segunda-feira, 20 de abril de 2015

Sobre Pudins e Sagus


Por Michele Calliari Marchese


Esse causo aconteceu no casamento do Osório mais a Donana. Foi quando chamaram os noivos para bater as chapas com os compadres que viram que os dois estavam mortos, sentados nas suas cadeiras, com os ombros encostados. Pareciam que estavam dormindo, mas não. De casamento a velório, foi o tempo que o marceneiro levou para preparar os caixões.

Foi muito triste e os convidados ficaram assustados.

Logo, o pessoal começou com as especulações sobre o que tinha acontecido e a maioria achava que talvez tivesse sido obra de algum jagunço que entrou muito escondido e rendeu os noivos que estavam sozinhos na mesa.

“Mas alguém haveria de ver”, disse o delegado, tomando as rédeas da situação e para não deixar a população em polvorosa: “Já sei até quem é o culpado, por causa do gato”.

Ficou combinado que o julgamento seria no dia seguinte às oito da manhã na igreja, pois lá tinha mais cadeiras e todos poderiam assistir à prisão do assassino ali mesmo e na frente de todo mundo.

As beatas estavam assustadas, pois não podiam conceber que havia um assassino na Campina da Cascavel, tão pacata, tão familiar!

No dia seguinte, o Padre Dimas abriu a igreja bem cedinho porque já tinha umas gentes por lá para assistir ao julgamento, e todos foram chegando um a um, com as cabeças baixas como a serem os próprios assassinos.

O delegado chegou, tirou o chapéu, subiu no altar e disse: “Deus, tenha piedade desse assassino que se encontra entre a gente de bem”.

“Amém”, disse o Padre Dimas.

E assim começou a falar, e foi o primeiro julgamento que aconteceu na Campina da Cascavel e é lembrado até hoje pela perspicácia e inteligência do Delegado.

“Como eu presenciei todos os fatos, posso desse modo, ao final do julgamento, dar voz de prisão ao assassino de Osório e Donana. Como todo mundo foi convidado para o casamento eu também estava lá e o acontecido foi que enquanto todo mundo se divertia, os noivos foram mortos em suas cadeiras.”

“Logo depois da missa de casamento, aconteceu o jantar e o Gonga, que estava em ronda por ali, veio me contar que encontrou a Dona Lucinda chorando mais o Seu Armando que é irmão dela consolando a pobre que é depressiva porque morria de amores pelo Osório – o noivo – e ela contava ao irmão que alguém havia dito que os pudins do casamento estavam estragados e que o leite estava ranço e ela tinha vergonha de dizer isso aos noivos porque eles poderiam pensar que ela estava fazendo aquilo por ciúmes.”

“O Gonga imediatamente avisou os noivos e os compadres abriram uma vala perto da estrada e enterraram os pudins, para desespero da doceira que foi praticamente enxotada do lugar; deste modo vemos que o Osório e sua noiva estavam vivos e não podiam ter morrido de comer leite rançoso.”

“Uma verdadeira afronta à Dona Jacira, nossa pudinzeira de tantos anos.”

“Depois disso, o Gonga voltou para a ronda e encontrou um jagunço seu conhecido e fugido do Paraná que estava com o cavalo do Osório, do Armando e do Padre Dimas. O Gonga prendeu o homem numa árvore e trouxe os cavalos de volta. Avisou o Osório do ocorrido de modo que ele ainda vivia quando o jagunço tinha sido preso.”

“Enquanto todos dançavam, eu notei que o Armando levou um copo de graspa para o Osório, e quem tomou foi a Donana de modo que se a graspa estivesse com algum veneno, só morreria a Donana e não os dois juntos. E ainda apareceu a Dona Lucinda com um pratinho de sagu, e deu para os noivos que comeram em seguida.”

“Acredito que tenha sido um pacto de morte”.

Ninguém se convenceu e o Padre Dimas fez o sinal da Cruz. 

“Quando eu saí do galpão para fumar um palheiro e avisar o Gonga que estava na hora de ir embora, encontrei um gato morto perto da carroça do leiteiro e achei que talvez o pobre tivesse sido atropelado, mas não encontramos nenhuma marca de atropelamento e sim, de morte morrida e foi quando ouvimos os gritos de dentro do galpão avisando que os noivos estavam mortos”.

E quem é o assassino, então? E que tem o gato?

“O gato era de Donana e não saía de perto dela, de modo que sempre que comia alguma coisa, o gato recebia um pouco também, e dou a voz de prisão para a Dona Lucinda, que muito inteligentemente mentiu a respeito dos pudins de Dona Jacira para que ela pudesse preparar o sagu para dar aos noivos, e assim, dar cabo deles para sempre, pois nunca se conformou com o abandono de Osório para com a sua pessoa, diferentemente de seu irmão, o Armando que aceitou pacificamente e até se casou com outra quando Donana deixou dele para ficar com o Osório.”

“Mas não fui eu.” Disse Dona Lucinda gritando. 
“Não fui eu. Eu juro, não fui eu”. Mas o Gonga não teve dó nem piedade, arrastou a Dona Lucinda e levou ela no cavalo a galope para o Sanatório da capital. Nunca ninguém mais ouviu falar nela.

Naquele fatídico dia do julgamento, apenas duas pessoas estavam felizes:

O delegado, por ter descoberto o primeiro assassino da Campina; 

E o Armando, que ria um riso doentio enquanto manuseava prazerosamente uma garrafinha cujo líquido letal balançava ao sabor da loucura. 



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domingo, 12 de abril de 2015

Por que não se pode sair na Quaresma



Por Michele Calliari Marchese


Eu já escrevi em outra ocasião que durante a Quaresma não se pode fazer loucuragens, tampouco festejar por algum motivo e se a Dona Ritinha estivesse entre nós, ela mesma daria os conselhos necessários para passar os quarenta dias em paz, já que a própria, naquela época, fora abocanhada pelo demo em carne, ossos e brilhantina.

Esse causo se deu numa quaresma acontecida há tanto tempo que ninguém mais se lembra, mas que aconteceu e foi deveras assustador.

Faltava uma semana para o domingo de Páscoa, e o Adriano estava de aniversário. Faria trinta anos e queria festejar, quem sabe até arrumar casamento. Ele tratou de espalhar a notícia e logo todos estavam sabendo dos festejos. Era rico o Adriano e podia fazer quantas festas quisesse. 

O Padre Dimas, naquela semana de missas e novenas, instruiu o povo a pensar antes de participar de festividades ou de sair sozinho de noite, sem os devidos cuidados reflexivos. E finalizou dizendo para não esquecerem de que estavam na Quaresma.

