. Um dia, à beira de um ataque de nervos, cedi, contei tudo como ela me contou, tim-tim por tim-tim.

Tudo começou naquela tarde, quando eles chegaram sem aviso. Ella havia passado o dia inteiro limpando e organizando coisas, e enquanto limpava e organizava tralhas tinha a sensação de que sua vida não passava daquilo, de uma tralha limpa e organizada. 

Estava cansada, do trabalho e daquela vida de rotinas, pois até no trabalho ela organizava, ainda que fossem bytes, e aqui falo do trabalho que fazemos e alguém por ele nos paga, não daqueles trabalhos que sempre fazemos de graça e quase nunca recebemos sequer um "obrigado!" 

Se bem que, ao mesmo tempo em que sentia enfado, Ella se percebia quase feliz por ter uma vida tão previsível. E por isso se dizia grata, mas se era realmente… não sei.

Desde pequena cultivava o gosto de não andar pelas casas alheias. "Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz" foi um dos mantras de sua infância, ela me disse, e era também o que ela repetia para a filha que, ao contrário da mãe, era muito sociável. 

Quase todos os dias a menina recebia convites para brincar nas casas dos amiguinhos e por conta disso seria provável que os pais dos amiguinhos pudessem ter se achado no direito de autoconvidar-se a visitar os pais dos amiguinhos dos filhos sem pré-aviso. 

E foi isso o que um grupo deles fez naquela tarde. Ella atendeu à campainha e eles foram logo entrando (sem cumprimentá-la) e buscando acomodação, parecia que estavam entrando num local em que eram muito bem-vindos, como num restaurante do qual fossem velhos fregueses com lugares cativos. Só faltou pedir "o de sempre" e a comparação ao restaurante estaria perfeita, ela me disse. Em sua sala não havia mesas separadas, como é comum nos restaurantes, mas os autoconvidados foram se acomodando em grupos animados nos diversos cantos do recanto. 

Não paravam de contar coisas, animados, enquanto se livravam de seus pesados e fétidos casacos e parecia até que Ella não estava presente, tanto para os autoconvidados (melhor dizendo: os invasores) quanto para si, pois não podia crer na petulância daquele grupo chato de pais e mães. O que queriam e como assim chegar sem aviso? 

Bom, se Ella parecia não ser vista era de se esperar que não fosse ouvida também. Algumas mulheres do grupo se levantaram e foram até a cozinha abrindo armários e gavetas à procura de pratos, copos, talheres, comes-e-bebes, saqueando a geladeira como se a casa de Ella fosse uma extensão de um clube de pais e mães. E eles tinham uma cozinha própria também no clube? Desde quando?, ela se perguntou moldando no rosto uma expressão incrédula ao ver sua casa virada em pub e, pelo susto, não conseguia articular palavra, se bem que o olhar bastasse para expressar todos os impropérios que a estavam impedindo até de respirar naquela circunstância. 

Quando sentiu que a erupção viria inevitável e devastadora, porque raiva não se represa, Ella, prevendo os estragos irreparáveis daquele tremor, pegou a filha pelo braço e tratou de sair o mais rápido que pôde daquela casa, na qual passara muitos dias perdidos de sua vida limpando e organizando tralhas. Em passos rápidos e impulsivos, depois correndo, foi deixando para trás (e surpreendeu-se com a falta de apego) as coisas que não tinha mais a certeza se podia chamar de suas, e era como se deixá-las com aquele grupo de invasores não lhe doesse nada ou não lhe doesse tanto quanto cria que doeria —chegado o momento crítico da separação. 

A única coisa que Ella desejava era distância daquele povo, daquelas mães que falavam de outras que viviam postando tudo sobre os filhos nas redes sociais, mas que no fundo faziam a mesma coisa, pois ninguém podia sentar-se ao lado de uma delas num parquinho sem correr o risco de ter de ficar ouvindo (por horas a fio) as últimas conquistas de suas filhas ou filhos, ou ambos. Era o inferno na Terra... um parquinho cheio de mães. 

E Ella saiu correndo puxando a filha, e a filha corria porque Ella a puxava, Ella corria sem saber para onde ia e a filha corria olhando para trás como quem dissesse não estar entendendo nada, mas que sabia que era melhor correr. Era uma filha pequena ainda, nos anos menores que seis. 

As duas correram por umas ruas desertas de gentes e cheias de casas e parece que correram léguas sem se cansarem, pois a respiração seguia tranqüila (inacreditável!), contrariando a pulsação. Isso porque, nos respectivos peitos, os corações das duas saltavam mais do que milho virando pipoca, e nesse pipocamento Ella pensou que queria entender a anatomia e a geografia (nos sonhos) e não soube dizer por que estaria pensando naquilo já que aquelas ruas e aquela fuga eram muito reais. 

Bom, era final de tarde e era novembro, quando escurece mais cedo no hemisfério norte da Terra em que fomos paridos. Pode não ter sido nada disso, mas Ella teve a sensação de que a escuridão ia aumentando à medida em que elas corriam e, num momento, ela percebeu que as luzes dos postes estavam acessas e que as pessoas estavam dentro de suas casas, provavelmente jantando. 

Eram umas cinco da tarde, mas parecia já umas dez da noite por conta do breu, e só quando deixaram de correr e voltaram a caminhar em normal ritmo, foi que Ella e a filha começaram a sentir frio e ela percebeu que haviam fugido sem sequer um agasalho. 

Com medo de que se resfriassem Ella criou coragem de tocar na campainha de uma das casas e pedir ajuda e abrigo. Ela poderia ligar para o marido, pedir socorro, dizer que não se assustasse quando chegasse em casa e encontrasse a farra daquele grupo folgado de pais e mães. 

E pensando nele lembrou-se que aquele lá também vivia num mundo paralelo e que era capaz até que não percebesse nem a farra do grupo e nem as mudanças quando voltasse para casa (cheio de trabalho para casa) por volta das cinco. Mas alguma coisa Ella tinha que fazer. 

Abriu-lhe a porta um senhor simpático que sorria e Ella contou apressada que tinha saído correndo de casa, literalmente, que esquecera agasalho, celular e que precisava, se não fosse muito incômodo, de um lugar aquecido para aguardar por algum tempo e de um telefone para pedir ao marido que apanhasse as duas mais tarde, ali onde se encontravam. O senhor seguiu ouvindo, ainda sorrindo simpaticamente, e alargou a abertura da porta para deixar as duas entrarem. 

Lá dentro estava aquecido e o fogo na lareira era convidativo. Uma senhora igualmente simpática lia um jornal e não pareceu querer distrair-se para saber quem eram aquela mãe e aquela filha ou o que estavam fazendo ali com caras de frio. Por incrível que pareça Ella não se incomodou com aquela atitude nada empática da simpática senhora, que lhe pareceu muito natural porque quem está lendo geralmente não gosta de ser interrompido e trazido à força de volta ao mundo real, e os jornais de hoje em dia estão que só feitos de histórias fantásticas, surreais, daquelas que não se consegue mais encontrar em bons livros de fantasia e ficção —a concorrência está desleal. 

O senhor (que já não sorria) apontou o telefone enquanto sentava-se numa poltrona e retomava o seu jornal. Ella ligou para o celular do marido e como ele não atendeu, como quase sempre fazia, deixou uma mensagem na caixa postal e deu o endereço da casa do senhor simpático pedindo que, por cortesia, fosse buscá-las lá. E tendo feito isso, buscou, com a filha, um lugar no sofá, perto do fogo e longe do frio. 

O senhor simpático agora lia o jornal e mostrava uma expressão de riso diante das fantásticas histórias. Ella conseguiu ler na manchete de uma página que o ditador da Bugia estava exigindo a volta da pena de morte. Provavelmente para poder sumir legalmente com quem fosse crítico ao seu governo. E ainda têm a coragem de dizer que a Bugia é um país democrático… tsc, tsc, tsc —ela pensou mas não quis comentar e achou melhor deixar o casal simpático com seus jornais (e seria mesmo um casal casado, se é que isso importava) e ocupou os olhos observando o local. A filha —se pelo susto, pelo frio ou pela pouca idade— não demonstrava ter vontade de agir ou falar, limitando-se ao silêncio e a fazer tudo o que lhe pedia ou indicava a mãe.

Ella não teve tempo para pensar sobre o que estava observando no recinto porque, no segundo seguinte, soou a campainha e o senhor simpático pôs uma cara nítida de enfado (por ter sido outra vez tirado da leitura do seu jornal), levantou-se e foi resmungando até a porta. E eu sou imensamente grato por ela não ter tido tempo para ficar observando detalhes que me obrigassem a uma descrição bordada do local, coisa que odeio! Ainda mais porque não escrevo por gosto, escrevo porque quero a minha paz, e se for para me fazer críticas neste sentido sugiro que deixe de preguiça você também e imagine os personagens e os lugares. Estou lhe dando total liberdade interpretativa, quer coisa melhor?

