segunda-feira, 20 de abril de 2015

Sobre Pudins e Sagus


Por Michele Calliari Marchese


Esse causo aconteceu no casamento do Osório mais a Donana. Foi quando chamaram os noivos para bater as chapas com os compadres que viram que os dois estavam mortos, sentados nas suas cadeiras, com os ombros encostados. Pareciam que estavam dormindo, mas não. De casamento a velório, foi o tempo que o marceneiro levou para preparar os caixões.

Foi muito triste e os convidados ficaram assustados.

Logo, o pessoal começou com as especulações sobre o que tinha acontecido e a maioria achava que talvez tivesse sido obra de algum jagunço que entrou muito escondido e rendeu os noivos que estavam sozinhos na mesa.

“Mas alguém haveria de ver”, disse o delegado, tomando as rédeas da situação e para não deixar a população em polvorosa: “Já sei até quem é o culpado, por causa do gato”.

Ficou combinado que o julgamento seria no dia seguinte às oito da manhã na igreja, pois lá tinha mais cadeiras e todos poderiam assistir à prisão do assassino ali mesmo e na frente de todo mundo.

As beatas estavam assustadas, pois não podiam conceber que havia um assassino na Campina da Cascavel, tão pacata, tão familiar!

No dia seguinte, o Padre Dimas abriu a igreja bem cedinho porque já tinha umas gentes por lá para assistir ao julgamento, e todos foram chegando um a um, com as cabeças baixas como a serem os próprios assassinos.

O delegado chegou, tirou o chapéu, subiu no altar e disse: “Deus, tenha piedade desse assassino que se encontra entre a gente de bem”.

“Amém”, disse o Padre Dimas.

E assim começou a falar, e foi o primeiro julgamento que aconteceu na Campina da Cascavel e é lembrado até hoje pela perspicácia e inteligência do Delegado.

“Como eu presenciei todos os fatos, posso desse modo, ao final do julgamento, dar voz de prisão ao assassino de Osório e Donana. Como todo mundo foi convidado para o casamento eu também estava lá e o acontecido foi que enquanto todo mundo se divertia, os noivos foram mortos em suas cadeiras.”

“Logo depois da missa de casamento, aconteceu o jantar e o Gonga, que estava em ronda por ali, veio me contar que encontrou a Dona Lucinda chorando mais o Seu Armando que é irmão dela consolando a pobre que é depressiva porque morria de amores pelo Osório – o noivo – e ela contava ao irmão que alguém havia dito que os pudins do casamento estavam estragados e que o leite estava ranço e ela tinha vergonha de dizer isso aos noivos porque eles poderiam pensar que ela estava fazendo aquilo por ciúmes.”

“O Gonga imediatamente avisou os noivos e os compadres abriram uma vala perto da estrada e enterraram os pudins, para desespero da doceira que foi praticamente enxotada do lugar; deste modo vemos que o Osório e sua noiva estavam vivos e não podiam ter morrido de comer leite rançoso.”

“Uma verdadeira afronta à Dona Jacira, nossa pudinzeira de tantos anos.”

“Depois disso, o Gonga voltou para a ronda e encontrou um jagunço seu conhecido e fugido do Paraná que estava com o cavalo do Osório, do Armando e do Padre Dimas. O Gonga prendeu o homem numa árvore e trouxe os cavalos de volta. Avisou o Osório do ocorrido de modo que ele ainda vivia quando o jagunço tinha sido preso.”

“Enquanto todos dançavam, eu notei que o Armando levou um copo de graspa para o Osório, e quem tomou foi a Donana de modo que se a graspa estivesse com algum veneno, só morreria a Donana e não os dois juntos. E ainda apareceu a Dona Lucinda com um pratinho de sagu, e deu para os noivos que comeram em seguida.”

“Acredito que tenha sido um pacto de morte”.

Ninguém se convenceu e o Padre Dimas fez o sinal da Cruz. 

“Quando eu saí do galpão para fumar um palheiro e avisar o Gonga que estava na hora de ir embora, encontrei um gato morto perto da carroça do leiteiro e achei que talvez o pobre tivesse sido atropelado, mas não encontramos nenhuma marca de atropelamento e sim, de morte morrida e foi quando ouvimos os gritos de dentro do galpão avisando que os noivos estavam mortos”.

E quem é o assassino, então? E que tem o gato?

“O gato era de Donana e não saía de perto dela, de modo que sempre que comia alguma coisa, o gato recebia um pouco também, e dou a voz de prisão para a Dona Lucinda, que muito inteligentemente mentiu a respeito dos pudins de Dona Jacira para que ela pudesse preparar o sagu para dar aos noivos, e assim, dar cabo deles para sempre, pois nunca se conformou com o abandono de Osório para com a sua pessoa, diferentemente de seu irmão, o Armando que aceitou pacificamente e até se casou com outra quando Donana deixou dele para ficar com o Osório.”

“Mas não fui eu.” Disse Dona Lucinda gritando. 
“Não fui eu. Eu juro, não fui eu”. Mas o Gonga não teve dó nem piedade, arrastou a Dona Lucinda e levou ela no cavalo a galope para o Sanatório da capital. Nunca ninguém mais ouviu falar nela.