Como o Adriano estava afoito em seus afazeres solenes, não participou da missa e da novena sequer um suspiro foi lembrado. Ele contratou doceiras, cozinheiras e comprou três barris de vinho. Quando tudo estava pronto e arrumado, foi na sanga e tomou um belo de um banho. Vestiu um terno elegante e penteou os cabelos para o lado. Lustrou os sapatos até estarem tinindo e seu par de meias pretas – para combinar com o sapato – foram trazidas de Pato Branco pelo caixeiro viajante.

Na hora mais aprazível do dia, aquela da chegada dos convidados, o Adriano olhou-se pela última vez no espelho e borrifou-se com perfume. Pela porta aberta foram entrando gentes de todos os tipos para a festa de trinta anos, crianças, velhos, moças casadoiras, homens e freis, alguns bem vestidos, outros em extrema pobreza. E o aniversariante cumprimentou todos, sem exceção e com exagerada extravagância mostrava com o braço a mesa lauta.

Durante a festa, percebeu o silêncio que reinava no local e decidiu ele mesmo tocar modinhas em sua viola, acompanhado por quatro homens que ele não conhecia, e pensando bem, nunca tinha visto tanta gente desconhecida em sua vida. Mas não importava, estava feliz e começou a tocar, embalado pelo vinho que os companheiros de festim sempre lhe ofereciam.

Mandava que dançassem, mas ninguém o fazia, mandava que cantassem, e a não ser o grupo que estava junto dele, ninguém cantava. Um dos homens que estava por ali pegou um barril vazio e começou a batucar muito alto e aquilo batia no peito do Adriano, deixando-o em êxtase. Era tanta excitação que ficou extenuado pelo sentimento atroz que invadia sua mente e o seu ser. Foi quando alguém lhe sussurrou no ouvido que era Quaresma que o Adriano não ouviu mais nada. Aquela festa era o artifício maior da felicidade.

Bebia demais e cantava e pulava e agarrava algumas mocinhas que estavam por ali. Aquele frei lhe disse que se acalmasse, porque nem tudo é o que a gente vê. Pediu-lhe onde o Adriano guardava o dinheiro para poder ir comprar mais vinho e comida e quem sabe algum chá para o restabelecimento do coitado, que revirava os olhos de bêbado. Dava dó da situação do pobre Adriano.

Pois o dito revelou o esconderijo de seu dinheiro, confiando no frei e dormiu logo em seguida, no chão da sua casa, perdido entre o efêmero e o frio que sentia. 

Foi acordado pelos tabefes que o Padre Dimas lhe dava. Levou um tempo para recuperar as faculdades mentais e notou que a mesa continuava intacta, sem ter sido mexida num ínfimo grão de arroz. Os barris de vinho estavam resguardados no mesmo lugar que seu agregado deixara, a viola quebrada no chão justificava a noite, porém não havia marcas de nada e de ninguém.

O Adriano enlouqueceu. Tiveram que vir os vizinhos interceder naquela descambação de lágrimas e gritos. Juraram de pés juntos ao Padre que não havia ninguém na casa do rapaz e escutaram alguns gritos de cantoria que pensavam ser do aniversariante comemorando com algum amigo.

Afinal, era Quaresma e não se podia sair por aí em festejos.

E o Padre Dimas explicou que as pessoas que estavam comemorando, eram dos que morreram antes da hora; aqueles que sempre chegam cedo demais ou tarde demais e somem quando o sol aparece. O Adriano tratou de acalmar-se, pois não queria ser conhecido por aí como o festeiro de almas penadas e lembrou-se daquele frei pedindo-lhe dinheiro e pôs a mão na testa, depois na boca, suspirou profundamente e quase lhe faltaram as pernas quando levantou para verificar se o seu dinheiro ainda estava lá, naquele esconderijo que ele tratou de entregar.

Voltou pobre e não disse uma palavra àquelas pessoas que estavam ali. 

Acertaria as contas na próxima Quaresma. Fosse com quem fosse.


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segunda-feira, 30 de março de 2015

As Cartas do Percival

Por Michele Calliari Marchese


E então ela conheceu o Percival. Baixou os olhos para que ele não percebesse quanta admiração havia causado e não conseguiu entender nada do que ele lhe dissera naquele momento de apresentações. Baixou os olhos porque passaria a vida inteira olhando os dele, sem cansar; e também porque não poderia demonstrar – num olhar – o que lhe ia ao íntimo.

Seu coração não bateu descompassado como acontece com os enamorados, bateu normalmente, como se estivesse em casa preparando os filhos para a missa. Era como se o Percival fosse seu próprio coração, e assim sendo, não haveria o porquê de atrapalhar-se em suas batidas.

O tom da voz do Percival tinha o mesmo timbre da sua alma e ressentiu-se da sua vergonha em escutar o que ele lhe dissera naquele momento em que apertou a sua mão. Vigorosamente. Aquela mão forte, de homem trabalhador, tinha o mesmo toque da sua, quase não percebeu a diferença e confundiu-se por um instante, pois com o nervosismo poderia ter acontecido dela ter juntado suas mãos numa atitude de retração.

Pensou nele como uma metade do corpo pensa na outra, não há possibilidade de estarem separados, a não ser que estejam em corpos diferentes, e a esse pensamento suspirou que poderia ser amor ou poderia ser a coisa mais inexplicável que lhe acontecera em todos esses anos. Porém, sabia lá dentro do seu ser que nunca poderia ser. Não por que não podia, mas porque não precisaria.

O olhar do Percival mostrou que eles eram um. Brilhavam a luz dos homens fortes e íntegros, estavam úmidos como a mansidão do rio que corre à vida. E neles se via tudo, toda a vida com eles.

Mas em seu pensamento de mulher, aquele intenso segundo que conhecera o Percival, foi o suficiente para ter vivido com ele a vida inteira. Olhou para o marido que conversava com aquele homem e sabia que estava no lugar certo e com o homem certo. Era feliz e conhecera outra felicidade nos olhos do Percival. 

Quando encontrou o Percival pela segunda vez, havia passado alguns anos, e ele a abordara saindo da mercearia. Deu uns vinténs às crianças dela para que fossem comprar balas e falou naquela voz que ela conhecia desde sempre que ele estava apaixonado e sabia que ela também. Diante do silêncio que se fez no meio daqueles corpos que eram um, ele lhe disse que escreveria.

De olhos baixos ela nem se despediu. Não respondeu sequer com um suspiro àquelas perguntas que se detiveram na boca do Percival. Sabia que ele queria respostas ao seu amor, porém ela não tinha nenhuma. Nunca estivera apaixonada por ele e tampouco sentira falta. Lembrava-se do brilho dos olhos e da sua voz e do seu aperto de mão, mas como uma lembrança que se perde cada vez mais no percurso da estrada.