Pois bem, mas voltando à campainha, Ella sabia que não podia ser o marido, porque não havia ainda nem cinco minutos da chamada e os serviços de telefonia eram rápidos mas não tão rápidos assim. O senhor (de novo mais simpático) voltou com um amigo da família que, logo descobriram (mas que coincidência!), era também um velho amigo de Ella e, de alguma maneira, ela não se surpreendeu ao encontrá-lo ali, porém não teve tempo nem vontade de pensar a respeito daqueles sentimentos e acasos porque o amigo recém-chegado, como se a visse todos os dias, foi logo perguntando o que ela ali fazia (na casa daqueles velhinhos) e neste momento Ella desejou que tivesse consigo um gravador-Zinho com o qual sempre andava e que tivesse já nele, gravada, a explicação que deu antes ao simpático senhor. E o gravador-Zinho não estava à mão, mas foi como se tivesse sido usado, pois Ella repetiu ponto por ponto, vírgula por vírgula rapidamente a história que contou ao velhinho, que também não vou lhe contar porque me dá uma preguiça e como eu já disse só estou contando esta história para poder dormir mais uma vez. Então que fique bem claro: não me preocupo com você. Aliás, por que cargas d’água eu deveria preocupar-me? 

Sim, mas voltando ao causo, o fato é que o amigo ofereceu-se para levar as duas para casa e naquele momento Ella se encolheu porque pensou que voltaria para aquela farra de mães e pais e teve a sensação doída de que um ácido lhe queimava o estômago. Então pediu ao amigo que por favor tirasse as duas dali mas que não as levasse para casa porque não queria aparecer no jornal do dia seguinte como a mãe tresloucada que assassinou aquele grupo de pais chatos, e também o marido, que vivia em outro mundo, e também o amigo, que levou as duas de volta para aquela casa em que ela só conhecia limpeza e organização. E disse tudo isso num átimo e olhou para a filha, que não merecia ficar sem os pais e nem com os amiguinhos órfãos, e olhou para o amigo ainda em tempo de notar-lhe o assombro e a falta de cor e chão. 

Ella, mais que depressa, não querendo que ele se sentisse na obrigação de cuidar delas, repetiu que só queria que ele fizesse o favor de levá-las dali para um outro local seguro e apertou a mão da filha para ter certeza de que a pimpolha ainda vivia. Não se preocupe, vou levar vocês para um lugar seguro, disse o prático velho amigo. E as duas se foram com ele, cada uma enrolada num cobertor emprestado dos velhinhos, mas antes de irem Ella ainda pediu ao senhor para usar o telefone mais uma vez, e este foi um grande erro porque então o senhor ficou zangado e explodiu, não pelo telefone, mas porque não queria mais que lhe interrompessem a diaba da leitura e mandou que Ella usasse a porra do telefone sempre que quisesse e que não perguntasse mais nada e Ella tratou de tapar rapidamente os ouvidos da filha com as duas mãos em concha, para que não se sujassem tanto com a porra daquele senhor. Mas as palavras não são sujas, elas apenas levam adiante as intenções de quem as usa. 

E Ella também não se assustou com a reação do senhor, agora descontrolado, pois entendia-o muito bem. Não gostava quando a interrompiam ou quando tiravam a sua paz, como havia feito aquele grupo asqueroso de pais e mães que só pensavam em se reunir para falar de filhos e filhas e Ella correu ao telefone e ligou para o marido dizendo que ela e a filha se iam com um velho amigo e que depois lhe telefonaria dizendo onde poderiam ser encontradas. 

Mais uma vez a mensagem ficou na caixa postal, porque o marido não gostava de ser interrompido quando estava no trabalho, embora já passasse das cinco, hora que ele, por hábito, deveria estar em casa ou por chegar. E o amigo? Esse passou o tempo da porra só observando, nada expressou. 

E para não correr o risco de levar outro esporro, Ella escreveu num papelzinho: "Muito obrigada pelo abrigo e pelas ligações. Depois lavo e devolvo os agasalhos. Deus lhe pague esta generosidade! Desculpe ter interrompido a leitura do seu jornal". Agradeceu só a ele, porque a senhora simpática seguia lendo o seu jornal, alheia a todo o resto. 

Então, agasalhadas, saíram as duas em companhia do amigo, o mais silenciosamente possível, deixando o papel dobrado sobre o sofá macio que até então haviam ocupado naquela sala não descrita. Entraram no carro do amigo, que era um carro preto antigo, e partiram. Desde então seguem viajando, as duas e o amigo, o que não deixa de fazer sentido, pois Um Lugar Seguro é um destino impossível de ser encontrado, não é verdade? E a Física dos sonhos não é a mesma da realidade, bem lembrado.

Bom, Ella me apareceu várias vezes em sonhos com um olhar vago perdido perguntando se o marido sequer ouviu as mensagens na caixa postal ou mesmo se o senhor simpático teria lido o bilhete. Ella imagina que as mensagens tenham se perdido em algum satélite e que um vento traiçoeiro (vindo da porta que se fechou vagarosamente quando os três saíram —e age a Física dos sonhos outra vez!— soprou na lareira o bilhete que ela deixara dobradinho sobre o negro sofá. O fato é que nunca saberemos, por isso ela praticamente me obrigou a escrever esta história, na esperança de uma resposta, seja do senhor simpático ou do marido ocupado.

Já eu, a única coisa que me pergunto é o que teria sido se Ella, ao invés de ter fugido, tivesse simplesmente dito àqueles pais e mães metidos que estava cansada, e que por isso não queria visitas naquela tarde, que queria só a paz da sua casa limpa e arrumada e que estava esperando o marido para que pudessem, seriamente, conversar. A verdade, nada mais do que a verdade, por vezes funciona. Teria funcionado? E se…? Não sei! Só sei que essa pergunta move as mãos dos escritores (e eu não sou um deles, você já sabe) e a Literatura, sem a qual não sei viver, pois leio com prazer e amo paradoxos. Por isso eu digo que fins, esta história pode até ter vários, porém o certo é que não tem final nenhum, pois se Ella me deixou em paz… aí já é outro causo!


Para Mayra, pelo insight. 
Para Michele, que me ensinou a amar causos.








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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Panela preta


Por Michele C. Marchese

Foi num instante tardio que sentiu o cheiro de queimado. Alguns segundos antes salvariam a canjica do calor inclemente do fogão a lenha. Nem lembrava quanta lenha havia posto no fogão e quando? Decerto que não muitas, já que a porta era razoavelmente pequena, e cheirava a doce, e ergueu as sobrancelhas como num pasmo atrapalhando-se com as toalhas para pegar a panela da canjica jazida. Jogou-a em cima da pia num arremesso de bailarina que estreia para uma multidão de quinhentas pessoas pondo em risco o dedo mindinho que ficara fora da toalha e queimara como seus milhos. Beijou o dedo e meteu-lhe debaixo da torneira enquanto sibilava amaldiçoando tudo e todos. 
Restou-lhe jogar aos porcos aquele doce intragável quando o marido, um bruto por natureza e em cada ocasião possível, reparou a panela de alumínio que comprara na cidade e cujo fundo negro lhe dissipou o pouco bom humor do dia.
Pediu-lhe o que havia acontecido e pelo fato da pergunta ter sido feita em uma voz melodiosa, ela, de costas para ele, respondeu que fazia canjica para as visitas que não tardariam em chegar. Espantou os cabelos do rosto com um sopro e avistou a carroça se achegando na entrada da casa. Pois que haviam chegado naquele exato instante em que olhara para o marido a dizer que deveriam recebê-los como mandava a boa educação e ele, cumprimentando com um simpático aceno de mãos, pegou a panela das mãos da mulher e mostrando às visitas aquele pedaço incômodo de alumínio sujo de milho e parou um a um para mostrar o fundo enegrecido pela queimadura do mimo que seria oferecido naquela tarde e essa demonstração ingrata não poupou nem as crianças, que ficaram com medo daquele homem com a panela na mão e foram se esconder entre as saias de suas mães.
Então começou com os piores despautérios a respeito das poucas habilidades culinárias dela e o quanto havia pagado pela dita panela como um presente de aniversário e agora ela estava ali, praticamente imprópria para o uso. Uma das visitas, para amenizar o mal-estar que se instalara de imediato, ainda mais com a mulher de cabeça baixa ao lado do marido a torcer as mãos na humilhação, sugeriu que se jogasse fora e se comprasse outra porque eram baratas e o marido olhou aquele esbanjador de uma figa e que decerto havia herdado o dinheiro que tinha para gastar e não conseguido como ele, através de muito suor e trabalho braçal. E ainda por cima dava ideias de jerico às mulheres pasmas que estavam ali.
Instalou-se um silêncio aterrador. Todos se olhavam pensando ser aquela visita um grande erro de decisão e o compadre, para não incomodar ainda mais a crise conjugal subiu de volta na carroça enquanto o marido olhava a perscrutar a esposa a respeito de quem havia convidado aqueles pedantes que agora se achavam em silêncio na frente da casa. A esposa tratou de manda-los entrar, pois que as crianças já estavam às voltas brincando pelo pátio e não se apercebeu que o marido lhe entregava a panela queimada para que fosse lavar imediatamente sem chance de esperar para depois. Mas o que é isso? Pensou ela, e pegou instintivamente a panela das mãos do marido e encostou-a num canto qualquer da cozinha que agora abrigava aquelas famílias de compadres que estavam cansados da viagem e que decerto estavam sedentos e o marido antecipou-lhe os pensamentos e ofereceu uma jarra com a água pestilenta do seu ódio pela mulher. Ela lavaria depois ou jogaria fora conforme havia sugerido aquele compadre, e riu-se imaginando que o marido teria uma síncope caso fizesse isso e um esplendor de beleza perpassou pelo seu rosto jovem de mulher; aquele pensamento de viuvez por causa de uma panela não era de todo um incômodo, há muito a incomodava as ranhetices daquele bruto que escolhera para casar. 
Seus pensamentos foram interrompidos quando o marido ajuntou a panela daquele canto da cozinha e colocou muito delicadamente na pia para não assustar as visitas e fez sinal com os olhos de que era preciso lavar, e logo. Ela obviamente não entendeu, pois tinha sido o marido que convidara aqueles compadres para aquele colóquio e por fim agora a mandava lavar uma panela? Oras, mas é o fim do mundo mesmo, pensou, pois não era capaz de verbalizar o que lhe ia ao íntimo. 
Ele não arredou o pé do lado dela com escovas e sabões e não se sentou à mesa com os convidados e tampouco conversou amenidades sobre o tempo ou chamou a atenção de alguma criança incauta, apenas cutucava-a com os apetrechos na mão e que aquilo teria que ter fim, não poderia deixar a panela daquele jeito.
Maldita canjica. Olhou para as visitas que olhavam para ela em plena estupefação e esperando que tomasse alguma atitude, alguma atitude nobre que colocasse aquele infame em seu devido lugar e ela estendeu a mão para pegar o sabão e ouviu ou pensou ouvir um suspiro de resignação da comadre e ela tinha a cabeça baixa como a querer fugir daquela cena extremamente desagradável e todos, com exceção do marido, esperavam aquela maldita atitude que tornaria tudo mais aceitável e o ar mais respirável. Ela notou que não beberam da água aguardando acontecimentos que ela nunca tivera coragem de fazer em vida, alagando a alma com as palavras nunca proferidas mediante algum rebaixamento que o marido lhe impunha severamente e arduamente por todos os anos de seu estéril casamento.

