quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Promessa é Dívida

Lá pela segunda metade da década de 30, pelas bandas da Fazenda São Geraldo, na antiga Rio do Peixe, hoje Piracema, circulavam as carroças de rústicas rodas de madeira e também os carros de bois que transportavam os carregamentos de lenha, latões de leite, de cana de açúcar, de milho e outros mantimentos, além daquela gente que precisava se deslocar das fazendas para os povoados, ou para as cidades que existiam por perto. Era comum e uma verdadeira alegria quando havia algum festejo na vizinhança, nos lugarejos. As famílias aprontavam malas e matulas para se acomodarem nos carros de bois e seguirem em suas viagens.
Na semana santa era, então, uma viagem tradicional e muito especial. Havia muitos preparativos durante semanas que a antecediam. Roupa nova para toda a família, vestidos que eram costurados e enfeitados pelas moças, com todo esmero; latas e latas de biscoitos de polvilho, pães de queijo, roscas, broas, tudo preparado cuidadosamente nos fornos de barro. Preparavam um tipo de biscoito cozido e assado, muito cobiçado, que ficava bonito, brilhante e que, curiosamente, era feito só naquela ocasião, talvez por ser muito trabalhoso, ou sabe-se lá se por alguma crença em especial; doces caseiros, goiabada cascão feita em tachos de cobre, doces em calda de mamão, laranja da terra, doce de leite e não podia faltar o queijo fresco e o curado, queijos tipicamente mineiros; as carnes de porco embebidas na gordura talhada, além de todos os outros alimentos que sustentariam as famílias, durante uma semana, fora de casa. Tudo pronto e com o sortimento completo, pegavam seus colchões de palha e seguiam para a cidade, onde se instalavam em casas que mantinham para essas ocasiões, ou em casas de algum parente. Algumas pessoas seguiam o trajeto a pé, seguindo os carros de bois.
A estrada que ligava a fazenda à cidade era estreita, poeirenta e bastante irregular, segundo me contaram, foi aberta a golpes de enxadões. Por aquelas bandas, automóvel era desconhecido da maioria das pessoas.  Foi numa destas idas à cidade que Dalva viu, pela primeira vez, um automóvel. Ela era ainda uma criança e seguia a pé junto a alguns irmãos, acompanhando os carros de bois que transportavam a sua família, o que para eles representava uma grande aventura. De repente, Dalva avistou um automóvel que apontou na curva e que provavelmente também passava por ali pela primeira vez. A estrada era ladeada pelas cercas de arame farpado que dividiam terras e também serviam de limites para o gado. Quando ela avistou o carro, saiu em disparada, gritando assustada, passou por debaixo da cerca e se escondeu atrás de um cupinzeiro. Seus irmãos, sem entender nada, se apavoraram e cada um correu para um lado. Os bois se assustaram e os boiadeiros tiveram trabalho para contê-los. Era preciso encostar os carros de bois para dar passagem ao carro, mas tiveram que tocá-los ainda por um bom espaço, até que encontraram uma brecha na estrada estreita. De modo que aquele cortejo durou alguns minutos e na preocupação de resolver aquela situação, a família esqueceu-se da menina, que continuava acuada e escondida atrás do cupinzeiro.
Há alguns meses, Tia Dalva, já então com oitenta e quatro anos, assistia uma chamada na TV sobre corridas de Fórmula I e comentou: - Fico vendo estes carros de hoje, estas corridas malucas e fico pensando como as coisas mudaram nos últimos oitenta anos. Como a gente era atrasada e sem recursos. Ela lembrou-se da tal aventura com o carro e dizia entre risos que aquele foi um momento de pânico, do qual se lembrava perfeitamente. O carro preto pareceu-lhe um monstro e o seu maior pavor foi imaginar que ele não poderia parar quando se aproximasse dos carros de bois e assim passaria por cima de todos. “Por mal dos pecados”, ainda a deixaram para traz e ela não sabia o que fazer ali escondida e esquecida até que Lêda, sua irmã mais nova, lembrou-se de voltar para procurá-la e a encontrou chorando copiosamente. Lêda muito esperta fez com que Dalva acreditasse que ela se salvou por milagre, pois se não a tivesse encontrado e ela ficasse ali sozinha, quando escurecesse o enforcado Antônio do Tipêdra (uma outra história para contar) apareceria para ela e sabe-se lá o que poderia acontecer. Dalva ficou ainda mais apavorada. Lêda então fez com que ela prometesse fazer uma penitência durante a semana santa e oferecesse às almas o seu sacrifício. Foi logo sugerindo: - Você fica sem comer os biscoitos cozidos e assados que Mamãe distribui para nós e como fui eu quem te salvou, você aceita os seus e passa para mim, combinado?  Os tais biscoitos eram os preferidos de Lêda, e como só eram preparados apenas nesta época, seria uma boa oportunidade de se fartar deles.