Recebeu a primeira carta em agosto daquele ano, justamente no dia do aniversário do primeiro filho. Leu porque achou tratar-se de algum “parabéns” que o Percival estaria dando ao filho dela, mas o que estava escrito a tomou de surpresa e pouco imaginava que aquelas palavras eram dirigidas a ela, pois o tamanho do amor tingido de azul foi emocionante. Ela chegou a chorar e choraria também se a carta não tivesse sido escrita para ela.

Muitos anos depois, quando o marido convidou o Percival para os festejos das Bodas de Ouro, ela finalmente encontrou-se com aquele olhar de homem acabado pela paixão não correspondida, viu que as cartas que ele lhe escrevera tinham sido um grande desabafo para continuar vivendo.

Encontraram-se frente a frente e deram-se as mãos no cumprimento e se perguntaram coisas vãs, coisas que já sabiam e então o Percival engasgou-se na sua emoção quando perguntou se ela havia recebido suas cartas.

Mais de doze mil cartas foram escritas pelo punho daquele homem apaixonado que nunca repetiu uma vírgula em suas missivas e todas tinham o mesmo teor: do homem que sofre com a ausência da mulher que ama.

Ela baixou os olhos e disse-lhe que somente a primeira carta havia sido lida – por um engano qualquer – e que todas as perguntas que tinha, nunca deviam ter surgido em seu coração. E perguntou se ele queria as cartas de volta, para acalentar os anos perdidos. Ou mesmo para entregar à outra mulher, pois ainda havia tempo dele casar.

O Percival negou lentamente com a cabeça, despediu-se com os lábios crispados de dor e foi embora sem dizer adeus.

Escreveu outras tantas milhares de cartas que lhe foi possível em vida e todas jaziam lacradas, organizadas por data e amarradas por mês abarrotando o porão da casa dela até que o marido finalmente lhe perguntou o que era aquilo e ela lhe respondeu não saber, mas que guardara por respeito.

Quando souberam da morte do Percival, ela e o marido esvaziaram o porão, e foi necessária uma carroça para empreender a viagem das cartas que foram colocadas dentro do caixão e foi preciso abrir uma tumba maior para que as outras coubessem lá. Descansaria com suas palavras de amor, nunca lidas.




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segunda-feira, 23 de março de 2015

A Sacristia Assombrada


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu logo após a morte do estimado Padre Dimas. Agora o Frei Leonardo estava só diante de todas as calamidades públicas e espirituais que aconteciam naquela época e acontecem até os dias de hoje. Ele não tinha mais a quem recorrer em tempos de sustos e não havia compreendido a lógica dos ventos de fora de hora. Sobre estes, o coveiro explicou tanto que certo dia cansou e não explicou mais, deixando o pobre Frei à mercê dos ditos cujos.

E ele não percebeu quando soprou uma brisa antes da hora, e tampouco deu atenção aos barulhos que aconteciam na sacristia, bem onde o Padre Dimas passara a vida dormindo. Ele não quis dormir no mesmo lugar por achar uma profanação e não ser capaz de ocupar lugar tão sagrado. Achou-se em outra salinha, bem pequena, destinada à despensa; empurrou a estante mais para lá e colocou uma cama de campana, que ficava junto à parede, e a deslocava até o chão para deitar-se.

Aqueles barulhos não passaram despercebidos pelas pessoas que participavam da missa porque eram os passos do Padre Dimas, como a buscar alguma coisa antes da missa começar. Distraídos pelos ruídos, baixavam as sobrancelhas e olhavam para aquela porta fechada, esperando aparecer alguém a qualquer momento. Jamais alguém apareceu e foi tanta desatenção que frei Leonardo resolveu interromper a missa e pedir o que estava acontecendo. O Seu Roberto, lá da frente que o fez ficar quieto com um dedo na boca para que escutasse.

O delegado Jurandir, que assistia a tudo terrivelmente impressionado, pediu ao frei as chaves daquela porta, ao que o frei respondeu não lembrar onde as tinha guardado e tampouco lembrava se havia trancado a porta ou não e ninguém teve a audácia de verificar tal situação. Enquanto o frei partira em busca da chave, o povo discutia quem abriria a porta.

Tinha gente falando que se o Padre Dimas e o delegado ainda estivessem vivos, aquela situação não passaria da meia noite e já eram oito horas. O imbróglio precisava ser resolvido. As mulheres levaram as crianças para casa para iniciarem as rezas em prol daquela alma penada e partiram aliviadas por não precisarem ficar lá, algumas crianças choravam assustadas e outras choravam de fome e a missa nem tinha terminado.

O frei e o delegado Jurandir não gostaram muito dos comentários, mas nada puderam fazer a respeito. Conheciam os feitos daquela dupla de benfeitores, mas reconheciam não terem as fibras íntimas necessárias para a empreitada. Resolveram chamar o Júnior - o filho do tabelião - que decerto traria os ânimos para o serviço. Quando chegou, tratou de encabeçar a execução do plano previamente elaborado.

O plano era assim: o frei faria uma nova missa com alguns fiéis corajosos e com disposição para ficar lá enquanto o Jurandir dava a volta pelo lado de fora para ver se conseguia ver alguma coisa pela janela da sacristia, justamente aquela onde há tempos atrás encontraram o Padre Dimas agonizando em seu leito de morte; e o Júnior ficaria de tocaia na frente da porta para abri-la, arromba-la ou sabe-se lá o que, já que o frei não tinha encontrado a chave.

A missa forjada pouco andou, porém os barulhos recomeçaram assim que disseram “Amém”, alguns se levantaram muito assustados com ânsias de correr o mais que podiam, porém o frei fez um movimento brusco com a mão, pedindo que reconsiderassem e ajudassem naquele momento de desespero e então o sino tocou. Aí não teve vivalma que ficou dentro da igreja. O coroinha, que não sabia de nada, quase levou uns tapas do frei por ter ido tocar o sino sem consultar as horas e por ter assustado todo mundo.