Maldito presente. E com a mão ensaboada deixou cair a panela no chão assustando todos, inclusive aquele marido que não se amedrontava por nada e quando abaixou-se para pegá-la novamente, um impulso mais forte que si mesma, avalizado pelos olhares ardentes dos compadres sentados à mesa, jogou pela janela a dita cuja suja, enegrecida pelo fogo das entranhas dela e peitou o marido numa atitude única em sua vida e enxugou as mãos no avental sem proferir uma palavra sequer e diante da inacreditável atitude, restou ao marido vê-la arrumar os parcos pertences num lençol e chamar as visitas que estavam prontas na carroça premeditando enfim o triste desfecho daquele casamento e a levaram embora, para nunca mais voltar.


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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Cozinhando galo...

Por Helena Frenzel

O que significa cozinhar galo? Juro que não sei! 

Quem jura mente, bem sabemos, mas cozinhar galo, no entanto, é uma expressão que me leva de volta à minha boa infância lá no Maranhão, e esta é a única coisa que sei com certeza a respeito desta frase: onde eu costumava ouvir e usá-la. 

Sempre que eu enrolava para fazer um determinado serviço, lá surgia minha tia com esta expressão: "Está cozinhando galo, menina?" Eu não entendia direito o que ela queria dizer com aquilo, mas estranhamente eu começava a me apressar e o serviço terminava saindo.

Que galináceos inspirem a preguiça nas pessoas... bem, isso é algo difícil de se crer, ainda mais porque esses bichos dormem e acordam com o Sol, enquanto tem gente que gasta o dia na cama ou balançando na rede (real) se entupindo de tudo o que encontra nas redes sociais. Mas atrasar uma tarefa e demorar a efetuar o que lhe foi pedido... bem, o que isto teria a ver com os galináceos? Estou por descobrir. E por isso este textículo*, e não se esqueça de aqui pronunciar o "x" como em "táxi", para evitar ambigüidades (risos).

Ao usar esta expressão me peguei pensando se cozinhar galo é mesmo uma tarefa árdua. Não me parece ser, porque cozinhar (de fato) é a tarefa do fogo, o problema da pessoa é preparar o galo para cozer. Nem disto posso falar com propriedade porque nunca cozinhei um, não no sentido literal, e hoje em dia, com essa onda de veganismo, é pouco provável que eu tenha que cozinhar um galo ou uma galinha algum dia, mas se eu tiver que fazê-lo ainda lembro bem de como se faz, graças a quem me ensinou a sobreviver sem latas e congelados.

Mas será mesmo verdade que a carne do galo requer mais tempo para cozer do que a da galinha? Por quê? Teria o galo um outro tipo de carne? Bem, "um outro tipo de carne" talvez não, mas quem sabe músculos mais "treinados"... E se a questão for só o "treinamento", será que se as galinhas começassem a levantar peso as diferenças desapareceriam? Ou será que no caso do galo e da galinha não se pensa em gênero e construção, fica-se apenas na biologia? Ou será que nós é que não sabemos nada sobre a sociedade desses bichos e seus problemas porque não nos interessamos em estudar a fundo seus comportamentos? Bem, são muitas questões... Algumas bobas; outras, nem tanto. Releve!

Imagino que alguém já deve ter feito algum estudo quando recordo aquele filme Chicken Run, sobre galos, galinhas e seres humanos. Recomendo-o aliás, muito bom! Eu poderia ainda tentar entrevistar criadores de galináceos, mas essas pessoas estão cada vez mais raras em nosso mundo ultra super digital rápido, um mundo em que nos supermercados só se encontra congelados ou pó-Zinhos para o micro-ondas e as crianças se assustam (de verdade) ao verem soltos seja um galo, uma galinha ou um porco, que já viraram animais de zoológicos e por lá vivem trancafiados catando o milho dos visitantes.

Há dúvidas ainda quanto ao sentido mas estou segura de que não estou cozinhando galo ao pensar e escrever sobre isto. Aliás, eu NUNCA cozinho galo quando sento para escrever, pois cozinhar galo me parece algo improdutivo, um ócio desperdiçado… E escrever, para mim, é tudo menos isso: desperdício. Cozinhar galo seria então, resumindo, sinônimo de matar o tempo, enrolar e protelar (agora falaste bonito!). 

Parece que também é uma expressão que surgiu no futebol, no jogo do bicho ou nas rinhas de galo, mas aí já não sei, pois não manjo de nenhuma delas. É provável que exista também em Portugal e em outros países lusófonos este cozinhar galo na rede, salgado de mar e secado ao sol equatorial dos trópicos. Taí, ao invés do galo cozido poderíamos ter também, a exemplo da carne-de-sol, o galo-de-sol, ambos com hífens. Mas por aqui paro!






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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A inconsciência