As meninas voltaram e se reuniram ao grupo, prosseguindo rumo à cidade. Ambas ganharam alguns puxões de orelha de meus avós, pois estavam atrasando a viagem. Chegaram enfim à cidade e se acomodaram na casa da rua principal, bem perto da igreja matriz. Era o sábado que antecedia o dia da procissão de ramos, início da semana santa. Trouxeram da fazenda, ramos de alecrim, folhas de palmeiras e coqueirinhos, galhos de cipreste para a benção dos ramos. A família muito religiosa fazia questão de participar de todos os rituais e programações, mas para os mais novos, embora houvesse grande respeito, muitas coisas que aconteciam eram para eles pura diversão. Na procissão de velas acesas, divertiam-se queimando cabelos de quem ia à frente deles na fila, deixavam pingar vela derretida nos pés de outros, entre outras traquinagens.
Dalva, depois de passado o susto e o medo, pensava então em uma forma de negociar sobre a promessa da tal penitência. Não estava achando boa a ideia de perder seus biscoitos, mas de alguma forma teria que pagar a sua promessa. Chamou Lêda e então fez uma proposta: - vamos pensar em alguma coisa que agrade muito aos nossos pais e como recompensa pedimos mais biscoitos e doces e aí te dou os que eu prometi a você, mas os outros que ganharmos, nós dividiremos. O que acha? Lêda achou ótima a ideia e as duas passaram então a pensar no que fariam para merecer a recompensa.
No domingo acordaram cedo e saíram de casa em casa onde havia jardins e pediram aos donos que lhes dessem algumas flores. Elas recolheram tantas flores quanto puderam e em um quarto dos fundos montaram um lindo bouquet. Assim que terminaram esconderam-no até o momento da procissão, quando pegaram o ramalhete, se postaram em frente ao andor e fizeram todo o percurso da procissão, uma volta completa naquele pequeno lugarejo. No retorno da procissão à Igreja, depositaram as flores no altar. A família assistiu a tudo comovida e orgulhosa. De volta a casa, as meninas foram muito elogiadas por aquela bela atitude, mas ninguém falou em recompensá-las, como elas imaginaram. Foram dormir bastante decepcionadas.
No dia seguinte, ainda durante o café da manhã, elas aguardavam que o plano desse certo, mas nada aconteceu, os tais biscoitos não foram servidos a ninguém. Minha avó chamou por uma delas e disse-lhe que ela deveria ir à casa de uma senhora sua comadre, para entregar-lhe uma encomenda. Entregou a Dalva uma cestinha coberta por um pano bordado e ela se pôs logo a caminho, acompanhada por Lêda.  No trajeto as meninas perceberam que na encomenda estavam exatamente os biscoitos cozidos e assados - se entreolharam e sorriram com cumplicidade. Passado algum tempo retornaram e entregaram a cestinha vazia para minha avó. Perguntadas se a comadre gostou do presente, novamente se olharam e inusitadamente Dalva, já tremendo de medo de uma boa surra, sacou da resposta: - Ela nem viu os biscoitos. Tudo por culpa daquele carro preto que desceu a rua correndo atrás da gente e nós tivemos que correr e nos esconder. Eu caí, mamãe, e lá se foram seus biscoitos.
Enquanto isso, Lêda saiu de mansinho até o jardim, apanhou uma rosa e voltou para entregá-la à mãe. Essa, que nada tinha de boba ou ingênua, logo percebeu a artimanha da menina. Foi à cozinha, apanhou alguns biscoitos e os ofereceu às duas filhas. Elas apenas se olharam e saíram em disparada, com um baita enjoo, só de olhar para aqueles malditos biscoitos. Afinal, foram com muita sede ao pote e comeram mais do que podiam.
Só depois de algum tempo, em uma conversa com minha avó, é que as meninas souberam de sua intenção: oferecer os biscoitos a elas naquele momento foi apenas um teste, já que ela havia desconfiado daquela história que lhe contaram. Confessou que riu muito, mas disfarçadamente, e enquanto as meninas corriam desesperadas ela pensava: - Deixa estar, elas pensam que me enganam, mas a dor de barriga já está de bom tamanho!