Nesse meio tempo, o Júnior estava com a mão na maçaneta e quando o sino badalou ele chegou a cair para trás pelo sobressalto. Suas mãos tremiam e quando soube do coroinha chegou a ficar vermelho de raiva e disse num grito sussurrado que falaria à mãe daquele incauto e proferiu outros tantos impropérios mais. Recolocou a mão na maçaneta suando em bicas e tremendo e tirando os cabelos dos olhos com um sopro da boca girando muito lentamente quando percebeu que a porta estava trancada, mas pôde ouvir aquele rumorejar de folhas que se ouvia do quarto e então soltou a mão da tranca, levantou-se, deu dois passos para trás e fez o sinal da cruz. Quem viu a cena – só o frei, porque os outros já tinham debandado e o coroinha tinha saído chorando – ajoelhou-se na frente do altar e começou com as rezas sem nexo, tão bem executadas pelo saudoso Padre Dimas e naquele frêmito de nervosismo alguma coisa em seu íntimo o fez prosseguir. Respirou profundamente e pediu ao Júnior se sabia do Jurandir e então o delegado apareceu naquele momento a correr igreja adentro, esbaforido e dizendo que com a vela nada se podia ver através da janela e que não sentiu nenhum movimento e que só o hálito dele já dificultava sobremaneira as coisas. 

Resolveram arrombar a porta. Mesmo com os muitos pontapés e encontrões, a porta não se mexeu. Estavam extenuados e aquilo feria o brio daqueles três homens corajosos. Sentaram por ali para descansar do esforço sobre-humano e entre tantas coisas que conversaram e que nunca se soube, foi que decidiram deixar as coisas como estavam e se era a alma penada do Padre Dimas, que ficasse em sua última moradia. O frei decidiu conversar com toda a população explicando a situação e que se conformassem, porque aquela porta não poderia ser aberta jamais.

A população aceitou com algumas ressalvas e acostumou-se com os estranhos ruídos que vinham daquele quarto. Alguns anos depois um vendaval outonal levou a sacristia sem dó nem piedade, levando também a aura de espectro inconformado do Padre Dimas. A igreja foi reconstruída e a sacristia ganhou espaço novo - distante da igreja - para as acomodações do frei Leonardo.


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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O Presente

Por Soraya Souto

Depois dos filhos criados e casados, e vendo a velhice chegar, Tio Zé e Tia Fia passavam os dias entre os trabalhos na pequena fazenda, e as poucas visitas aos vizinhos.

Há tempos a filha mais velha tinha se mudado com o marido para o nordeste, e o filho caçula, temporão que Deus mandou, trabalhava na cidade grande, e vinha uma vez por mês. Nesses dias, trazia sempre um agrado, alguma novidade da cidade para facilitar a vida da mãe, ou algo que alegrasse a solitária vida dos pais.

Quando soube que a energia elétrica rural enfim tinha chegado por lá, gastou todo o seu salário no melhor de todos os presentes: uma televisão novinha, que depositou orgulhosamente na mesa da pequena sala da casa. O mais difícil foi instalar a antena no telhado, com subidas e descidas sem fim, até acertar a imagem. Quando terminou, abraçou os pais e partiu apressado, a tempo de pegar a condução de volta para a cidade.

Nos dias que se seguiram, os vizinhos pouco viram o velho casal. As visitas noturnas já não aconteciam, e na quermesse da igreja daquele mês ninguém provou os deliciosos biscoitos da Tia Fia, na barraca das quitandas.

Essas mudanças seriam de preocupar, mas o filho do Senhor Onofre, Zequinha, garoto esperto e falante, tinha tranquilizado a todos, ao contar que via os tios sempre, ao voltar da escola. “É verdade, gente, eu vejo eles sentados lá na frente da casa, e não estão doentes não”, explicou.

Mas com o passar do tempo, um fato estranho lhe chamou a atenção: notou que os dois velhos se sentavam de frente para a porta da casa, e costas para a estrada, e por isso nem viam quando ele passava. Preocupado, um dia tentou chamá-los do portão, mas não foi ouvido pelo casal, distraído com algo que acontecia na sala.

Até que em determinado dia resolveu abrir o portão da fazenda do Tio Zé e, sem ser convidado, ir ter com eles, para um pouco de prosa.

Estavam sentados a uma grande distância da porta da casa, no jardim, e assistiam curiosos um programa qualquer que passava na televisão, ligada no fundo da sala. Tia Fia se esforçava muito para enxergar a imagem, “talvez por causa da distância”, pensou o garoto.

Bênção meus tios! Por que é que estão assistindo a televisão assim, de tão longe?”

Deus o abençõe, meu filho!”

E puxando o braço do sobrinho, Tio Zé apontou o aparelho na sala e explicou: “nosso filho deu essa máquina, e falou onde apertava para ligar e desligar...”

Tá certo, tio”

E foi um presente danado de bom esse!”

Foi mesmo, senhor”

Fez uma pausa, para depois continuar em voz baixa:

Mas a máquina fala muito alto, meu sobrinho, então eu e a Fia temos que sentar aqui fora, longe desses gritos...”

Zequinha então compreendeu tudo. Os tios não tinham idéia de como controlar o volume do aparelho, mas, encantados com a novidade, não queriam deixar de assistir um dia que fosse. De imediato, entrou na sala e mostrou o que fazer aos tios, contendo o riso para não envergonhá-los. Aproveitou também para mostrar outras utilidades dos controles, tendo paciência para repetir todas as vezes que o tio pedia. Na cozinha, Tia Fia preparou um cafezinho novo, e o biscoito frito que o sobrinho tanto gostava.

Depois disso, já acostumados com o presente do filho, as noites na fazenda se tornaram mais alegres. E a cada vez que o filho retornava, Tia Fia tinha uma infinidade de assuntos para comentar: coisas que tinha visto nas propagandas e programas, os filmes de amor que assistia durante as tardes, e, principalmente, as imagens dos lugares que nunca tinha visitado, mas que povoavam seus sonhos desde a juventude. Tio Zé ouvia todos aqueles relatos em silêncio, muito quieto, cauteloso como sempre tinha sido, diante daquelas novidades da cidade.

E quando chegava a noite, os vizinhos sempre apareciam, para assistir o capítulo da novela das sete...




Nota: Este texto nos foi enviado para publicação pelo(a) próprio(a) autor(a), sendo aqui reproduzido com permissão. É de inteira responsabilidade do(a) autor(a), que detém sobre o mesmo todos os direitos autorais. Este texto não representa, necessariamente, a opinião das editoras e de outros autores deste site.