Por Michele Calliari Marchese

Deitara na cama para dormir. Não estava com sono, apenas com aquela falta do que fazer, pois já tinha feito tudo, tudo, desde regar a horta até espanar o pó dos móveis com uma morosidade quase cansativa e pensava, pensava, pensava, pensava em tantas coisas como aquele domingo poderia ser tão maçante, tão sem nada, as horas arrastando-se lentamente, se pelo menos fosse já o entardecer decerto teria um vislumbre da noite para findar aquele dia tão improdutivo; todos os domingos eram assim, pensou. Trocou de canal na televisão sem assistir a nada, e lembrou que teria que comprar pilhas para o controle senão ficaria sem em poucos dias, pois havia comprado a televisão há muitos anos e nunca havia trocado as pilhas, como duravam, nem sabia o tamanho que teriam e resolveu abrir a tampa para verificar o tamanho delas e uma pulou para fora caindo para debaixo da cama. Deixou a pilha lá, inerte no meio daquele chão imenso, aquele esconderijo de pilhas e notou que ele também se escondia em seu enorme esconderijo caseiro, inerte, tolo talvez para não ver o rico dia que fazia lá fora, ou escutar o pio dos passarinhos e lembrou que seu pai lhe dizia que quando as andorinhas revoavam pelo céu, era porque começara o verão.
Levantou-se da cama. Recolheria a pilha e procuraria alguma andorinha, talvez tomasse um sorvete ali na esquina e pensou quando viu as pombas depositando gravetos no peitoril da janela que falta faz meu pai nessas horas, pois discutiríamos o avanço irrefreável da população daquelas aves citadinas, porém nunca mexeríamos nos ovos postos ali, com a maior confiança que de ninguém ousasse mexer neles, tenros, a vida se fazendo aos poucos dentro de uma casca branca, pequena, pensariam? Acho que não. 
Lembrou-se de sua discussão com um amigo sobre a questão da felicidade e da morte, especulações para uma vida inteira, dizia esse amigo. Onde estaria? Nunca mais ouvira falar nele, se tinha ido embora, se não, procuraria o telefone e ligaria mais tarde para ele, para pedir como vai a família, o trabalho e as questões da felicidade e da morte tão intensamente faladas naquele dia onde o vinho era bom e a companhia melhor ainda. Lembrou-se de uma palavra que ele disse: “panvitalismo”, que tudo tinha vida, desde a pedra até a nuvem. Nunca acreditou. Por isso, achava, havia perdido o amigo. Olhou a pilha na palma de sua mão e riu-se pensando que se ela tivesse vida, quando findaria? Quando acabasse a bateria decerto, e que vida era aquela, presa dentro de uma caixa preta, sem ver a luz do sol, somente enviando energia para o controle remoto funcionar, se não funcionasse mais enterraria aquela pobre alma positivo-negativa no cemitério das pilhas, dentro de uma caixa encostada em algum canto qualquer. Eram inconscientes aqueles seres inertes, porém com vida e que nos rodeavam: mesas, cadeiras, réguas, tesouras, teriam sentimentos? As unhas? Os cabelos sentiam? Se fizerem parte de um ser sentimental, os cabelos também sofriam com os sentimentos? Riu-se desse atroz pensamento e levantou os olhos jurando de mãos juntas que nunca mais pentearia os cabelos para que não se machucassem, coitadinhos. Ligaria para o amigo sim e falaria sobre tudo isso que pensava e analisava como poderiam as coisas ter vida. 
Sabia exatamente a reação que seu amigo teria, de mudez, da não respeitabilidade, do sofrimento em ver alguém que não comungava com os mesmos sentimentos que ele, um eterno sentimental, um cuidador de coisas e sentimentos alheios, ele mesmo o próprio ser panvitalício. Não perderia essa discussão por nada na vida, mas não achava o telefone e não havia ainda largado a pilha e sentiu o braço doer de repente; encostou-se à parede segurando o braço e largando a pilha que caiu fazendo barulho no chão e riu-se dizendo “coitadinha, machucou?”.
Sentiu outra fisgada no braço que fez com que caísse no chão estertorando de dor e logo uma náusea profunda invadiu todo o seu corpo e pensamento, seguido de uma luz muito forte; antes do desmaio abriu infimamente os olhos e deu de cara com a pilha próxima de si talvez a rir-se das elucubrações feitas anteriormente e um breu terminou por encerrar as pálpebras, deitado em algum lugar, sem pensamentos, inconsciente.
Os minutos passavam rapidamente. Lembrou-se que tinha que ligar para aquele amigo sobre aquela palavra que não conseguia mais lembrar, sobre o que, qual era o assunto. Por que havia uma pilha no chão não sabia precisar, nem tentou levantar porque não podia e nem queria, havia terminado o domingo? Novamente a inconsciência. Os minutos passavam rápidos e incólumes pelo tempo da vida, uma luz muito forte o fez assustar-se e questionar o que fazia deitado no chão, ao lado de uma pilha AAA. Aquele amigo já havia saído? “Que dor é essa que sinto pelo corpo todo?” e em seguida um torpor de alívio o invadiu, e escutou o silvo de uma campainha a tocar insistentemente. Fechou os olhos.
Sentiu um solavanco chacoalhando todos os ossos do seu corpo e alguém a sacudi-lo com força e determinação. O domingo havia terminado, amanhã é segunda-feira, dia de recomeçar. Hoje é segunda-feira? Os filhotinhos das pombas haveriam nascido; a pilha jazendo numa caixa de entulhos e descartes, o telefone do amigo em cima da mesa, o telefone fora do gancho, o pai a lhe chamar para verem as andorinhas revoando silenciosamente através das árvores vivas e verdejantes. E então novamente a dor no braço, porém com uma sensação de bem estar de imortalidade que encaixou de chofre em seu peito, respirou longamente, ainda era domingo, poderia usar a pilha por mais algum tempo e admirar as andorinhas revoando junto com as lembranças de seu pai distante. Dormiria somente depois que falasse com o amigo.

Tinham muito a conversar.

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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

E a palavra é...

Co- ti- di- a-no

Aprendendo outras línguas o normal é que o aprendiz, a um certo ponto, comece a misturar os idiomas. Foi o meu caso com co-ti-di-a-no, que em italiano se escreve com "quo", assim: quo-ti-di-a-no e se pronuncia cuo-ti-di-a-no, porque em italiano sempre se pronuncia o "u" no "qu", entende? Não tenha medo do som das palavras, brinque! Aliás, não tenha medo das palavras. Medo, se você tiver que ter, tenha de quem as usa de forma má ou leviana, pois que de "boas" intenções… hum-hum-hum… o inferno está cheio! Porém, o melhor mesmo é que você não tenha medo algum, nem preconceitos lingüísticos!

Maior ainda fica a mistura quando o aprendiz, falante nativo de uma língua como o  português, por exemplo, começa a aprender simultaneamente italiano e espanhol, igualmente vindas do latim. Em espanhol também se diz co-ti-di-a-no, mas a pronúncia é distinta no "ti" e no "ano", com o "a" mais aberto do que se costuma fazer no Brasil, em certas regiões,  e o "ti" menos africado, ou seja: um "ti" com mais ar entre dentes e menos língua no céu - da boca, menino, não vamos confundir! - E sim, é preciso SIM destacar português brasileiro, porque no português angolano ou no português português os "cotidianos" são os mesmos, porém outros. A única coisa que sei é que todas as variantes lingüísticas são belas e distintas, e viva a diversidade! 

Sim, mas que carga tem esse co-ti-di-a-no, essa coisa "que se hace o sucede cada dia", como se define em espanhol, es decir: o diário, o costume, o habitual, "o que é comum a todos os dias", o que é banal, diurnal, cociente ou quociente, de quotiens, quantas tantas vezes, "conjunto das ações praticadas todos os dias e que constituem uma rotina", o dia a dia, que em alguns lugares ainda segue com hífens no quotidiano, com "ku", que em italiano também é sinônimo de diário e de jornal, que em espanhol é periódico, aquelas folhas que alguns ainda leem pe-ri-o-di-ca-men-te, seja impresso em papel-jornal ou na forma de bytes bordados e exibidos num leitor digital, mas leem. E são pouquíssimos, eu acho.

Diariamente vou seguindo minha vida, brincando com as palavras sejam elas substantivos -como em "o cotidiano"- ou adjetivos -como em "a luta cotidiana" e "o respeito cotidiano", que cada dia que passa se tornam coisas mais raras (para não perder o fio e a  oportunidade, claro!).

Mas, consultando um dicionário alemão-português / português-alemão descobri que em Portugal também se usa a grafia quo-ti-di-a-no, que se pronuncia como a forma usada no Brasil e na Espanha, sem o "ku", ou seja: engole-se o "u" e cospe-se o "ko" de cotidianíssimamente, forma que aliás nem sei se existe nos anais gramaticais, mas existe porque acabei de escrevê-la - prova cabal de sua existência!

E para finalizar essa nota, "cotidiano", com "ku", com "ko" ou sem "qu", em alemão significa "täglich" ou "alltäglich", cuja pronúncia não é nada comum para um falante de brasileiro, que é como se chama a variante do português falado no Brasil. Portanto, por aqui fico com as fonéticas questões do "alltäglich".

Pois é, e se falar já é difícil, imagine escrever… 

Cotidianamente!


Por Helena Frenzel



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quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O sonambulismo