Celêdian Assis de Sousa

Belo Horizonte - MG






Foto de acervo pessoal - Piracema (antiga Rio do Peixe) – primeiro automóvel da cidade   









Nota: Este texto nos foi enviado para publicação pelo(a) próprio(a) autor(a), sendo aqui reproduzido com permissão. É de inteira responsabilidade do(a) autor(a), que detém sobre o mesmo todos os direitos autorais. Este texto não representa, necessariamente, a opinião das editoras e de outros autores deste site.

 © 2015 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a).


terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O divorciado


Por Michele Calliari Marchese

Esse episódio aconteceu quando o Vilson saiu para a lida na roça e encontrou um compadre divorciado na estrada. Conversaram um tantinho e o compadre lhe disse que uma das coisas ruins de estar separado é que não se tinha o que comer em casa. O Vilson ficou compadecido com a situação e prontamente o mandou à sua casa para comer o bolo frito que a esposa tinha recém tirado do forno. Gritou para a mulher ali da estrada mesmo, mas ela não escutou.
Quando o compadre bateu na porta e ninguém atendeu, resolveu dar uma volta por fora da casa, pois que as janelas estavam abertas e ela poderia estar em algum quarto. Encontrou-a abaixada ao lado da cama do casal fazendo um esforço inaudito para consertar alguma coisa.
Chamou a comadre que levou um susto ao ver o compadre na janela, todo penteado de brilhantina e cheiroso. Ela levantou arrumando a saia e dizendo numa rapidez melancólica que não sabia como é que a cama tinha se quebrado e o compadre, muito solícito e com fome, ofereceu-se para ajudar.
Arrumou a cama, comeu o bolo e conversou amenidades rapidamente porque ficava muito chato que ele estivesse ali justamente quando o marido estava no trabalho.
À noite, quando o Vilson foi se deitar encontrou uma chave perdida entre o pé da cama e a mesinha de por o copo d’água. Pegou a chave, mordeu os lábios e não reconheceu a dita cuja, mas mesmo assim testou em todas as suas portas e trancas. Em nenhuma serviu. Embrulhou a chave num lenço e guardou no bolso da calça. Não falou nada e engoliu pesadamente as ideias que vinham em sua cabeça. Que diabos era aquilo?
Não conseguiu dormir e custou a levantar no dia seguinte.
Resolveu que contaria ao compadre sobre o descobrimento da chave para ver se ele lhe ajudava com algum conselho. Bateu na porta da casa do homem e ouviu que era para ele dar a volta e entrar pela despensa já que tinha perdido a chave da porta da cozinha.
Pois o Vilson ficou pálido com o que ouviu e resolveu – num ímpeto – que cuidaria o momento que o compadre saísse para experimentar a chave que encontrou na porta daquele divorciado. E o compadre percebeu a raiva de cão que perpassava nos olhos do Vilson e se perguntou o porquê da visita e uma comoção passou pelo seu coração de homem sozinho: O Vilson teria descoberto alguma coisa?
O Vilson escondeu-se num mato ao lado da casa do compadre e esperou. Suava tanto que chegou a passar mal, tanto pelo calor como pelas desconfianças que estavam a um passo de serem confirmadas, e se fossem, não queria nem pensar para não ter um ataque ali mesmo. Quando o compadre saiu, o Vilson desembrulhou a chave do lenço e com as mãos trêmulas e molhadas tentava acertar a fechadura, mas estava tão nervoso que não conseguia. Tratou de acalmar-se e por fim ouviu o clique da traição.
Nem pensava o coitado, tomado de fúria incontrolável deu um coice na porta que bateu na parede e voltou a fechar indo de encontro ao seu rosto estupefato. Esse acidente fez com que o Vilson voltasse à razão e então resolveu que daria uma janta ao compadre e confrontaria a esposa e o amante na mesa da cozinha.
Avisou a esposa que preparasse um belo jantar e pediu à filha que tomasse banho e vestisse a melhor roupa que tinha.
Chamou o compadre para a ceia e quando este sentou à mesa, o Vilson jogou a chave no peito do traidor e disparou uma série de impropérios dizendo que era para ele e a esposa sumirem de suas vistas e gritou dando vazão aos sentimentos de traído que a esposa saísse de casa só com a roupa do corpo e que fossem viver aquela sem-vergonhice longe dos olhos dele e da filha.
A filha tremeu e começou a chorar dizendo não ser a mãe a amante do compadre e sim ela, iria embora bastava que o namorado se levantasse.
E o Vilson que acompanhava o desenrolar da cena, olhou para a esposa e num sentimento que passou no fundo do seu peito o fez acreditar que não era só a filha a concubina daquele divorciado.