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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A triste história do caboclo João


Por Michele Calliari Marchese
Todo mundo sabe que os primeiros moradores da Campina da Cascavel foram os caboclos. Desbravaram nossa linda terra e foram abortados quando do início da colonização acontecida após 1917. Uns eram agricultores, enquanto outros criavam animais e assim sobreviviam com parcos recursos, todos analfabetos e sem documentação sobre as terras que acabaram sendo devolutas ao Estado e posteriormente vendidas aos colonizadores assim que aconteceu o Tratado de Divisas em 1917, após a Guerra do Contestado.
Essa é a história do caboclo João, que tinha um pedaço de terra muito linda e produtiva, uma casa com chão de terra batido e uma família de dar gosto. Viviam felizes e se amavam. Todos se ajudavam e, nas noites de lua cheia, se sentavam ao redor do avô para ouvi-lo contar causos de tesouros. Foi no inverno que aconteceu de chegarem gentes brancas por perto de sua terra. Eles construíram casa, moinho e tinham mulas. Plantavam sementes desconhecidas e fizeram um cercado para as galinhas. Coisas que o João sequer sabia que existiam, e se assustou com a brancura daquelas crianças, que decerto estavam desnutridas; se assustou com a cor dos cabelos de um menino que deveria ter no máximo 4 anos. Eram brancos como as nuvens.
Benzeu-se e correu contar a novidade para a família, que tratou de se esconder dentro de casa, por medo de ser aparição de alma penada.
 Com a chegada dessas pessoas, muitos conhecidos do João perderam tudo o que tinham por causo de um documento, que dizia –e eles tinham que acreditar, pois não sabiam ler nem escrever –que aquela terra era deles. E mostravam com os dedos os seus próprios nomes escritos nos documentos e diziam que tinham comprado aquele chão e que aqueles que estavam lá não deveriam estar, mas que por uma misericórdia eles deixavam pegar seus pertences para irem-se embora.
Ir para onde?
Pois o João ficou assustadíssimo com a quantidade de amigos seus, compadres entre si, sumirem de uma hora para outra e resolveu agir antes que acontecesse o mesmo com ele. Não tinham a mínima noção do que estava acontecendo, mas sabia em seu íntimo e quando olhava seus filhos, que alguma coisa estava errada. Não culpava aquela gente nova que chegara por ali, decerto tão ignorantes quanto eles. Culpava alguma coisa que ia além da sua compreensão, porque não sabia de colonização alguma, sequer sabia o que “devolutas” significava e não entendia patavina daqueles documentos que eram apresentados a todo o momento.
Resolveu embrenhar-se no mato, o mais distante que o seu corpo pôde ir. Andou um dia inteiro margeando o rio e quando achou o lugar seguro para morar, abriu a mata com um facão de pau de guamirim e não descansou até não ver uma edícula pronta para receber a sua família.
Levou outro dia inteiro para voltar e quando chegou em casa, encontrou uma família exigindo aquele pedaço de chão e a mostrar-lhes documentos ilegíveis e então o João pediu pelo amor de Deus que esperassem levantar a mudança que iriam embora, e o genitor daquela família de migrantes pediu se eles queriam ficar como empregados dele, mas o João que tinha lá no fundo da sua alma o sentimento do orgulho, pensou por um momento e olhou seus filhos e sua esposa e o seu pai que estava encostado no vão da porta com a cabeça baixa.
E foi quando ouviu daquele homem, que se ficassem todos trabalhariam na lida e receberiam alguma ajuda que resolveu de fato ir-se embora dali. Filho pequeno não pode ir para a roça, nem velho e tampouco mulher.
Juntou o que pôde em pedaços de panos velhos, cada um com o que podia carregar e foram embora dali para sempre. Deixando para aqueles migrantes, uma vida inteira de trabalho e aquela casa de amor. Levaram muito tempo para chegar naquela edícula construída no meio do nada e foram margeando o rio para matar a sede e alimentarem-se quando o mais velho dos seus filhos avistou alguma coisa na água e resolveram içar com um galho de árvore.
Ficaram enojados e pesarosos diante daquele corpo já putrefato, conhecido do João, pois era o compadre Batista que ali se apresentava morto pela água, ou por sabe-se lá o quê.
Quando começaram a cavar uma sepultura digna para aquele homem, os filhos gritaram pelo pai, e a cena foi deveras angustiante para aquela família que só tinha o orgulho e a vontade de trabalhar. Eram mais de meia dúzia de corpos boiando no rio, e a mulher do João vomitou. Tinha criança junto. Era a família do Batista.
O velho percebeu em seu íntimo o que aquela cena representava, pois que se tivessem ficado naquelas terras, seria o destino deles também. Lembrou que o Batista brigou feio na comunidade por causa da sua terra. E o João tinha tomado as dores daquele compadre.
Ele levantou –pois estava cavando o túmulo –rolou o corpo de volta para o rio para que seguisse junto com a família que boiava, pegou os pertences, cutucou cada um dos seus, pois que não conseguia falar por causa da emoção e partiram, e nunca mais se soube deles e de seus descendentes.




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domingo, 1 de fevereiro de 2015

A qualidade da escrita pode ter sido ‘a razão’

Por Helena Frenzel


Bons lugares para se encontrar coisas interessantes são sempre os corredores das universidades ou de instituições culturais. Assim encontrei, para distribuição gratuita, um exemplar antigo do jornal Genossenschaftliche Allgemeine, Nr 8/14 (parte do Frankfurter Allgemeine) trazendo na parte de Kultur (pt. cultura) o perfil de Nele Neuhaus (lê-se em pt. /Néle Nóirraus/), escritora bestseller conhecida como ‘a Rowling alemã’. O título do artigo é “Die Deutsche Rowling – Nele Neuhaus – Porträt einer Frau, die alle lesen, aber keiner kennt”, von Bettina Weiguny (pt. A Rowling alemã – Nele Neuhaus – Retrato de uma mulher que todos leem mas que ninguém conhece). Ainda não pude ler nenhum de seus livros, primeiro porque não sou leitora usual de romances policiais e segundo porque só agora a descobri como autora, porém achei a história dela muito inspiradora e por isso a ‘reconto’ aqui, para compartir com meus colegas escritores.

Pois bem, Nele é comparada à Rowling porque após ter lançado vários livros com sucesso na Alemanha escrevendo como Nele Neuhaus, o mais recente ela lançou sob o pseudônimo de Nele Löwenberg, algo parecido com o que fez a Rowling, supostamente para desvincular seus livros policiais de sua mais famosa série: Harry Porter. Na entrevista, Nele afirma que recorreu ao pseudônimo porque o novo livro era um novo gênero e ela não queria misturar as coisas. Ela é uma autora tão bem-sucedida que especialistas afirmam que um ano sem um novo livro dela é um ano ruim para o mercado alemão de livros. Para que tenham uma ideia, passados cinco anos da publicação independente de seu primeiro livro ela já vendeu mais de cinco milhões de exemplares só na Alemanha, tem livros traduzidos para 23 línguas com mais de 700.000 exemplares vendidos no exterior, sem falar que alguns de seus livros já viraram roteiros para séries de TV.