Por Michele Calliari Marchese

Como todo mundo sabe, o sonambulismo é um pequeno distúrbio do sono e acomete o vivente de vez em quando. Existem pessoas que nunca terão o privilégio de sonambular por aí, encontrando portas trancadas a chave, tendo essas mesmas chaves escondidas em algum lugar recôndito. Quem sonambula não espera que as chaves estejam escondidas, mesmo porque precisam de caminho livre para andar e fazer o que se precisa fazer durante esses incríveis episódios em que o corpo está ativo e a mente, inativa. 
O Ismael e a Jussara se conheceram numa loja enquanto pagavam suas respectivas contas. Era uma terça-feira. Se fosse na sexta-feira seguinte nunca teriam se conhecido e também acho muito difícil que tivessem se casado –como se casaram– dois anos depois, envolvidos pelo amor e pelo sonambulismo em comum e tudo porque a atendente perguntou por perguntar o motivo de o dedo mindinho da Jussara estar com uma tala de palitos de picolé envolto em esparadrapos. 
A Jussara contou sem meias palavras que devido a um sonambulismo ocasional havia tirado seu aparelho de silicone (aquele que evita o ranger dos dentes durante a noite) e não sabia onde tinha colocado; no cabo de uma semana procurando encontrou-o entre o estrado e o colchão, escondido. E o dedo acabou quebrando quando entalou de mau jeito no estrado para pegar o aparelho. Era isso. O Ismael que ouvira tudo atentamente brilhou os olhos e cutucou o ombro da Jussara para dizer-lhe num sussurro que também era sonâmbulo. Aquele sussurro arrebatador, pensou ela, era a coisa mais linda que escutara em sua vida; “sou sonâmbulo”; e essas palavras ficaram impregnadas na lembrança de sua vida. “Sou sonâmbulo” teve um significado maior que a compra que fizera há um mês e olhou com enlevo aquele sonâmbulo em pé atrás de si, segurando o carnê da loja com uma das mãos e a outra mantinha junto da perna; que garboso, pensou e pensou em inúmeras coisas e assuntos sonambulísticos que teriam daquele momento em diante e aguardou que a atendente lhe devolvesse o troco.
Disse tchau levantando a mão cujo dedinho seguia hirsuto e o Ismael pagou a conta rapidamente para poder conversar com aquela mulher tão igual a si, tão perfeita pensou, não que os sonâmbulos fossem perfeitos, mas nunca encontrara alguém com quem pudesse partilhar as longas histórias noturnas e poderia, quem sabe, ver no futuro como se comportaria no lugar dela e vice-versa. Seria uma bela experiência de vida e alcançou Jussara na calçada e disse que não se preocupasse com esse tipo de acidente ocasionado pelo sonambulismo e ela respondeu que não foi durante o sonambulismo que quebrara o dedo mindinho, mas sim acordada e ele mencionou aquela vez, muito tempo atrás quando o Cometa Halley poderia ser visto a olho nu da Terra e que seu pai o agarrou pelo pijama, pois estava com um pé na janela do terceiro andar e só depois de desperto lembrou que passara o dia pensando em ver o tal cometa e que sonhara com ele durante a noite e sonâmbulo tratou de ver pela janela o cometa Halley. Riram os dois, que perigo, pensou ela, cair de uma altura assim considerável era a morte certa, porém o Ismael contou que a sua falecida bisavó havia ensinado à sua avó e, por conseguinte à sua mãe, que não se pode acordar um sonâmbulo pelo motivo de ele ficar mudo e nunca mais na vida conseguiria falar e que sonâmbulos não se machucam. Tudo isso era uma grande crendice cultural, mas que de qualquer forma informou à Jussara que a família inteira sofria de sonambulismo senão não haveria motivo da bisavó ensinar tais coisas.
Ficou feliz e na felicidade daquele assunto interminável na calçada ela pediu o nome dele e disse-lhe seu nome e combinaram de se encontrar no fim daquela semana na sorveteria que tinha ali perto, às oito.
Dentre as muitas façanhas contadas diariamente, ela a ele e vice versa, foi que ele descobriu que ela tivera espinhas no rosto e passava Minâncora antes de dormir na crendice da fala da vó que dizia que as espinhas secavam com o dito creme, porém o máximo que conseguiu foi assustar o namorado da sua irmã, num dos muitos ataques de sonambulismo com o rosto inteiro coberto de Minâncora, assustando-o e fazendo-o prolongar o namoro por mais algum tempo antes de saber por sogro e sogra que a cunhada sofria dos males noturnos.
Ela, porém descobriu que ele tinha pendores catastróficos e que subira no peito do irmão –dormindo– para salvá-lo dos troncos de árvores que caiam em cima da casa sem telhado. Depois que foi despertado pelo irmão apavorado foi que descobriu que tinha o coração acelerado e estava de pé em cima do corpo do irmão inerte e assustado pelas atitudes sonambulísticas daquele sonâmbulo sem precedentes. Adorava uma catástrofe, daquelas que ninguém quer ver nem sentir, assim como ela. Será que todo sonâmbulo gosta de hecatombes naturais? Perguntaram um ao outro, quase juntos, e viram de relance que a vida a dois era o certo e decidiram se casar sem responder àquela questão primeira. 

Viveram felizes, revezando os dias para esconder as chaves das portas e o Ismael colocou tela nas janelas para a feliz esperança da chegada dos filhos, vislumbrada pelos sogros. E hoje brigam quando contam quem foi que sonambulou na lua de mel, cada um quer para si o título de primeiro da casa.


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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Senhor, quem é Fudile?


Por Michele C. Marchese

Primeiramente quero esclarecer que esse título foi devidamente plagiado da amiga Alessandra W. Outros esclarecimentos seguem no final do texto. 
“Senhor, quem é Fudile?” é uma pergunta que só o Senhor poderá responder, bem como aquela outra pergunta feita há meses: “O que é Fudile?” Como ninguém respondeu, obviamente creio que ninguém sabe, porém tenho mil conjecturas, milhares de suposições e zilhares de teorias conspiratórias que me renderiam meses de terapia intensiva e diária com minhas amigas psicólogas e sempre de plantão, Andréia M. e Letícia D.
Jamais colocaria tudo o que me passa na cabeça, pois o espaço é ínfimo e cansaria a leitura, deveras. Apenas menciono algumas para economizar o tempo do Senhor em explicar o inexplicável.
Vamos para a conjectura: Fudile é uma variante de Fuzile, já que naquela época eram épocas de dentes de leite que caiam ou eram arrancados por alguma mãe inescrupulosa e então não havia a possibilidade de falar corretamente a letra z, trocando-a por d. A palavra Fuzile é derivada de fuzilar. Éramos sabidos naqueles tempos. Creio que um deles, Alessandro Z., meteu o pé na bola e o ato foi considerado pelos outros como um “fuzilar”, sendo o gol marcado sem eira nem beira e o goleiro a procurar pela bola. Ou, o próprio goleador ficou se gabando “viram que fuzil? Viram que fuzil?” e os outros a menear a cabeça – do tipo tá se achando – logo lhe botaram o apelido. Então o hoje Fudile era o Fuzile em bocas sem dentes do passado.
Agora a suposição: Suponhamos que em épocas remotíssimas da nossa saudosa infância, os meninos (só os meninos) falavam alguns, hã, palavrões. Nada muito sério, porém sempre falados à boca pequena, à surdina, em cochicho. Na hora do recreio, foram Pinto, Nico, Dala, Patinho, Patão e alguns que ainda não tinham apelido comprar a rosca feita pela Dona Vilma; a rosca caiu numa pocinha indecifrável, aquele um pegou, esfregou o açúcar molhado na camisa e deu uma mordida causando asco nos demais. Esses demais não demoraram em falar alguns palavrões do tipo “que f**a”, você é um fu********” e tudo num cochicho de arrepiar, dando tapas em seu ombro, como a dizer cospe fora, cospe fora. Como ele não cuspiu, ficou um apelido meio palavrão, meio não palavrão, mas isso é segredo.
Vamos à teoria conspiratória e da qual creio ser a mais verossímil. Num lindo dia de verão (sempre tem que ter uma pieguice antes do horror) enquanto os meninos jogavam bola na quadra e as meninas estudavam a tabuada, sentadas lindamente e delicadamente nos bancos do colégio (e longe da quadra), eis que o céu torna-se escuro e com nuvens densas a assustar o próprio tempo.  
Um vento efêmero chamou a atenção dos meninos que jogavam e todos olharam para cima com algum receio de que a partida tivesse fim antes mesmo de começar; foi então que uma luz muito forte rasgou o céu na vertical cegando-os temporariamente e um objeto não identificado de pequeno porte e que, pensando hoje, acho que deveria ser uma daquelas naves filhotes, sendo que a nave mãe deveria ser tão grande que escapava à visão, pousou placidamente no meio do campo. O barulho infernal daquele motor não deixava que eles se mexessem, mesmo sendo corajosos, e uma porta se abriu. Um ser indescritível de cor mais indescritível ainda avançou pela porta e fez um sinal com a mão para que eles se aproximassem e eles tentaram pedir socorro, porém estavam dentro de um campo gravitacional e invisível e quem estava de fora não os via e participavam ainda do lindo dia de verão, enquanto meus queridos amigos se viam em apuros numa bolha transcendental, não tendo nem o irmão Daniel a lhes prestar socorro. 
Pois começaram a discutir qual deles iria ter com aquele visitante extraterrestre querendo comunicar-se com muito provavelmente o líder daquele grupo desdentado. Empurraram-se repetidamente quando o Romeu T. disse que iria (para grande alívio de todos), mas quando chegou perto da porta um vento gélido o fez ter uma crise de asma e sequer pode dizer “oi”. O extraterrestre mostrava claros sinais de irritação e uma portinhola lateral se abriu e um grande cano saiu espalhando fumaça verde limão e aquela visão apavorou tanto que o grupo foi andando para trás e o mais embasbacado com a situação ficou na frente. Era agora ou nunca. Tinha brio ou não tinha? Para a sorte mundial nosso heroico colega disse o que ouvira em filmes de ficção - “vim em paz” - e fez o sinal do mestre Jedi - que a força esteja com você -, e tremia tanto que não conseguia piscar e não suava porque o vento gélido agora estava amontoando uma grossa camada de geada sob os seus pés. O ET cumprimentou-o e falou muito e sanou todas as dúvidas filosofais e sobre a criação do universo, contou também sobre a vida em paralelo, onde temos outro de nós mesmos em algum lugar remoto do futuro e do passado e disse o nome de sua gente: “Fudile”.
Como ninguém ouviu a conversa por causa do barulho inclemente dos motores todo mundo acreditou e apelidou-o assim por causa de que após a conversa, a portinhola se fechou, o extraterrestre lhe abanou e o mundo se salvou. Como houve uma falha temporal aquelas horas não existiram para os outros e eles puderam finalmente continuar a partida, não sem antes colocarem as japonas para aquecerem-se daquele frio dos infernos.
É isso.

Esclarecimentos finais: Não pude citar todos os nomes dos colegas, mas creiam-me todos estavam lá na hora que a nave pousou. 