© 2015 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a).

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O primeiro automóvel da Campina da Cascavel


Por Michele Calliari Marchese
Esse causo aconteceu quando o tabelião resolveu comprar um automóvel. Foi na década de 30 e as estradas eram intransitáveis; o dito cujo levou três meses para chegar à Campina da Cascavel e veio em cima de um caminhão até Cruzeiro do Sul e depois abriram trilhas a facão e o trabalho, feito por uma dezena de pessoas, era lento e mitigado. Enfrentaram toda espécie de intempéries e muitas vezes ficavam dias parados até que o clima amenizasse.
No dia em que o automóvel chegou à cidade, o tabelião quase chorou de emoção; tinha as mãos no rosto e a boca aberta e não sabia dirigir, mas aprenderia com aqueles que o tinham trazido. Primeiro lavaria, esfregaria e poliria, depois beijaria e passaria as mãos pela lataria para sentir o gosto daquela máquina impensável.
Era o progresso. Era a felicidade.
As crianças logo ajuntaram em torno do carro e foram repelidas bruscamente pelo tabelião, ciumento de dar dó. E assim ele passou dias mostrando, averiguando – sempre de pano na mão – entrando e saindo, ligando o motor e acariciando o volante. Tinha os olhos brilhantes e remoçou no mínimo dez anos.
Aprendeu a dirigir e comprou um terno novo para desfilar de carro na cidade e sua mulher enrolou os cabelos em bóbis para parecer mais bonita lá dentro. Faziam pose e abanavam aos transeuntes. Convidaram até o Padre Dimas para uma volta, mas ele declinou do convite, afinal, era um homem de Deus e deveria manter a humildade dos votos de pobreza – assim dizia.
Aconteceu quando o Aparício, lá do Pesqueiro de Cima, vinha manso em seu cavalo para a cidade a fim de comprar açúcar no comércio e escutou um ronco diferente, algo que nunca tinha escutado em vida e então viu aquele demônio preto surgindo pela estrada e assustou-se de tal modo que desceu do cavalo em disparada para esconder-se no meio do mato.
O tabelião passou pela estrada com seu automóvel e viu aquele cavalo abandonado. Parou, verificou os freios, deu uma passada de camisa no espelho e desceu. Deu uma volta ao redor do cavalo e não se apercebeu dos “psiu” que o Aparício fazia atrás de uma árvore.