Mas agora vem o mais interessante: como ela conseguiu chegar onde chegou? Aos 20 anos ela casou-se com um rapaz também de 20 e ambos tiveram de dedicar-se integralmente a uma fábrica de carnes (pelo que entendi não se trata de um açougue, estaria mais para o que no Brasil se entende como frigorífico) e isso tomou todo o tempo e a energia do jovem casal. Isso tudo para dizer que, por conta da fábrica e de outras obrigações, ela não encontrava tempo para dedicar-se à escrita, sua paixão, e nem tinha o apoio de ninguém (o próprio marido nunca se interessou em ler sequer uma linha do que ela escrevia, o que doeu muito mais do que a recusa de qualquer editora) e foi nesse momento que a escrita transformou-se em válvula de escape para a dura rotina: todo e qualquer momento livre era usado para escrever e ela conta terem sido esses os melhores momentos que experimentou na época.

Como já era esperado nesta fábula, o primeiro manuscrito foi sumamente rejeitado por todas as editoras para as quais ela o mandara, mas ela não desistiu de acreditar na qualidade do que escrevia e descobriu que com o “Book on Demand” ninguém mais precisava de uma editora para publicar seu trabalho. O primeiro livro ela mesma produziu (capa, layout, estratégia de marketing e distribuição) e mandou imprimir 500 cópias e começou a pôr em prática uma estratégia de divulgação baseada em leituras abertas ao público. Aqui é costume as livrarias e outras instituições darem espaço a autores para lerem seus próprios livros. Assim ela foi de porta-em-porta e conseguiu vender todos os 500 exemplares e logo pode financiar o segundo, no mesmo sistema, para o qual mandou imprimir 1000 exemplares. Chegou uma época em que os clientes iam à fábrica e ao invés de comprar carne compravam seus livros. O terceiro título ela mandou imprimir com 5000 exemplares. Para cada livro ela tirava uns 4 Euros e viu que assim poderia seguir publicando, não fosse uma grande editora de Berlim ter entrado em contato. Em 2009 saiu o quarto livro, agora sob o selo da tal editora, e logo virou bestseller.

Ela mesma diz que não sabe dizer o que aconteceu para que da noite para o dia virasse bestseller e tem certeza de que seu caso não foi o normal, porque no mercado de livros é preciso ter muita sorte para se ganhar um público (maioria das vezes muito mais sorte do que talento, e uma boa estratégia também). E mesmo não tendo ainda lido qualquer de seus livros, e conhecendo um pouco do perfil dos leitores alemães, diria que os livros dela devem ter qualidade sim, pelo menos um mínimo.

Porém, como tudo tem seu preço, o sucesso meteórico lhe trouxe muitos problemas pessoais: problemas de saúde e no casamento, separação, crise. E como na raiz de toda crise está uma oportunidade, Nele voltou-se para o que já havia construído e retomou as rédeas da situação.

Hoje em dia ela vive num outro relacionamento e segue sendo senhora do seu negócio literário, não aceita qualquer proposta e opina em questões de direitos sobre seus livros e de quem pode fazer uso deles para transformá-los em filmes, por exemplo. Ao invés de 80 saraus de leitura por ano, como no início, ela agora mantém apenas 15, e o público aumentou de cerca de 20 pessoas para mais de mil por encontro. Antigamente ela escrevia para sobreviver à rotina, hoje em dia ela tem a escrita como atividade principal, e aproveita as pausas para descansar de escrever e ter novas ideias, e que escreve porque precisa e por conta disso seguirá escrevendo, com sucesso de público ou não.

Pode ser que eu venha a ler seus livros e não goste, mas independente disto esta é uma história de vida que senti uma enorme necessidade de passar adiante. E que ela sirva de inspiração para quem ainda se escora em mil desculpas e se esquiva de correr atrás dos próprios sonhos.

Fonte:
Bettina Weiguny: Die Deutsche Rowling – Nele Neuhaus – Porträt einer Frau, die alle lesen, aber keiner kennt, in Kultur, Genossenschaftliche Allgemeine Nr 8/14, Frankfurter Allgemeine, Página 7.





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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Promessa é Dívida