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quarta-feira, 5 de outubro de 2016

A vida por um chocolate


Por Michele Calliari Marchese

Já devorei uma caixa de bis e tenho no colo uma barra de meio quilo de chocolate. Resolvi escrever para resistir à tentação de abrir a lâmina prateada com relevos do mais fino chocolate suíço. Têm alguns desenhos de favos de mel, amêndoas e imaginando a gostosura me perco nos pensamentos mais existenciais possíveis. Eu posso comer essa gostosura e minha avó, podia?
Creio que os chocolates de outrora além de caros eram inacessíveis nesses rincões de Deus dará; creio que quando chegavam eram dados sem pestanejar às crianças e bebês para que soubessem o que é bom na vida, para que se apercebessem que por trás do suor da lida existe o doce que nos faz fechar os olhos de satisfação e suspirar longamente como se fosse a hora derradeira.
Por falar em hora derradeira gostaria que me colocassem nas mãos cruzadas uma meia dúzia de chocolates crocantes ou o que acharem melhor; nada de rosários e flores; mas não misturemos assuntos, o caso é extremamente pessoal.
E a pauta é a seguinte: Como é que conseguimos comer tanto chocolate na TPM sem remorsos e sem farelos, sem pensar nas que nos precederam? Impossível. Isso faz parte da mulher: chocolate e existencialismo.
Chocolate porque é chocolate, não precisa de explicação, porém o existencialismo é a coisa mais profunda e mais real naquele período mensal. Eu, por exemplo, como chocolate e fico pensando naquelas que tinham vontade de comer alguma coisa e não sabiam o quê! Isso é o pior! Não sabiam o que queriam para satisfazer aquele vazio no peito, nas glândulas salivares e do êxtase supremo em ver a lixeira cheia de pacotes vazios.
Como eu. Devo estar precisando de mais uns cinco quilos para a completude divina, mas e as outras? E as outras? Não é cinismo, é altruísmo. Imaginemo-nos sentadas em algum tapete felpudo comendo chocolates de todos os tipos, menos os com recheio de licor (nada contra quem gosta), dando as mãos, acendendo incensos, chorando as amarguras inconsoláveis das outras e nos empanturrando de chocolate e mais chocolate. Deitaremos no chão para ver as estrelas e conversaremos sobre coisas do tipo “como nasceu o universo” para então ouvir daquela sabidinha vestida de blusa preta que faz mal comer de barriga para cima e então notaremos que nós todas vestimos preto naquele dia como numa comemoração de irmãs radicadas nessa cidade sombria sob muitos aspectos, porém iluminada pelos seus cidadãos e a frase ficou tão bonita que aquela outra “mana” de preto também resolveu comprar mais chocolate para celebrarmos a vida xanxerense.
Penso que a despedida seria caótica: “sua blusa é linda, onde comprou?” e não teríamos papéis para anotar tantos nomes, telefones e locais fornecedores de utilidades da tensão pré menstruástica; alguma “irmã” riria sem parar da quantidade de segredos que ouviu e não falou nenhum, outra choraria porque perdeu o celular com as fotos do namorado que ela bem gostaria de rasgar, porém não podia porque não sabia como fazê-lo sem imprimir as fotos. Outra pedia por um espelho, não poderia sair na rua sem maquiagem depois de todas aquelas lágrimas, esqueceríamos imediatamente o nascimento do universo e todas as suas nuances cor de rosa piamente defendida por uma das irmãs de Xavantina e também não poderíamos sair de nosso tapete felpudo sem ouvir as fofocas do centro de Faxinal dos Cabritos.
A de cabelo curto vestida com uma calça preta sugeriu que “nada melhor que um chocolatinho quente” para ouvir os comentários elucidativos daquela irmã –de preto também– que diria que há estudos científicos que comprovam que o chocolate ajuda a manter o Mal de Alzheimer longe daquelas cabeças férteis e lindas. Uma companheira riu do “lindas”, porém as outras deixaram para lá, afinal, pensaremos, somos bonitas à nossa maneira e do nosso jeito, porém acredito que a irmandade iria para o fundo do poço no segundo mês de encontro. Talvez não sobrasse tanto dinheiro assim para alimentar tantas bocas necessitadas de cacau; mesmo que cada uma levasse a quantia certa para o consumo tem sempre aquela que come mais porque o desespero é maior. Choremos!

É isso. A crônica chegou ao fim e com ela aquele lindíssimo chocolate que estava dormitando no colo. Não era para comer, era para escrever. Desculpe, mas não há resistência alguma das injustiças do existencialismo humano que me façam guardar, mesmo que numa gaveta bem pertinho de mim, aquela barra de meio quilo de chocolate com favos de mel e amêndoas. Nem minha vó.


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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Mantas



Por Helena Frenzel

Como de costume, de manhã, dona Giulia sentou-se na varanda, cobriu as pernas com uma manta colorida e começou a tricotar. Eu, curiosa, sentei-me ao lado dela e também cobri as minhas, pernas, com uma manta bege, que cheirava a roupa limpa. "Foi a senhora quem as fez?", perguntei. "Todas!", ela respondeu. É que já estava frio, era novembro, e por isso mesmo ela queria terminar o que começara antes que chegasse o inverno, ela me disse. De sua varanda via-se as montanhas e dona Giulia, entre um ponto e outro do tricô, se perdia em recordações. "Se ao menos eu tivesse atendido ao seu pedido…"

Para ela, tudo havia começado naquele dia em que um soldado alemão, com uma metralhadora carregadíssima, disse que ali ela não poderia entrar. "Como assim, não posso entrar? É minha casa!", ela ainda quis perguntar, mas achou melhor não. Primeiro porque não sabia falar alemão e segundo porque o soldado parecia nada bem humorado. Ela me disse: "Eu me virei, peguei minha bicicleta caladinha e voltei o quanto antes para o restaurante da minha família, que ficava a poucos metros dali".

Que o povoado estivesse cheio de soldados, isso não era novidade, novo agora era eles começarem a determinar quem podia entrar ou sair de certos lugares, incluindo a própria casa. E foi por isso que as pessoas começaram a se organizar para resistir àquele abuso. Os homens, aqueles que ainda não haviam sido presos ou que não estavam escondidos nas montanhas, não podiam circular à vontade, sempre eram parados por alguma blitz; já as mulheres podiam andar livremente pela cidade e os soldados não as impediam porque alguém precisava fazer o trabalho que elas faziam. Naquele dia, quando o soldado alemão lhe disse "Halt!", que significa "Pare!", alguma coisa começou a ferver dentro de dona Giulia, e também no seio do povo que ali vivia, é que o ponto de resistência havia chegado. Sem pensar nem demorar muito, dona Giulia começou a ajudar os rebelados.

"Eu transportava armas, mantimentos, informações, tudo o que fosse possível com a minha bicicleta. Houve um dia em que eu vinha subindo uma montanha —e nós conhecíamos aquelas montanhas como ninguém, cada pedaço!— quando vi dois soldados alemães se aproximando. E justo naquele dia, no bagageiro da minha bicicleta estava escondida uma pistola que eu estava levando para um grupo de rebeldes. Tratei de me acalmar e não deixar transparecer o medo que me tremulava por dentro. Um dos soldados me perguntou num italiano quebrado: "Da dove vai?". Pensei: "Pense, pense, pense, não deixe o medo saltar, invente uma história", tudo isso eu pensava no ritmo louco do meu coração e foi quando eu disse a primeira coisa que me veio na cabeça, que minha mãe estava muito doente em casa, lá na montanha, e que eu estava apressada porque estava levando remédio para ela, e comecei a chorar. Não sei se por conta das lágrimas ou se porque eu era una bella ragazza, só sei que os soldados baixaram a guarda e me deixaram passar sem blitz. Naquele dia eu tive muita sorte!"

Dona Giulia não contou logo em casa que estava ajudando os rebeldes. O pai e o irmão mais velho, estes ela sabia que a apoiariam, mas a mãe, esta ela tinha certeza que seria até capaz de denunciá-la aos soldados alemães. "Eu não entendia a minha mãe, ela não gostava de gente rebelde, ainda mais de mulheres rebeldes. Eu sempre tive muitos problemas com ela, pois ela queria que eu fosse mansa e eu não conseguia me calar para injustiças. Um dia ela quis que eu lavasse as roupas do meu irmão e eu disse que não lavaria, pois ele é que tinha que lavar as roupas dele, e ninguém lavava as minhas. A resposta dela foi um tapa na minha cara, e aí mesmo foi que eu não lavei mais nada. Ela quis me obrigar, mas meu pai me salvou de suas garras dizendo que também achava muito justo que Nino lavasse as próprias roupas".

Naquele ano de 1944, quando as coisas se complicaram, dona Giulia decidiu se juntar por uns dias aos rebeldes na montanha para aprender a atirar e a montar e desmontar armas. Nesse meio tempo ela já havia contado ao pai e ao irmão o que fazia às escondidas e estes lhe deram todo o apoio. A mãe só soube da rebelião da filha quando esta já estava nas montanhas, escondida, e nada contra pôde fazer. Foi nesse acampamento que dona Giulia conheceu Enzo, um rapaz um pouco mais jovem do que ela e que também estava em treinamento. 