“Sai já daí seu tabelião, corra ligeiro”, disse o Aparício muito nervoso. O tabelião escutava o homem, mas não o via, adentrou o mato e ficou procurando, até que achou o Aparício acocorado, com os braços nos joelhos, suando desesperado por alguma coisa muito grave. O tabelião ficou preocupado com aquela cena inusitada e pediu-lhe se estava doente. “Não”, lhe disse o Aparício, e tremia os lábios como se a qualquer momento fosse ter uma síncope. “Se agache home, senão o demo vai te pegar”, repetiu num sussurro aterrador. O tabelião se abaixou assustado, decerto haveria por ali alguma coisa que ele não vira e da qual aquele homem estava escondido. Ficaram os dois por algum momento em silêncio. Cada um ouvindo a respiração do outro, o suor abundante, não tanto pelo calor, mas pelo medo, e isso fez com que o tabelião começasse uma conversa. Pediu o nome do assustado, o que fazia e de onde vinha e o Aparício respondia, sem pestanejar, olhando por entre o mato de quando em quando, numa verificação de aproximação.
Era tão medonha a atitude do Aparício que ele não se dera conta de que já estava deitado no chão, tremendo também, suando mais que o normal e imaginando o inimaginável. Até que por uma ordem da conversa, o tabelião pediu do que o Aparício estava se escondendo. E o homem lhe disse que fizesse silêncio, pois com o barulho que o tabelião fazia era bem capaz de serem descobertos em seu esconderijo. “Espere que a besta saia”, respondeu.
E o tabelião ficou pensando nas palavras daquele homem. “Besta? Ora essa! Que besta?” “A besta dos inferno, seu tabelião”. E o tabelião pediu como era essa besta, para se preparar para o pior, ou para se fingir de morto se o caso exigisse, mas precisava saber. E o Aparício olhava pelo meio do mato e dizia: “É preto, tem uns zóio branco esbugalhado bem na frente no lugar dos dente, ronca como o diabo e no lugar dos pé, tem roda”. E ficou olhando a reação do tabelião que esbugalhou os olhos diante da informação que batia minuciosamente com a descrição do seu automóvel. Ficou um tempo parado, sem reação, pois passara tanto medo que seus joelhos doíam e levantou-se num ímpeto, assustando ainda mais o Aparício, que temia serem descobertos.
Depois de muita discussão, um tal de puxa para baixo para esconder o tabelião e este levantando-se, foi que o Aparício começou a entender o negócio.
O tabelião puxava o braço do Aparício para mostrar-lhe o carro, e este se benzia sem parar e fechava os olhos e quase chorara implorando para que o tabelião não o levasse para a boca do satanás.
No fim do dia - porque eles ficaram escondidos a tarde inteira - foi que o Aparício entrou no automóvel para conhecer e ficou admirado com tanta inovação e tecnologia e pediu como funcionava e sacou de um lenço que tinha no bolso da calça e inconscientemente começou a lustrar todas as peças seguido dos suspiros do tabelião.
“Um dia eu vou ter um desses”, disse o Aparício ao tabelião e este lhe respondeu que um dia todos teriam um desses. Era o progresso chegando à Campina da Cascavel!

