segunda-feira, 23 de março de 2015

A Sacristia Assombrada


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu logo após a morte do estimado Padre Dimas. Agora o Frei Leonardo estava só diante de todas as calamidades públicas e espirituais que aconteciam naquela época e acontecem até os dias de hoje. Ele não tinha mais a quem recorrer em tempos de sustos e não havia compreendido a lógica dos ventos de fora de hora. Sobre estes, o coveiro explicou tanto que certo dia cansou e não explicou mais, deixando o pobre Frei à mercê dos ditos cujos.

E ele não percebeu quando soprou uma brisa antes da hora, e tampouco deu atenção aos barulhos que aconteciam na sacristia, bem onde o Padre Dimas passara a vida dormindo. Ele não quis dormir no mesmo lugar por achar uma profanação e não ser capaz de ocupar lugar tão sagrado. Achou-se em outra salinha, bem pequena, destinada à despensa; empurrou a estante mais para lá e colocou uma cama de campana, que ficava junto à parede, e a deslocava até o chão para deitar-se.

Aqueles barulhos não passaram despercebidos pelas pessoas que participavam da missa porque eram os passos do Padre Dimas, como a buscar alguma coisa antes da missa começar. Distraídos pelos ruídos, baixavam as sobrancelhas e olhavam para aquela porta fechada, esperando aparecer alguém a qualquer momento. Jamais alguém apareceu e foi tanta desatenção que frei Leonardo resolveu interromper a missa e pedir o que estava acontecendo. O Seu Roberto, lá da frente que o fez ficar quieto com um dedo na boca para que escutasse.

O delegado Jurandir, que assistia a tudo terrivelmente impressionado, pediu ao frei as chaves daquela porta, ao que o frei respondeu não lembrar onde as tinha guardado e tampouco lembrava se havia trancado a porta ou não e ninguém teve a audácia de verificar tal situação. Enquanto o frei partira em busca da chave, o povo discutia quem abriria a porta.

Tinha gente falando que se o Padre Dimas e o delegado ainda estivessem vivos, aquela situação não passaria da meia noite e já eram oito horas. O imbróglio precisava ser resolvido. As mulheres levaram as crianças para casa para iniciarem as rezas em prol daquela alma penada e partiram aliviadas por não precisarem ficar lá, algumas crianças choravam assustadas e outras choravam de fome e a missa nem tinha terminado.

O frei e o delegado Jurandir não gostaram muito dos comentários, mas nada puderam fazer a respeito. Conheciam os feitos daquela dupla de benfeitores, mas reconheciam não terem as fibras íntimas necessárias para a empreitada. Resolveram chamar o Júnior - o filho do tabelião - que decerto traria os ânimos para o serviço. Quando chegou, tratou de encabeçar a execução do plano previamente elaborado.

O plano era assim: o frei faria uma nova missa com alguns fiéis corajosos e com disposição para ficar lá enquanto o Jurandir dava a volta pelo lado de fora para ver se conseguia ver alguma coisa pela janela da sacristia, justamente aquela onde há tempos atrás encontraram o Padre Dimas agonizando em seu leito de morte; e o Júnior ficaria de tocaia na frente da porta para abri-la, arromba-la ou sabe-se lá o que, já que o frei não tinha encontrado a chave.

A missa forjada pouco andou, porém os barulhos recomeçaram assim que disseram “Amém”, alguns se levantaram muito assustados com ânsias de correr o mais que podiam, porém o frei fez um movimento brusco com a mão, pedindo que reconsiderassem e ajudassem naquele momento de desespero e então o sino tocou. Aí não teve vivalma que ficou dentro da igreja. O coroinha, que não sabia de nada, quase levou uns tapas do frei por ter ido tocar o sino sem consultar as horas e por ter assustado todo mundo.

Nesse meio tempo, o Júnior estava com a mão na maçaneta e quando o sino badalou ele chegou a cair para trás pelo sobressalto. Suas mãos tremiam e quando soube do coroinha chegou a ficar vermelho de raiva e disse num grito sussurrado que falaria à mãe daquele incauto e proferiu outros tantos impropérios mais. Recolocou a mão na maçaneta suando em bicas e tremendo e tirando os cabelos dos olhos com um sopro da boca girando muito lentamente quando percebeu que a porta estava trancada, mas pôde ouvir aquele rumorejar de folhas que se ouvia do quarto e então soltou a mão da tranca, levantou-se, deu dois passos para trás e fez o sinal da cruz. Quem viu a cena – só o frei, porque os outros já tinham debandado e o coroinha tinha saído chorando – ajoelhou-se na frente do altar e começou com as rezas sem nexo, tão bem executadas pelo saudoso Padre Dimas e naquele frêmito de nervosismo alguma coisa em seu íntimo o fez prosseguir. Respirou profundamente e pediu ao Júnior se sabia do Jurandir e então o delegado apareceu naquele momento a correr igreja adentro, esbaforido e dizendo que com a vela nada se podia ver através da janela e que não sentiu nenhum movimento e que só o hálito dele já dificultava sobremaneira as coisas. 

Resolveram arrombar a porta. Mesmo com os muitos pontapés e encontrões, a porta não se mexeu. Estavam extenuados e aquilo feria o brio daqueles três homens corajosos. Sentaram por ali para descansar do esforço sobre-humano e entre tantas coisas que conversaram e que nunca se soube, foi que decidiram deixar as coisas como estavam e se era a alma penada do Padre Dimas, que ficasse em sua última moradia. O frei decidiu conversar com toda a população explicando a situação e que se conformassem, porque aquela porta não poderia ser aberta jamais.

A população aceitou com algumas ressalvas e acostumou-se com os estranhos ruídos que vinham daquele quarto. Alguns anos depois um vendaval outonal levou a sacristia sem dó nem piedade, levando também a aura de espectro inconformado do Padre Dimas. A igreja foi reconstruída e a sacristia ganhou espaço novo - distante da igreja - para as acomodações do frei Leonardo.


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2 comentários:

  1. Ótimo conto!
    Às vezes, precisamos nos acostumar às assombrações que nos cercam.

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  2. Parabéns! Considerando o cenário, vamos viver entre espíritos rs..

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