"Enzo lembrava um pouco o meu irmão, mas era muito mais bonito. Ele era muito inteligente e nós conversávamos bastante. Ali nas montanhas não havia divisão entre homens e mulheres, era um lugar e um momento em que todos éramos iguais. Um dia ele me disse que seu maior desejo era ter uma namorada, que nunca havia sequer beijado uma mulher. Foi então que me perguntou se eu queria ser sua namorada e eu, como nunca havia pensado nessas coisas disse que naquele momento não, mas que quando acabasse a guerra se podia voltar ao assunto. No dia seguinte me mandaram voltar para casa, para obter novas informações, mais armas e mantimentos."

A essa altura a mãe fazia de conta que não sabia das atividades da filha, até mesmo porque a situação havia piorado muito, o horror era enorme e ninguém mais aguentava os absurdos daquela guerra sem sentido. Numa noite, veio o pároco visitá-los. Era uma época insuportável e por isso mesmo as pessoas se viam gratas por qualquer oportunidade de estarem juntas. Naquela noite, a mãe de dona Giulia e o pároco começaram a falar mal das mulheres que se juntavam à resistência, que isso não era coisa de mulher direita, que ficavam mal-afamadas e que por conta disso não arrumariam marido. A esse impropério dona Giulia respondeu: "As pessoas que estão lá nas montanhas estão lutando pela liberação da Itália e estão preocupadas com coisas muito mais importantes, como salvar vidas que estão sendo exterminadas nos campos de concentração nazistas. Também estão lutando pelas pessoas que ficam aqui em baixo acomodadas e unicamente preocupadas com a honra e a má-fama das mulheres." E a mãe de dona Giulia não soube o que dizer ao pároco diante daquelas idéias subversivas da filha. Foi também nesta noite que dona Giulia teve um sonho vivo. Sonhou com Enzo tiritando de frio, como se estivesse ferido, gritando seu nome e suplicando um beijo. Ela acordou assustada dizendo: "Já vou, Enzo, já vou!".

"Vinte anos depois foi que fui saber que naquela mesma noite em que o pároco visitou a nossa casa o grupo em que Enzo estava lutando se enfrentou com uns soldados alemães e que ele, baleado, caiu no rio. O corpo dele foi encontrado dias depois, preso por baixo nas raízes de uma árvore em uma das margens. Os companheiros imaginam que ele, ferido, não teve forças para sair dali e acabou morrendo de frio naquele lugar. A guerra acabou oficialmente pra nós no dia 25 de abril de 1945. Depois de algum tempo eu passei a visitar o lugar em que enterraram Enzo. Não tive a chance de dizer a ele que seria muito feliz em ser sua namorada e que se não fossem essas convenções idiotas que aprisionam as pessoas, sobretudo as mulheres, que ele não teria morrido sem ter provado sequer um beijo. E é por isso que eu, a cada ano, tricoto duas mantas. Uma delas é para diluir o meu remorso por não ter atendido imediatamente ao desejo dele, e a outra eu levo para cobrir o túmulo e tentar aplacar a dor e o frio que o tirou de nós ainda tão jovem.“

Saí da casa de dona Giulia naquele dia com duas mantas: uma na sacola, a manta bege que me aqueceu as pernas durante a nossa conversa, e a outra, colorida, bem guardada e aquecida no meu coração idealista.




Fora o desenho geral dos fatos, que se baseiam em histórias da vida real na Itália da Segunda Guerra, todo o resto é ficção.


Nota da autora: como a frase acima ficou um tanto ambígua, explico nesta nota o que nesta história exatamente é derivada de fato real e o que é ficção, pois dar os créditos devidamente é sempre necessário. Dona Giulia é um nome fictício para uma corajosa italiana, cujo nome verdadeiro não recordo, já falecida e que atuou na resistência contra fascistas e nazistas. Tomei conhecimento de sua história por conta de um documentário cujo título não recordo, assistido há muito tempo em algum seminário sobre o papel fundamental das mulheres na resistência italiana, papel ainda hoje não reconhecido devidamente. Os relatos da personagem dona Giulia, no meu texto, correspondem em resumo à história contada pela senhora no documentário, incluindo a sua relação com a família e sua postura e pensamento, já bastante emancipados para os anos 1940. Enzo é um nome fictício para uma pessoa que também existiu na vida real, cujo nome verdadeiro também desconheço, e que viveu e morreu como conta a personagem dona Giulia no meu texto. Os companheiros do verdadeiro Enzo contaram à verdadeira dona Giulia, vinte anos após o fim da Segunda Guerra, como provavelmente ele havia morrido e como encontraram o seu corpo. A única coisa que ela sabia até então era que o  amigo estava entre as vítimas da guerra e onde estava enterrado seu corpo. O encontro entre dona Giulia e a narradora, e o diálogo entre as duas,  é algo que só ocorreu no plano da fantasia da autora.



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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A bordadeira, a blogueira e a pensante


Por Michele Calliari Marchese

Estavam as três sentadas em suas respectivas cadeiras, abanando o rosto com o que tinham em mãos. O calor sufocante daquele sábado primaveril não dava tréguas aos rímeis e lápis que teimavam em escorrer dos cílios caindo inesperadamente sobre a bolsa dos olhos formando um cânion de olheiras. Profundas, cansadas, não só pelo pretume da maquiagem borrada, mas próprio daquele sábado escaldante.
A Silvia bordava sua interminável tela. Fazia quase um ano que bordava aquele pedaço do tapete, sempre com a mesma cor, uma cor sem cor, desbotada, pálida; para que as outras cores realçassem inesperadamente fazendo com que as pessoas pensassem duas vezes antes de limparem seus pés naquela preciosidade que lhe tomara dezoito meses. Dezoito meses! Era muito tempo bordando um reles tapetinho que não media mais que meio metro. Pensou nele colocado na porta, lindo de morrer e nos pés sempre sujos dos filhos que entravam e saíam correndo e de quantas vezes teria que lavá-lo durante a semana e foi capaz de soltar a agulha, deixando-a cair pelo bordado, suspensa somente pela linha que já pontuava um ponto incompleto. Olhou para os pés daquela pensante, sentada à sua direita, de cabeça baixa, pensando e pensando e não dizia uma palavra nem que fosse um suspiro para mostrar que estava ali, junto com as outras duas. “Pelo menos os pés me parecem limpos”, daria com gosto o tapete para que ela pisasse, mas somente depois que tirasse os tênis e dependendo do estado das meias, essas também.
A Teresa seguia teclando em seu teclado de mil caracteres, sempre buscando um novo, alguma coisa com o que distrair os visitantes de sua página virtual, uma página nada a ver, pensava ela naquele instante; “porque diabos fui fazer essa porcaria de página, agora estou presa aqui”, e estava presa na diversidade irreal que montava e apagava sem parar, limpando de quando em vez as gotas de suor que brotavam em sua testa, desejando bordar ao invés de teclar, porém notou que as linhas eram de lã e desejou pensar como aquela pensante sentada na cadeira à sua direita que nem suspirava como era de se esperar naquele calor e mantinha a cabeça baixa por quê? Nem queria saber, provavelmente somente pensava e pensava e olhou a bordadeira com a mão no queixo a olhar para a pensante com a linha dependurada no bordado como que largando tudo numa estafa inconsciente, “é uma louca bordar nesse calor”, mas notou que nenhuma das duas suava como ela e talvez nem sentissem tudo o que sentia e poderia ser a menopausa e pensou na quantidade de absorventes que comprara numa promoção, “teria que dar para alguém que ainda precisasse”; sentiu certo alívio pela proximidade de não sentir mais cólicas, colocou a mão na barriga que tinha parido três filhos e olhando para aquela pensante que não tinha filhos e estava no furor da juventude ali parada “sem respirar, me parece” notou que ela cruzou os pés “estava viva, graças a Deus!” 
A bordadeira notou que o “tec tec tec” da digitação havia parado e aquilo tirou-a do torpor que sentira ao auscultar minuciosamente a pensante, cruzara os pés, então estava viva “graças a Deus” se tivesse morrido ali sentada o que aconteceria depois? Decerto teriam que chamar muitas pessoas e levantou-se para pegar o celular e verificar se tinha todos os números possíveis, de polícia a SAMU, de bombeiros a médicos, fariam o que depois? Chamariam os parentes e pensou que a maioria deles residia em outra cidade, “mas o que faz essa moça aqui, longe dos parentes?” Não se deteve por muito tempo nessas elucubrações, havia um bordado a terminar e não havia tempo até o próximo inverno, porque os invernos merecem tapetes de lã para que a casa se torne mais quente com a presença daquele mimo no chão. Não fossem os pés sujos dos filhos faria mais uma dúzia e encheria a casa com tapetes de todas as cores e teria que mandar o gato para outra freguesia, porém seus filhos chorariam noite e dia, dia e noite. Não era possível tal feito. Com gato e sem tapetes. Desistiu de bordar pelo resto do dia. Passaria aquelas poucas horas ouvindo o folguedo das crianças a brincar no pátio e deu de cara com a pensante que olhava com vivo interesse o guardar do bordado numa sacola cor de rosa.