Naquele fatídico dia do julgamento, apenas duas pessoas estavam felizes:

O delegado, por ter descoberto o primeiro assassino da Campina; 

E o Armando, que ria um riso doentio enquanto manuseava prazerosamente uma garrafinha cujo líquido letal balançava ao sabor da loucura. 



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domingo, 12 de abril de 2015

Por que não se pode sair na Quaresma



Por Michele Calliari Marchese


Eu já escrevi em outra ocasião que durante a Quaresma não se pode fazer loucuragens, tampouco festejar por algum motivo e se a Dona Ritinha estivesse entre nós, ela mesma daria os conselhos necessários para passar os quarenta dias em paz, já que a própria, naquela época, fora abocanhada pelo demo em carne, ossos e brilhantina.

Esse causo se deu numa quaresma acontecida há tanto tempo que ninguém mais se lembra, mas que aconteceu e foi deveras assustador.

Faltava uma semana para o domingo de Páscoa, e o Adriano estava de aniversário. Faria trinta anos e queria festejar, quem sabe até arrumar casamento. Ele tratou de espalhar a notícia e logo todos estavam sabendo dos festejos. Era rico o Adriano e podia fazer quantas festas quisesse. 

O Padre Dimas, naquela semana de missas e novenas, instruiu o povo a pensar antes de participar de festividades ou de sair sozinho de noite, sem os devidos cuidados reflexivos. E finalizou dizendo para não esquecerem de que estavam na Quaresma.

Como o Adriano estava afoito em seus afazeres solenes, não participou da missa e da novena sequer um suspiro foi lembrado. Ele contratou doceiras, cozinheiras e comprou três barris de vinho. Quando tudo estava pronto e arrumado, foi na sanga e tomou um belo de um banho. Vestiu um terno elegante e penteou os cabelos para o lado. Lustrou os sapatos até estarem tinindo e seu par de meias pretas – para combinar com o sapato – foram trazidas de Pato Branco pelo caixeiro viajante.

Na hora mais aprazível do dia, aquela da chegada dos convidados, o Adriano olhou-se pela última vez no espelho e borrifou-se com perfume. Pela porta aberta foram entrando gentes de todos os tipos para a festa de trinta anos, crianças, velhos, moças casadoiras, homens e freis, alguns bem vestidos, outros em extrema pobreza. E o aniversariante cumprimentou todos, sem exceção e com exagerada extravagância mostrava com o braço a mesa lauta.

Durante a festa, percebeu o silêncio que reinava no local e decidiu ele mesmo tocar modinhas em sua viola, acompanhado por quatro homens que ele não conhecia, e pensando bem, nunca tinha visto tanta gente desconhecida em sua vida. Mas não importava, estava feliz e começou a tocar, embalado pelo vinho que os companheiros de festim sempre lhe ofereciam.

Mandava que dançassem, mas ninguém o fazia, mandava que cantassem, e a não ser o grupo que estava junto dele, ninguém cantava. Um dos homens que estava por ali pegou um barril vazio e começou a batucar muito alto e aquilo batia no peito do Adriano, deixando-o em êxtase. Era tanta excitação que ficou extenuado pelo sentimento atroz que invadia sua mente e o seu ser. Foi quando alguém lhe sussurrou no ouvido que era Quaresma que o Adriano não ouviu mais nada. Aquela festa era o artifício maior da felicidade.

Bebia demais e cantava e pulava e agarrava algumas mocinhas que estavam por ali. Aquele frei lhe disse que se acalmasse, porque nem tudo é o que a gente vê. Pediu-lhe onde o Adriano guardava o dinheiro para poder ir comprar mais vinho e comida e quem sabe algum chá para o restabelecimento do coitado, que revirava os olhos de bêbado. Dava dó da situação do pobre Adriano.

Pois o dito revelou o esconderijo de seu dinheiro, confiando no frei e dormiu logo em seguida, no chão da sua casa, perdido entre o efêmero e o frio que sentia. 

Foi acordado pelos tabefes que o Padre Dimas lhe dava. Levou um tempo para recuperar as faculdades mentais e notou que a mesa continuava intacta, sem ter sido mexida num ínfimo grão de arroz. Os barris de vinho estavam resguardados no mesmo lugar que seu agregado deixara, a viola quebrada no chão justificava a noite, porém não havia marcas de nada e de ninguém.

O Adriano enlouqueceu. Tiveram que vir os vizinhos interceder naquela descambação de lágrimas e gritos. Juraram de pés juntos ao Padre que não havia ninguém na casa do rapaz e escutaram alguns gritos de cantoria que pensavam ser do aniversariante comemorando com algum amigo.

Afinal, era Quaresma e não se podia sair por aí em festejos.

E o Padre Dimas explicou que as pessoas que estavam comemorando, eram dos que morreram antes da hora; aqueles que sempre chegam cedo demais ou tarde demais e somem quando o sol aparece. O Adriano tratou de acalmar-se, pois não queria ser conhecido por aí como o festeiro de almas penadas e lembrou-se daquele frei pedindo-lhe dinheiro e pôs a mão na testa, depois na boca, suspirou profundamente e quase lhe faltaram as pernas quando levantou para verificar se o seu dinheiro ainda estava lá, naquele esconderijo que ele tratou de entregar.

Voltou pobre e não disse uma palavra àquelas pessoas que estavam ali. 

Acertaria as contas na próxima Quaresma. Fosse com quem fosse.


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