terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A triste história do caboclo João


Por Michele Calliari Marchese
Todo mundo sabe que os primeiros moradores da Campina da Cascavel foram os caboclos. Desbravaram nossa linda terra e foram abortados quando do início da colonização acontecida após 1917. Uns eram agricultores, enquanto outros criavam animais e assim sobreviviam com parcos recursos, todos analfabetos e sem documentação sobre as terras que acabaram sendo devolutas ao Estado e posteriormente vendidas aos colonizadores assim que aconteceu o Tratado de Divisas em 1917, após a Guerra do Contestado.
Essa é a história do caboclo João, que tinha um pedaço de terra muito linda e produtiva, uma casa com chão de terra batido e uma família de dar gosto. Viviam felizes e se amavam. Todos se ajudavam e, nas noites de lua cheia, se sentavam ao redor do avô para ouvi-lo contar causos de tesouros. Foi no inverno que aconteceu de chegarem gentes brancas por perto de sua terra. Eles construíram casa, moinho e tinham mulas. Plantavam sementes desconhecidas e fizeram um cercado para as galinhas. Coisas que o João sequer sabia que existiam, e se assustou com a brancura daquelas crianças, que decerto estavam desnutridas; se assustou com a cor dos cabelos de um menino que deveria ter no máximo 4 anos. Eram brancos como as nuvens.
Benzeu-se e correu contar a novidade para a família, que tratou de se esconder dentro de casa, por medo de ser aparição de alma penada.
 Com a chegada dessas pessoas, muitos conhecidos do João perderam tudo o que tinham por causo de um documento, que dizia –e eles tinham que acreditar, pois não sabiam ler nem escrever –que aquela terra era deles. E mostravam com os dedos os seus próprios nomes escritos nos documentos e diziam que tinham comprado aquele chão e que aqueles que estavam lá não deveriam estar, mas que por uma misericórdia eles deixavam pegar seus pertences para irem-se embora.
Ir para onde?
Pois o João ficou assustadíssimo com a quantidade de amigos seus, compadres entre si, sumirem de uma hora para outra e resolveu agir antes que acontecesse o mesmo com ele. Não tinham a mínima noção do que estava acontecendo, mas sabia em seu íntimo e quando olhava seus filhos, que alguma coisa estava errada. Não culpava aquela gente nova que chegara por ali, decerto tão ignorantes quanto eles. Culpava alguma coisa que ia além da sua compreensão, porque não sabia de colonização alguma, sequer sabia o que “devolutas” significava e não entendia patavina daqueles documentos que eram apresentados a todo o momento.
Resolveu embrenhar-se no mato, o mais distante que o seu corpo pôde ir. Andou um dia inteiro margeando o rio e quando achou o lugar seguro para morar, abriu a mata com um facão de pau de guamirim e não descansou até não ver uma edícula pronta para receber a sua família.
Levou outro dia inteiro para voltar e quando chegou em casa, encontrou uma família exigindo aquele pedaço de chão e a mostrar-lhes documentos ilegíveis e então o João pediu pelo amor de Deus que esperassem levantar a mudança que iriam embora, e o genitor daquela família de migrantes pediu se eles queriam ficar como empregados dele, mas o João que tinha lá no fundo da sua alma o sentimento do orgulho, pensou por um momento e olhou seus filhos e sua esposa e o seu pai que estava encostado no vão da porta com a cabeça baixa.
E foi quando ouviu daquele homem, que se ficassem todos trabalhariam na lida e receberiam alguma ajuda que resolveu de fato ir-se embora dali. Filho pequeno não pode ir para a roça, nem velho e tampouco mulher.
Juntou o que pôde em pedaços de panos velhos, cada um com o que podia carregar e foram embora dali para sempre. Deixando para aqueles migrantes, uma vida inteira de trabalho e aquela casa de amor. Levaram muito tempo para chegar naquela edícula construída no meio do nada e foram margeando o rio para matar a sede e alimentarem-se quando o mais velho dos seus filhos avistou alguma coisa na água e resolveram içar com um galho de árvore.
Ficaram enojados e pesarosos diante daquele corpo já putrefato, conhecido do João, pois era o compadre Batista que ali se apresentava morto pela água, ou por sabe-se lá o quê.
Quando começaram a cavar uma sepultura digna para aquele homem, os filhos gritaram pelo pai, e a cena foi deveras angustiante para aquela família que só tinha o orgulho e a vontade de trabalhar. Eram mais de meia dúzia de corpos boiando no rio, e a mulher do João vomitou. Tinha criança junto. Era a família do Batista.
O velho percebeu em seu íntimo o que aquela cena representava, pois que se tivessem ficado naquelas terras, seria o destino deles também. Lembrou que o Batista brigou feio na comunidade por causa da sua terra. E o João tinha tomado as dores daquele compadre.
Ele levantou –pois estava cavando o túmulo –rolou o corpo de volta para o rio para que seguisse junto com a família que boiava, pegou os pertences, cutucou cada um dos seus, pois que não conseguia falar por causa da emoção e partiram, e nunca mais se soube deles e de seus descendentes.




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2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Triste, realmente, mas muito bem escrito e cativante para o leitor...gostei muito, parabéns!

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