A blogueira notou a outra guardando lãs e agulhas e dobrando aquela tela sem cor numa bolsa cor de rosa, no que ela pensava em guardar um bordado tão atrasado quanto aquele dentro de uma sacola horrorosa daquelas, e escreveu isso em seu blog para advertir consumidoras a respeito de produtos duvidosos e com destino certo. O lixo. Escreveu, escreveu e escreveu por mais duas horas ouvindo o suspirar da Silvia e o não existir da pensante, aquela que sentava à sua direita e que tinha certeza de que agora sim estava morta. Salvou seu trabalho sem conferir uma vírgula e acessou os números de emergência em seu i-phone. Trouxe lenços umedecidos para limpar a maquiagem borrada da bordadeira e convidou-a para chupar um picolé e foi quando as duas, blogueira e bordadeira deram-se conta de tudo quando ouviram a voz mais rouca e sem uso do mundo dizendo que também queria um picolé, “mas eu quero um picolé de chocolate”.


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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Nós e a Campina, a Campina e nós



Por Helena Frenzel


Parece que foi ontem, ontem mesmo, quando tivemos notícias do sumiço da Ritinha. Pra ser mais exata, foi no dia 20 de agosto de 2012, há quatro anos. A Ritinha, se você não sabe, sumiu depois de ter passado uma noite dançando com um moço bonito em plena Quaresma. É que confundiram as datas numa troca e extravio de cartas, uma confusão do demo! Deus que me perdoe, melhor nem falar no catingoso, pois vai que acontece comigo o mesmo que se deu com o Laudemir, que encontrou pelo caminho um féretro fantasma. Credo em cruz!

E passado esse susto me refresquei sabendo do caso da Dona Lucia, a morta "quente" que o Barbeiro e o Padre Dimas… Ah, esses dois!, que também andaram investigando as misteriosas badaladas que assombraram a Campina da Cascavel. Mas agora já sabemos que a Lucia foi o amor de muitos e, pelo visto, não foi de ninguém. E ao longo desses quatro anos tivemos a felicidade de ir vendo nascer e crescer tantas histórias e personagens como o Tio Antero com seu ouro no rio, os infartados Alcides, Angelin e Romeu, por quem ainda hoje a Dona Isabelita chora, e chora de se contorcer. 

Neste meio tempo vimos nascer e crescer também nosso jornal, e foram oito números, oito números especiais com contos da Campina, contos de Fufu Lalau e textos de convidados. Quem sabe um dia… Ai, meu Padin Cisso, quem sabe um dia eu consiga continuar com o jornal… Vontade não falta, mas tempo... 

Sim, mas voltemos à Campina: tantos dilúvios, sumiços, chuvas de sapos,  pragas de piolhos, ET’s amantes de milho, mulheres resolutas e maridos abandonados. E o bígamo? O bígamo naufragado… Dona Silvia fez muito bem! E eis que à boca pequena ficamos sabendo do encontro que a Dona Maria teve e fez de tudo para esconder, mas na Campina nada se esconde, até o capim fala! 

E foi também quando soubemos do Firmino e de sua previsão para o fim do mundo. É que os Maias haviam dito (assim contaram) que a Terra iria para as cucuias em 2012. Já estávamos em 2013 e nada do mundo se acabar, como já estamos em 2016 e… Bem, melhor nem falar, já que tem uns ditadores lá pela Ásia louquinhos para transformarem o planeta numa nuvem de pó só, o que já fomos todos um dia aliás… 

E 2013 seguiu na Campina com a procissão dos vivos e um tapete de Corpus Christi especialmente para saudar o bispo, e que bispo! Cruz credo! Dizem as más línguas que era um bispo que já estava morto há mais de cem anos. Será? Há fotos que comprovam. Seguimos o ano com outro desaparecimento misterioso: dessa vez o da Dona Lurdes, e o marido que nunca se consolou. E foi quando o Amâncio presenciou uma reunião de caboclos, todos rebeldes e mortos em pelejas do passado. Aí eu me encrespei e vi outros personagens chegaram:  Olavo e o Compadre Rui, mostrando que é na bodega que nasce um bom causo. E como nasce! A Dona Edite, casada com o tal do Victor Hugo, um causo mais que cabeludo! Hisurto! Tô pra ver! 

Daí eu soube do causo do Cristóvão e de suas alucinações. Tinha a ver com as rosas que o Coronel Eusébio conservava da Dona Adelaide, e o caso é tão sensível e insólito que não posso reproduzir sem me emocionar, você tem que ler sozinho ou sozinha, com esses olhos que a Terra há de "jantar", como aquele que a Isabel preparou esperando pelo noivo e aquele da família pioneira, que revelou o genro preferido da "mamma" e o segredo do seu tempero excepcional. E muitos jantares mais se seguiram, picantes revelações! Mas quase me mordi de medo foi ao lembrar do causo do homem misterioso que sempre aparecia na casa que um dia foi do Angelin, aquele jagunço… 

Mas o grande mistério do nosso blog está na história da Mariana e do Antônio, daquela noite de núpcias que, estranhamente, é um dos textos mais acessados de todo o blog. Juro que me mordo de curiosidade pra saber o motivo. Tenho uma hipótese, e ela tem a ver com nome do site. Acho que as pessoas acessam pensando achar um tipo de "sem vergonhice", e quando descobrem que "perder a vergonha" não tem nada de "safado", aí já é tarde!… Bom, se elas voltam a nos visitar, disso eu não sei, só sei que somos gratas por todas as visualizações! E que ao longo desses 4 anos já passaram das 31.514!

Emocionante é a história do velhinho que esquece de muitas coisas, mas não esquece do que viu nas guerras. E não podemos esquecer do Licurgo, aquele eterno jovem ancião, o mais enxuto do mundo! Vimos outros desesperados, como a Neusa e seu marido, e o primeiro delegado viver e morrer. E se não fosse o primeiro delegado, o Ubaldo teria até matado aquele sujeito que "amassou" a sua filha no sofá, a que se tornou mãe do Angelin. Ah, o Angelin, aquele jagunço...   

A Campina é um lugar em que aparece de tudo, até mesmo uns espertos comerciantes, e foi por aí que o Tabelião abriu o olho com o Humberto e a Lizandra, que se foram felizes contando a dinheirama. E foi quando o Nino quase matou o Padre Dimas, que só não morreu porque… bom, não era chegada ainda a sua hora, como descobrimos depois, e ele sobreviveu a todas as tentativas, ainda porque as gentes só morrem na hora que têm mesmo que morrer e isso vale também para gentes-personagens.

E as visitas das almas penadas nunca deixaram de ocorrer, como daquela vez que a Emma, uma morta, voltou pra pedir ao Padre Dimas uma missa de sétimo dia não sei pra quem que também já havia passado. Credo em cruz! E com a morte do Tarcisio fomos saber como o delegado, o primeiro, tomou em quartas núpcias a Dona Celina e então tivemos um dia festivo: 28 de outubro de 2013 saiu o primeiro volume dos contos e causos da Campina em e-book.

Outros personagens inesquecíveis são a Asdvencia Emilia, uma benzedeira e tanto, sábia por demais. Daí teve o causo da malhação do Judas, que foi a última daquela vez, não fosse a ação do delegado antigo, que ainda não era o Jurandir. Foi quando se soube do Coveiro e da despedida do Sargento. E também de Benvindo de Pato Branco, que saiu pra comprar cigarros e … nos deu a idéia pra um novo e-book

Fechamos então 2013 com o natal do Coronel Vitorio e o sumiço do Papai Noel. Começa novo ano e conhecemos Juvenal e Iracema, Coronel Passos Maia, o Aldir e seu bugreiro, o Inácio e Dona Luísa, e o livro misterioso, a carta da Alana, que em tempos de guerra trouxe o Mello para casa. O causo do cavaleiro, que a Dona Jovilde e o seu Alencar viram chegando, foi quando setembro sumiu. A morte do delegado e a vinda do comissário do governo, que pouco durou na Campina. A Karina e o Leandro, e o copo premonitório. E o marido da Salete, outro que desapareceu. 

A esta altura Frei Leonardo já havia chegado e o Tabelião entrou na cidade com o primeiro automóvel da Campina. Ainda deu tempo para o Wilson e seu compadre divorciado e para o triste caboclo João nos contarem das suas, e houve espaço para a ironia com as cartas do Percival e outras donzelas. Mais um causo de Quaresma, só que agora com o Adriano e das coisas estranhas, como o que aconteceu no casamento do Osório com a Donana.

Se, para mim, um número mágico é o 15, para o povo da Campina deve ser o 16… e o que acontece nos dias com este número está por aqui, tudo registrado!

Das aventuras do delegado Jurandir, o novo delegado, desse eu nem conto, pois daí todos já sabemos o que aconteceu, e tudo está nos diários do Padre Dimas, que Frei Leonardo leu e releu.

Fato é que foram quatro anos na companhia de histórias e personagens vivos e interessantes. E teve de tudo: riso, informação, choro, assombro, chegadas e despedidas. E por todo esse tempo e personagens escrevi este texto para agradecer à minha querida comadre Michele a parceria e a generosidade de compartilhar estes „causos“ também neste espaço. 

Parabéns, comadre Michele! Parabéns, Campina da Cascavel!
Se tivesse sido planejado, nada teria dado certo, nem teria sido tão bom.

E que venham novos causos, contos, crônicas e coisas do tipo! Sigamos então!





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