segunda-feira, 30 de março de 2015

As Cartas do Percival

Por Michele Calliari Marchese


E então ela conheceu o Percival. Baixou os olhos para que ele não percebesse quanta admiração havia causado e não conseguiu entender nada do que ele lhe dissera naquele momento de apresentações. Baixou os olhos porque passaria a vida inteira olhando os dele, sem cansar; e também porque não poderia demonstrar – num olhar – o que lhe ia ao íntimo.

Seu coração não bateu descompassado como acontece com os enamorados, bateu normalmente, como se estivesse em casa preparando os filhos para a missa. Era como se o Percival fosse seu próprio coração, e assim sendo, não haveria o porquê de atrapalhar-se em suas batidas.

O tom da voz do Percival tinha o mesmo timbre da sua alma e ressentiu-se da sua vergonha em escutar o que ele lhe dissera naquele momento em que apertou a sua mão. Vigorosamente. Aquela mão forte, de homem trabalhador, tinha o mesmo toque da sua, quase não percebeu a diferença e confundiu-se por um instante, pois com o nervosismo poderia ter acontecido dela ter juntado suas mãos numa atitude de retração.

Pensou nele como uma metade do corpo pensa na outra, não há possibilidade de estarem separados, a não ser que estejam em corpos diferentes, e a esse pensamento suspirou que poderia ser amor ou poderia ser a coisa mais inexplicável que lhe acontecera em todos esses anos. Porém, sabia lá dentro do seu ser que nunca poderia ser. Não por que não podia, mas porque não precisaria.

O olhar do Percival mostrou que eles eram um. Brilhavam a luz dos homens fortes e íntegros, estavam úmidos como a mansidão do rio que corre à vida. E neles se via tudo, toda a vida com eles.

Mas em seu pensamento de mulher, aquele intenso segundo que conhecera o Percival, foi o suficiente para ter vivido com ele a vida inteira. Olhou para o marido que conversava com aquele homem e sabia que estava no lugar certo e com o homem certo. Era feliz e conhecera outra felicidade nos olhos do Percival. 

Quando encontrou o Percival pela segunda vez, havia passado alguns anos, e ele a abordara saindo da mercearia. Deu uns vinténs às crianças dela para que fossem comprar balas e falou naquela voz que ela conhecia desde sempre que ele estava apaixonado e sabia que ela também. Diante do silêncio que se fez no meio daqueles corpos que eram um, ele lhe disse que escreveria.

De olhos baixos ela nem se despediu. Não respondeu sequer com um suspiro àquelas perguntas que se detiveram na boca do Percival. Sabia que ele queria respostas ao seu amor, porém ela não tinha nenhuma. Nunca estivera apaixonada por ele e tampouco sentira falta. Lembrava-se do brilho dos olhos e da sua voz e do seu aperto de mão, mas como uma lembrança que se perde cada vez mais no percurso da estrada.

Recebeu a primeira carta em agosto daquele ano, justamente no dia do aniversário do primeiro filho. Leu porque achou tratar-se de algum “parabéns” que o Percival estaria dando ao filho dela, mas o que estava escrito a tomou de surpresa e pouco imaginava que aquelas palavras eram dirigidas a ela, pois o tamanho do amor tingido de azul foi emocionante. Ela chegou a chorar e choraria também se a carta não tivesse sido escrita para ela.

Muitos anos depois, quando o marido convidou o Percival para os festejos das Bodas de Ouro, ela finalmente encontrou-se com aquele olhar de homem acabado pela paixão não correspondida, viu que as cartas que ele lhe escrevera tinham sido um grande desabafo para continuar vivendo.

Encontraram-se frente a frente e deram-se as mãos no cumprimento e se perguntaram coisas vãs, coisas que já sabiam e então o Percival engasgou-se na sua emoção quando perguntou se ela havia recebido suas cartas.

Mais de doze mil cartas foram escritas pelo punho daquele homem apaixonado que nunca repetiu uma vírgula em suas missivas e todas tinham o mesmo teor: do homem que sofre com a ausência da mulher que ama.

Ela baixou os olhos e disse-lhe que somente a primeira carta havia sido lida – por um engano qualquer – e que todas as perguntas que tinha, nunca deviam ter surgido em seu coração. E perguntou se ele queria as cartas de volta, para acalentar os anos perdidos. Ou mesmo para entregar à outra mulher, pois ainda havia tempo dele casar.

O Percival negou lentamente com a cabeça, despediu-se com os lábios crispados de dor e foi embora sem dizer adeus.

Escreveu outras tantas milhares de cartas que lhe foi possível em vida e todas jaziam lacradas, organizadas por data e amarradas por mês abarrotando o porão da casa dela até que o marido finalmente lhe perguntou o que era aquilo e ela lhe respondeu não saber, mas que guardara por respeito.

Quando souberam da morte do Percival, ela e o marido esvaziaram o porão, e foi necessária uma carroça para empreender a viagem das cartas que foram colocadas dentro do caixão e foi preciso abrir uma tumba maior para que as outras coubessem lá. Descansaria com suas palavras de amor, nunca lidas.




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segunda-feira, 23 de março de 2015

A Sacristia Assombrada


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu logo após a morte do estimado Padre Dimas. Agora o Frei Leonardo estava só diante de todas as calamidades públicas e espirituais que aconteciam naquela época e acontecem até os dias de hoje. Ele não tinha mais a quem recorrer em tempos de sustos e não havia compreendido a lógica dos ventos de fora de hora. Sobre estes, o coveiro explicou tanto que certo dia cansou e não explicou mais, deixando o pobre Frei à mercê dos ditos cujos.