Lá pela segunda metade da década de 30, pelas bandas da Fazenda São Geraldo, na antiga Rio do Peixe, hoje Piracema, circulavam as carroças de rústicas rodas de madeira e também os carros de bois que transportavam os carregamentos de lenha, latões de leite, de cana de açúcar, de milho e outros mantimentos, além daquela gente que precisava se deslocar das fazendas para os povoados, ou para as cidades que existiam por perto. Era comum e uma verdadeira alegria quando havia algum festejo na vizinhança, nos lugarejos. As famílias aprontavam malas e matulas para se acomodarem nos carros de bois e seguirem em suas viagens.
Na semana santa era, então, uma viagem tradicional e muito especial. Havia muitos preparativos durante semanas que a antecediam. Roupa nova para toda a família, vestidos que eram costurados e enfeitados pelas moças, com todo esmero; latas e latas de biscoitos de polvilho, pães de queijo, roscas, broas, tudo preparado cuidadosamente nos fornos de barro. Preparavam um tipo de biscoito cozido e assado, muito cobiçado, que ficava bonito, brilhante e que, curiosamente, era feito só naquela ocasião, talvez por ser muito trabalhoso, ou sabe-se lá se por alguma crença em especial; doces caseiros, goiabada cascão feita em tachos de cobre, doces em calda de mamão, laranja da terra, doce de leite e não podia faltar o queijo fresco e o curado, queijos tipicamente mineiros; as carnes de porco embebidas na gordura talhada, além de todos os outros alimentos que sustentariam as famílias, durante uma semana, fora de casa. Tudo pronto e com o sortimento completo, pegavam seus colchões de palha e seguiam para a cidade, onde se instalavam em casas que mantinham para essas ocasiões, ou em casas de algum parente. Algumas pessoas seguiam o trajeto a pé, seguindo os carros de bois.
A estrada que ligava a fazenda à cidade era estreita, poeirenta e bastante irregular, segundo me contaram, foi aberta a golpes de enxadões. Por aquelas bandas, automóvel era desconhecido da maioria das pessoas.  Foi numa destas idas à cidade que Dalva viu, pela primeira vez, um automóvel. Ela era ainda uma criança e seguia a pé junto a alguns irmãos, acompanhando os carros de bois que transportavam a sua família, o que para eles representava uma grande aventura. De repente, Dalva avistou um automóvel que apontou na curva e que provavelmente também passava por ali pela primeira vez. A estrada era ladeada pelas cercas de arame farpado que dividiam terras e também serviam de limites para o gado. Quando ela avistou o carro, saiu em disparada, gritando assustada, passou por debaixo da cerca e se escondeu atrás de um cupinzeiro. Seus irmãos, sem entender nada, se apavoraram e cada um correu para um lado. Os bois se assustaram e os boiadeiros tiveram trabalho para contê-los. Era preciso encostar os carros de bois para dar passagem ao carro, mas tiveram que tocá-los ainda por um bom espaço, até que encontraram uma brecha na estrada estreita. De modo que aquele cortejo durou alguns minutos e na preocupação de resolver aquela situação, a família esqueceu-se da menina, que continuava acuada e escondida atrás do cupinzeiro.
Há alguns meses, Tia Dalva, já então com oitenta e quatro anos, assistia uma chamada na TV sobre corridas de Fórmula I e comentou: - Fico vendo estes carros de hoje, estas corridas malucas e fico pensando como as coisas mudaram nos últimos oitenta anos. Como a gente era atrasada e sem recursos. Ela lembrou-se da tal aventura com o carro e dizia entre risos que aquele foi um momento de pânico, do qual se lembrava perfeitamente. O carro preto pareceu-lhe um monstro e o seu maior pavor foi imaginar que ele não poderia parar quando se aproximasse dos carros de bois e assim passaria por cima de todos. “Por mal dos pecados”, ainda a deixaram para traz e ela não sabia o que fazer ali escondida e esquecida até que Lêda, sua irmã mais nova, lembrou-se de voltar para procurá-la e a encontrou chorando copiosamente. Lêda muito esperta fez com que Dalva acreditasse que ela se salvou por milagre, pois se não a tivesse encontrado e ela ficasse ali sozinha, quando escurecesse o enforcado Antônio do Tipêdra (uma outra história para contar) apareceria para ela e sabe-se lá o que poderia acontecer. Dalva ficou ainda mais apavorada. Lêda então fez com que ela prometesse fazer uma penitência durante a semana santa e oferecesse às almas o seu sacrifício. Foi logo sugerindo: - Você fica sem comer os biscoitos cozidos e assados que Mamãe distribui para nós e como fui eu quem te salvou, você aceita os seus e passa para mim, combinado?  Os tais biscoitos eram os preferidos de Lêda, e como só eram preparados apenas nesta época, seria uma boa oportunidade de se fartar deles.
As meninas voltaram e se reuniram ao grupo, prosseguindo rumo à cidade. Ambas ganharam alguns puxões de orelha de meus avós, pois estavam atrasando a viagem. Chegaram enfim à cidade e se acomodaram na casa da rua principal, bem perto da igreja matriz. Era o sábado que antecedia o dia da procissão de ramos, início da semana santa. Trouxeram da fazenda, ramos de alecrim, folhas de palmeiras e coqueirinhos, galhos de cipreste para a benção dos ramos. A família muito religiosa fazia questão de participar de todos os rituais e programações, mas para os mais novos, embora houvesse grande respeito, muitas coisas que aconteciam eram para eles pura diversão. Na procissão de velas acesas, divertiam-se queimando cabelos de quem ia à frente deles na fila, deixavam pingar vela derretida nos pés de outros, entre outras traquinagens.
Dalva, depois de passado o susto e o medo, pensava então em uma forma de negociar sobre a promessa da tal penitência. Não estava achando boa a ideia de perder seus biscoitos, mas de alguma forma teria que pagar a sua promessa. Chamou Lêda e então fez uma proposta: - vamos pensar em alguma coisa que agrade muito aos nossos pais e como recompensa pedimos mais biscoitos e doces e aí te dou os que eu prometi a você, mas os outros que ganharmos, nós dividiremos. O que acha? Lêda achou ótima a ideia e as duas passaram então a pensar no que fariam para merecer a recompensa.
No domingo acordaram cedo e saíram de casa em casa onde havia jardins e pediram aos donos que lhes dessem algumas flores. Elas recolheram tantas flores quanto puderam e em um quarto dos fundos montaram um lindo bouquet. Assim que terminaram esconderam-no até o momento da procissão, quando pegaram o ramalhete, se postaram em frente ao andor e fizeram todo o percurso da procissão, uma volta completa naquele pequeno lugarejo. No retorno da procissão à Igreja, depositaram as flores no altar. A família assistiu a tudo comovida e orgulhosa. De volta a casa, as meninas foram muito elogiadas por aquela bela atitude, mas ninguém falou em recompensá-las, como elas imaginaram. Foram dormir bastante decepcionadas.
No dia seguinte, ainda durante o café da manhã, elas aguardavam que o plano desse certo, mas nada aconteceu, os tais biscoitos não foram servidos a ninguém. Minha avó chamou por uma delas e disse-lhe que ela deveria ir à casa de uma senhora sua comadre, para entregar-lhe uma encomenda. Entregou a Dalva uma cestinha coberta por um pano bordado e ela se pôs logo a caminho, acompanhada por Lêda.  No trajeto as meninas perceberam que na encomenda estavam exatamente os biscoitos cozidos e assados - se entreolharam e sorriram com cumplicidade. Passado algum tempo retornaram e entregaram a cestinha vazia para minha avó. Perguntadas se a comadre gostou do presente, novamente se olharam e inusitadamente Dalva, já tremendo de medo de uma boa surra, sacou da resposta: - Ela nem viu os biscoitos. Tudo por culpa daquele carro preto que desceu a rua correndo atrás da gente e nós tivemos que correr e nos esconder. Eu caí, mamãe, e lá se foram seus biscoitos.
Enquanto isso, Lêda saiu de mansinho até o jardim, apanhou uma rosa e voltou para entregá-la à mãe. Essa, que nada tinha de boba ou ingênua, logo percebeu a artimanha da menina. Foi à cozinha, apanhou alguns biscoitos e os ofereceu às duas filhas. Elas apenas se olharam e saíram em disparada, com um baita enjoo, só de olhar para aqueles malditos biscoitos. Afinal, foram com muita sede ao pote e comeram mais do que podiam.
Só depois de algum tempo, em uma conversa com minha avó, é que as meninas souberam de sua intenção: oferecer os biscoitos a elas naquele momento foi apenas um teste, já que ela havia desconfiado daquela história que lhe contaram. Confessou que riu muito, mas disfarçadamente, e enquanto as meninas corriam desesperadas ela pensava: - Deixa estar, elas pensam que me enganam, mas a dor de barriga já está de bom tamanho!


