domingo, 12 de abril de 2015

Por que não se pode sair na Quaresma



Por Michele Calliari Marchese


Eu já escrevi em outra ocasião que durante a Quaresma não se pode fazer loucuragens, tampouco festejar por algum motivo e se a Dona Ritinha estivesse entre nós, ela mesma daria os conselhos necessários para passar os quarenta dias em paz, já que a própria, naquela época, fora abocanhada pelo demo em carne, ossos e brilhantina.

Esse causo se deu numa quaresma acontecida há tanto tempo que ninguém mais se lembra, mas que aconteceu e foi deveras assustador.

Faltava uma semana para o domingo de Páscoa, e o Adriano estava de aniversário. Faria trinta anos e queria festejar, quem sabe até arrumar casamento. Ele tratou de espalhar a notícia e logo todos estavam sabendo dos festejos. Era rico o Adriano e podia fazer quantas festas quisesse. 

O Padre Dimas, naquela semana de missas e novenas, instruiu o povo a pensar antes de participar de festividades ou de sair sozinho de noite, sem os devidos cuidados reflexivos. E finalizou dizendo para não esquecerem de que estavam na Quaresma.

Como o Adriano estava afoito em seus afazeres solenes, não participou da missa e da novena sequer um suspiro foi lembrado. Ele contratou doceiras, cozinheiras e comprou três barris de vinho. Quando tudo estava pronto e arrumado, foi na sanga e tomou um belo de um banho. Vestiu um terno elegante e penteou os cabelos para o lado. Lustrou os sapatos até estarem tinindo e seu par de meias pretas – para combinar com o sapato – foram trazidas de Pato Branco pelo caixeiro viajante.

Na hora mais aprazível do dia, aquela da chegada dos convidados, o Adriano olhou-se pela última vez no espelho e borrifou-se com perfume. Pela porta aberta foram entrando gentes de todos os tipos para a festa de trinta anos, crianças, velhos, moças casadoiras, homens e freis, alguns bem vestidos, outros em extrema pobreza. E o aniversariante cumprimentou todos, sem exceção e com exagerada extravagância mostrava com o braço a mesa lauta.

Durante a festa, percebeu o silêncio que reinava no local e decidiu ele mesmo tocar modinhas em sua viola, acompanhado por quatro homens que ele não conhecia, e pensando bem, nunca tinha visto tanta gente desconhecida em sua vida. Mas não importava, estava feliz e começou a tocar, embalado pelo vinho que os companheiros de festim sempre lhe ofereciam.

Mandava que dançassem, mas ninguém o fazia, mandava que cantassem, e a não ser o grupo que estava junto dele, ninguém cantava. Um dos homens que estava por ali pegou um barril vazio e começou a batucar muito alto e aquilo batia no peito do Adriano, deixando-o em êxtase. Era tanta excitação que ficou extenuado pelo sentimento atroz que invadia sua mente e o seu ser. Foi quando alguém lhe sussurrou no ouvido que era Quaresma que o Adriano não ouviu mais nada. Aquela festa era o artifício maior da felicidade.

Bebia demais e cantava e pulava e agarrava algumas mocinhas que estavam por ali. Aquele frei lhe disse que se acalmasse, porque nem tudo é o que a gente vê. Pediu-lhe onde o Adriano guardava o dinheiro para poder ir comprar mais vinho e comida e quem sabe algum chá para o restabelecimento do coitado, que revirava os olhos de bêbado. Dava dó da situação do pobre Adriano.

Pois o dito revelou o esconderijo de seu dinheiro, confiando no frei e dormiu logo em seguida, no chão da sua casa, perdido entre o efêmero e o frio que sentia. 

Foi acordado pelos tabefes que o Padre Dimas lhe dava. Levou um tempo para recuperar as faculdades mentais e notou que a mesa continuava intacta, sem ter sido mexida num ínfimo grão de arroz. Os barris de vinho estavam resguardados no mesmo lugar que seu agregado deixara, a viola quebrada no chão justificava a noite, porém não havia marcas de nada e de ninguém.

O Adriano enlouqueceu. Tiveram que vir os vizinhos interceder naquela descambação de lágrimas e gritos. Juraram de pés juntos ao Padre que não havia ninguém na casa do rapaz e escutaram alguns gritos de cantoria que pensavam ser do aniversariante comemorando com algum amigo.

Afinal, era Quaresma e não se podia sair por aí em festejos.

E o Padre Dimas explicou que as pessoas que estavam comemorando, eram dos que morreram antes da hora; aqueles que sempre chegam cedo demais ou tarde demais e somem quando o sol aparece. O Adriano tratou de acalmar-se, pois não queria ser conhecido por aí como o festeiro de almas penadas e lembrou-se daquele frei pedindo-lhe dinheiro e pôs a mão na testa, depois na boca, suspirou profundamente e quase lhe faltaram as pernas quando levantou para verificar se o seu dinheiro ainda estava lá, naquele esconderijo que ele tratou de entregar.

Voltou pobre e não disse uma palavra àquelas pessoas que estavam ali. 

Acertaria as contas na próxima Quaresma. Fosse com quem fosse.


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