E ele não percebeu quando soprou uma brisa antes da hora, e tampouco deu atenção aos barulhos que aconteciam na sacristia, bem onde o Padre Dimas passara a vida dormindo. Ele não quis dormir no mesmo lugar por achar uma profanação e não ser capaz de ocupar lugar tão sagrado. Achou-se em outra salinha, bem pequena, destinada à despensa; empurrou a estante mais para lá e colocou uma cama de campana, que ficava junto à parede, e a deslocava até o chão para deitar-se.

Aqueles barulhos não passaram despercebidos pelas pessoas que participavam da missa porque eram os passos do Padre Dimas, como a buscar alguma coisa antes da missa começar. Distraídos pelos ruídos, baixavam as sobrancelhas e olhavam para aquela porta fechada, esperando aparecer alguém a qualquer momento. Jamais alguém apareceu e foi tanta desatenção que frei Leonardo resolveu interromper a missa e pedir o que estava acontecendo. O Seu Roberto, lá da frente que o fez ficar quieto com um dedo na boca para que escutasse.

O delegado Jurandir, que assistia a tudo terrivelmente impressionado, pediu ao frei as chaves daquela porta, ao que o frei respondeu não lembrar onde as tinha guardado e tampouco lembrava se havia trancado a porta ou não e ninguém teve a audácia de verificar tal situação. Enquanto o frei partira em busca da chave, o povo discutia quem abriria a porta.

Tinha gente falando que se o Padre Dimas e o delegado ainda estivessem vivos, aquela situação não passaria da meia noite e já eram oito horas. O imbróglio precisava ser resolvido. As mulheres levaram as crianças para casa para iniciarem as rezas em prol daquela alma penada e partiram aliviadas por não precisarem ficar lá, algumas crianças choravam assustadas e outras choravam de fome e a missa nem tinha terminado.

O frei e o delegado Jurandir não gostaram muito dos comentários, mas nada puderam fazer a respeito. Conheciam os feitos daquela dupla de benfeitores, mas reconheciam não terem as fibras íntimas necessárias para a empreitada. Resolveram chamar o Júnior - o filho do tabelião - que decerto traria os ânimos para o serviço. Quando chegou, tratou de encabeçar a execução do plano previamente elaborado.

O plano era assim: o frei faria uma nova missa com alguns fiéis corajosos e com disposição para ficar lá enquanto o Jurandir dava a volta pelo lado de fora para ver se conseguia ver alguma coisa pela janela da sacristia, justamente aquela onde há tempos atrás encontraram o Padre Dimas agonizando em seu leito de morte; e o Júnior ficaria de tocaia na frente da porta para abri-la, arromba-la ou sabe-se lá o que, já que o frei não tinha encontrado a chave.

A missa forjada pouco andou, porém os barulhos recomeçaram assim que disseram “Amém”, alguns se levantaram muito assustados com ânsias de correr o mais que podiam, porém o frei fez um movimento brusco com a mão, pedindo que reconsiderassem e ajudassem naquele momento de desespero e então o sino tocou. Aí não teve vivalma que ficou dentro da igreja. O coroinha, que não sabia de nada, quase levou uns tapas do frei por ter ido tocar o sino sem consultar as horas e por ter assustado todo mundo.

Nesse meio tempo, o Júnior estava com a mão na maçaneta e quando o sino badalou ele chegou a cair para trás pelo sobressalto. Suas mãos tremiam e quando soube do coroinha chegou a ficar vermelho de raiva e disse num grito sussurrado que falaria à mãe daquele incauto e proferiu outros tantos impropérios mais. Recolocou a mão na maçaneta suando em bicas e tremendo e tirando os cabelos dos olhos com um sopro da boca girando muito lentamente quando percebeu que a porta estava trancada, mas pôde ouvir aquele rumorejar de folhas que se ouvia do quarto e então soltou a mão da tranca, levantou-se, deu dois passos para trás e fez o sinal da cruz. Quem viu a cena – só o frei, porque os outros já tinham debandado e o coroinha tinha saído chorando – ajoelhou-se na frente do altar e começou com as rezas sem nexo, tão bem executadas pelo saudoso Padre Dimas e naquele frêmito de nervosismo alguma coisa em seu íntimo o fez prosseguir. Respirou profundamente e pediu ao Júnior se sabia do Jurandir e então o delegado apareceu naquele momento a correr igreja adentro, esbaforido e dizendo que com a vela nada se podia ver através da janela e que não sentiu nenhum movimento e que só o hálito dele já dificultava sobremaneira as coisas. 

Resolveram arrombar a porta. Mesmo com os muitos pontapés e encontrões, a porta não se mexeu. Estavam extenuados e aquilo feria o brio daqueles três homens corajosos. Sentaram por ali para descansar do esforço sobre-humano e entre tantas coisas que conversaram e que nunca se soube, foi que decidiram deixar as coisas como estavam e se era a alma penada do Padre Dimas, que ficasse em sua última moradia. O frei decidiu conversar com toda a população explicando a situação e que se conformassem, porque aquela porta não poderia ser aberta jamais.

A população aceitou com algumas ressalvas e acostumou-se com os estranhos ruídos que vinham daquele quarto. Alguns anos depois um vendaval outonal levou a sacristia sem dó nem piedade, levando também a aura de espectro inconformado do Padre Dimas. A igreja foi reconstruída e a sacristia ganhou espaço novo - distante da igreja - para as acomodações do frei Leonardo.


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