*** Conto inspirado no Livro “O velho Xaxim” da escritora Valdirene Chitollina. Fica a dica para leitura ***


© 2015 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a). 

sábado, 10 de janeiro de 2015

UMA QUESTÃO DE NOME

Por Antonio Sodré

Clarice dizia que não buscava a beleza; buscava a verdade. Ainda que acredite que o nome quem faz é a pessoa, existe uma boa sonoridade, algo distinto e apreciável na junção de alguns nomes e sobrenomes. É que escritores – eu pensava - têm nomes difíceis, enigmáticos, simbólicos. É José, tão simples e belo, mas é Saramago. Poucos sabem que sem o “s” maiúsculo, o nome designa uma espécie de planta crucífera, ou seja, planta cujas flores têm corola em forma de cruz, como o agrião. Talvez exista um José Agrião em alguma parte, mas observem que mesmo que fosse um escritor respeitável, a sonoridade seria bem inferior. É Fernando, nome forte, expressivo, tanto quanto comum, mas é Sabino. E sabino é o nome de um antigo povo que habitava a Itália. Lembram-se do famoso “Rapto das Sabinas”? Pois é, mas o nosso Sabino continua sendo brasileiríssimo. Sim, continua, pois escritores não morrem, apenas ausentam-se dessa existência. Do mesmo modo, é Antônio, com ou sem acento agudo ou circunflexo, nome pelo qual tenho muita estima, mas é Calado. E entre os sentidos habituais da palavra, calado também é a distância entre a superfície da água em que uma embarcação flutua e a face interior de sua quilha. Um navio atracado está em calado. Soa, às vezes, irônico, pois Calado foi tudo menos calado. 
Alguns são atraídos pela tarefa de sondar a beleza por trás dos nomes, muitos adjetivados. Obras de teor lispectorante ou drummondiano atraem olhares curiosamente, porque nomes carregam marcas, insígnias. E muitas destas são atribuídas àlguma sorte, ou maldição. O nome Caim não é muito benquisto pelos pais... Por que será? E Lúcifer, portador da luz, não designa mais a sua origem. Satanás, o acusador, além do primeiro dono, só foi dado ao que me parece, ao perro da Bruxa do 71, Dona Clotildes. 
Se Clarice buscava a verdade, contextualizada na busca incessante de exprimir seu pensamento, sua verve literária, acabou por dar além de uma expressividade inconfundível, uma autenticidade imutável e incorruptível às suas obras, uma beleza encontrada apenas em suas histórias, em seus personagens, com nomes tantos e variados, incomuns como o nome da autora. Até hoje só conheci uma Macabéa... Tenho medo do nome Macabéa, talvez pela infeliz sorte da personagem, talvez porque é um nome sem sentido, de origem apenas onírica. Mas também me recorda uma estrela, um escarlate sanguíneo, uma redescoberta, catarse dessas que só quem conheceu Macabéa sabe.
Quem tem nome composto sabe a sina de se dirigir à muitas direções. Ora sou Antonio, o digno de apreço, o inestimável, ora sou Fernando, o ousado, o corajoso, ou em um tom mais austero e impessoal sou Sodré, de origem incerta, meio portuguesa, meio inglesa, sem sentido aparente, mas que causa até uma boa impressão; ou simplesmente, como sou menos conhecido, sou Júnior, o mais jovem entre duas pessoas. Nesse caso, entre três pessoas; o Júnior é a parte menos habitual de mim. Com os quatro nomes que possuo, posso fazer boas combinações, mas o que me agrada é que de tantos nomes, eu posso escolher ser o Antonio ou o Fernando que quiser, ou pelo menos tentar... Mas meu nome por muitas vezes assume outras nacionalidades, encarna outros gêneros, famílias, e me desafia. Que enquanto o texto não está pronto, eu sou o mote de sua criação, e me chamo por vezes Patrício, Espanca... Hoje eu fui completamente Lispector, numa dessas tantas outras licenças poéticas, que eu sei que vestindo um nome, é apenas mais um eu que pede para existir.



© 2015 Blog Sem Vergonha de Contar. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.