quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O primeiro automóvel da Campina da Cascavel


Por Michele Calliari Marchese
Esse causo aconteceu quando o tabelião resolveu comprar um automóvel. Foi na década de 30 e as estradas eram intransitáveis; o dito cujo levou três meses para chegar à Campina da Cascavel e veio em cima de um caminhão até Cruzeiro do Sul e depois abriram trilhas a facão e o trabalho, feito por uma dezena de pessoas, era lento e mitigado. Enfrentaram toda espécie de intempéries e muitas vezes ficavam dias parados até que o clima amenizasse.
No dia em que o automóvel chegou à cidade, o tabelião quase chorou de emoção; tinha as mãos no rosto e a boca aberta e não sabia dirigir, mas aprenderia com aqueles que o tinham trazido. Primeiro lavaria, esfregaria e poliria, depois beijaria e passaria as mãos pela lataria para sentir o gosto daquela máquina impensável.
Era o progresso. Era a felicidade.
As crianças logo ajuntaram em torno do carro e foram repelidas bruscamente pelo tabelião, ciumento de dar dó. E assim ele passou dias mostrando, averiguando – sempre de pano na mão – entrando e saindo, ligando o motor e acariciando o volante. Tinha os olhos brilhantes e remoçou no mínimo dez anos.
Aprendeu a dirigir e comprou um terno novo para desfilar de carro na cidade e sua mulher enrolou os cabelos em bóbis para parecer mais bonita lá dentro. Faziam pose e abanavam aos transeuntes. Convidaram até o Padre Dimas para uma volta, mas ele declinou do convite, afinal, era um homem de Deus e deveria manter a humildade dos votos de pobreza – assim dizia.
Aconteceu quando o Aparício, lá do Pesqueiro de Cima, vinha manso em seu cavalo para a cidade a fim de comprar açúcar no comércio e escutou um ronco diferente, algo que nunca tinha escutado em vida e então viu aquele demônio preto surgindo pela estrada e assustou-se de tal modo que desceu do cavalo em disparada para esconder-se no meio do mato.
O tabelião passou pela estrada com seu automóvel e viu aquele cavalo abandonado. Parou, verificou os freios, deu uma passada de camisa no espelho e desceu. Deu uma volta ao redor do cavalo e não se apercebeu dos “psiu” que o Aparício fazia atrás de uma árvore.
“Sai já daí seu tabelião, corra ligeiro”, disse o Aparício muito nervoso. O tabelião escutava o homem, mas não o via, adentrou o mato e ficou procurando, até que achou o Aparício acocorado, com os braços nos joelhos, suando desesperado por alguma coisa muito grave. O tabelião ficou preocupado com aquela cena inusitada e pediu-lhe se estava doente. “Não”, lhe disse o Aparício, e tremia os lábios como se a qualquer momento fosse ter uma síncope. “Se agache home, senão o demo vai te pegar”, repetiu num sussurro aterrador. O tabelião se abaixou assustado, decerto haveria por ali alguma coisa que ele não vira e da qual aquele homem estava escondido. Ficaram os dois por algum momento em silêncio. Cada um ouvindo a respiração do outro, o suor abundante, não tanto pelo calor, mas pelo medo, e isso fez com que o tabelião começasse uma conversa. Pediu o nome do assustado, o que fazia e de onde vinha e o Aparício respondia, sem pestanejar, olhando por entre o mato de quando em quando, numa verificação de aproximação.
Era tão medonha a atitude do Aparício que ele não se dera conta de que já estava deitado no chão, tremendo também, suando mais que o normal e imaginando o inimaginável. Até que por uma ordem da conversa, o tabelião pediu do que o Aparício estava se escondendo. E o homem lhe disse que fizesse silêncio, pois com o barulho que o tabelião fazia era bem capaz de serem descobertos em seu esconderijo. “Espere que a besta saia”, respondeu.
E o tabelião ficou pensando nas palavras daquele homem. “Besta? Ora essa! Que besta?” “A besta dos inferno, seu tabelião”. E o tabelião pediu como era essa besta, para se preparar para o pior, ou para se fingir de morto se o caso exigisse, mas precisava saber. E o Aparício olhava pelo meio do mato e dizia: “É preto, tem uns zóio branco esbugalhado bem na frente no lugar dos dente, ronca como o diabo e no lugar dos pé, tem roda”. E ficou olhando a reação do tabelião que esbugalhou os olhos diante da informação que batia minuciosamente com a descrição do seu automóvel. Ficou um tempo parado, sem reação, pois passara tanto medo que seus joelhos doíam e levantou-se num ímpeto, assustando ainda mais o Aparício, que temia serem descobertos.
Depois de muita discussão, um tal de puxa para baixo para esconder o tabelião e este levantando-se, foi que o Aparício começou a entender o negócio.
O tabelião puxava o braço do Aparício para mostrar-lhe o carro, e este se benzia sem parar e fechava os olhos e quase chorara implorando para que o tabelião não o levasse para a boca do satanás.
No fim do dia - porque eles ficaram escondidos a tarde inteira - foi que o Aparício entrou no automóvel para conhecer e ficou admirado com tanta inovação e tecnologia e pediu como funcionava e sacou de um lenço que tinha no bolso da calça e inconscientemente começou a lustrar todas as peças seguido dos suspiros do tabelião.
“Um dia eu vou ter um desses”, disse o Aparício ao tabelião e este lhe respondeu que um dia todos teriam um desses. Era o progresso chegando à Campina da Cascavel!

*** Conto inspirado no Livro “O velho Xaxim” da escritora Valdirene Chitollina. Fica a dica para leitura ***


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Um comentário:

  1. Muito interessante, Helena, e divertido! Em minha região é comum, entreos mais velhos, histórias sobre as inovações ao longo do tempo. Parabéns à escritora.

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