Celêdian Assis de Sousa

Belo Horizonte - MG






Foto de acervo pessoal - Piracema (antiga Rio do Peixe) – primeiro automóvel da cidade   









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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O divorciado


Por Michele Calliari Marchese

Esse episódio aconteceu quando o Vilson saiu para a lida na roça e encontrou um compadre divorciado na estrada. Conversaram um tantinho e o compadre lhe disse que uma das coisas ruins de estar separado é que não se tinha o que comer em casa. O Vilson ficou compadecido com a situação e prontamente o mandou à sua casa para comer o bolo frito que a esposa tinha recém tirado do forno. Gritou para a mulher ali da estrada mesmo, mas ela não escutou.
Quando o compadre bateu na porta e ninguém atendeu, resolveu dar uma volta por fora da casa, pois que as janelas estavam abertas e ela poderia estar em algum quarto. Encontrou-a abaixada ao lado da cama do casal fazendo um esforço inaudito para consertar alguma coisa.
Chamou a comadre que levou um susto ao ver o compadre na janela, todo penteado de brilhantina e cheiroso. Ela levantou arrumando a saia e dizendo numa rapidez melancólica que não sabia como é que a cama tinha se quebrado e o compadre, muito solícito e com fome, ofereceu-se para ajudar.
Arrumou a cama, comeu o bolo e conversou amenidades rapidamente porque ficava muito chato que ele estivesse ali justamente quando o marido estava no trabalho.
À noite, quando o Vilson foi se deitar encontrou uma chave perdida entre o pé da cama e a mesinha de por o copo d’água. Pegou a chave, mordeu os lábios e não reconheceu a dita cuja, mas mesmo assim testou em todas as suas portas e trancas. Em nenhuma serviu. Embrulhou a chave num lenço e guardou no bolso da calça. Não falou nada e engoliu pesadamente as ideias que vinham em sua cabeça. Que diabos era aquilo?
Não conseguiu dormir e custou a levantar no dia seguinte.
Resolveu que contaria ao compadre sobre o descobrimento da chave para ver se ele lhe ajudava com algum conselho. Bateu na porta da casa do homem e ouviu que era para ele dar a volta e entrar pela despensa já que tinha perdido a chave da porta da cozinha.
Pois o Vilson ficou pálido com o que ouviu e resolveu – num ímpeto – que cuidaria o momento que o compadre saísse para experimentar a chave que encontrou na porta daquele divorciado. E o compadre percebeu a raiva de cão que perpassava nos olhos do Vilson e se perguntou o porquê da visita e uma comoção passou pelo seu coração de homem sozinho: O Vilson teria descoberto alguma coisa?
O Vilson escondeu-se num mato ao lado da casa do compadre e esperou. Suava tanto que chegou a passar mal, tanto pelo calor como pelas desconfianças que estavam a um passo de serem confirmadas, e se fossem, não queria nem pensar para não ter um ataque ali mesmo. Quando o compadre saiu, o Vilson desembrulhou a chave do lenço e com as mãos trêmulas e molhadas tentava acertar a fechadura, mas estava tão nervoso que não conseguia. Tratou de acalmar-se e por fim ouviu o clique da traição.
Nem pensava o coitado, tomado de fúria incontrolável deu um coice na porta que bateu na parede e voltou a fechar indo de encontro ao seu rosto estupefato. Esse acidente fez com que o Vilson voltasse à razão e então resolveu que daria uma janta ao compadre e confrontaria a esposa e o amante na mesa da cozinha.
Avisou a esposa que preparasse um belo jantar e pediu à filha que tomasse banho e vestisse a melhor roupa que tinha.
Chamou o compadre para a ceia e quando este sentou à mesa, o Vilson jogou a chave no peito do traidor e disparou uma série de impropérios dizendo que era para ele e a esposa sumirem de suas vistas e gritou dando vazão aos sentimentos de traído que a esposa saísse de casa só com a roupa do corpo e que fossem viver aquela sem-vergonhice longe dos olhos dele e da filha.
A filha tremeu e começou a chorar dizendo não ser a mãe a amante do compadre e sim ela, iria embora bastava que o namorado se levantasse.
E o Vilson que acompanhava o desenrolar da cena, olhou para a esposa e num sentimento que passou no fundo do seu peito o fez acreditar que não era só a filha a concubina daquele divorciado.


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quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O primeiro automóvel da Campina da Cascavel


Por Michele Calliari Marchese
Esse causo aconteceu quando o tabelião resolveu comprar um automóvel. Foi na década de 30 e as estradas eram intransitáveis; o dito cujo levou três meses para chegar à Campina da Cascavel e veio em cima de um caminhão até Cruzeiro do Sul e depois abriram trilhas a facão e o trabalho, feito por uma dezena de pessoas, era lento e mitigado. Enfrentaram toda espécie de intempéries e muitas vezes ficavam dias parados até que o clima amenizasse.
No dia em que o automóvel chegou à cidade, o tabelião quase chorou de emoção; tinha as mãos no rosto e a boca aberta e não sabia dirigir, mas aprenderia com aqueles que o tinham trazido. Primeiro lavaria, esfregaria e poliria, depois beijaria e passaria as mãos pela lataria para sentir o gosto daquela máquina impensável.
Era o progresso. Era a felicidade.
As crianças logo ajuntaram em torno do carro e foram repelidas bruscamente pelo tabelião, ciumento de dar dó. E assim ele passou dias mostrando, averiguando – sempre de pano na mão – entrando e saindo, ligando o motor e acariciando o volante. Tinha os olhos brilhantes e remoçou no mínimo dez anos.
Aprendeu a dirigir e comprou um terno novo para desfilar de carro na cidade e sua mulher enrolou os cabelos em bóbis para parecer mais bonita lá dentro. Faziam pose e abanavam aos transeuntes. Convidaram até o Padre Dimas para uma volta, mas ele declinou do convite, afinal, era um homem de Deus e deveria manter a humildade dos votos de pobreza – assim dizia.
Aconteceu quando o Aparício, lá do Pesqueiro de Cima, vinha manso em seu cavalo para a cidade a fim de comprar açúcar no comércio e escutou um ronco diferente, algo que nunca tinha escutado em vida e então viu aquele demônio preto surgindo pela estrada e assustou-se de tal modo que desceu do cavalo em disparada para esconder-se no meio do mato.
O tabelião passou pela estrada com seu automóvel e viu aquele cavalo abandonado. Parou, verificou os freios, deu uma passada de camisa no espelho e desceu. Deu uma volta ao redor do cavalo e não se apercebeu dos “psiu” que o Aparício fazia atrás de uma árvore.
“Sai já daí seu tabelião, corra ligeiro”, disse o Aparício muito nervoso. O tabelião escutava o homem, mas não o via, adentrou o mato e ficou procurando, até que achou o Aparício acocorado, com os braços nos joelhos, suando desesperado por alguma coisa muito grave. O tabelião ficou preocupado com aquela cena inusitada e pediu-lhe se estava doente. “Não”, lhe disse o Aparício, e tremia os lábios como se a qualquer momento fosse ter uma síncope. “Se agache home, senão o demo vai te pegar”, repetiu num sussurro aterrador. O tabelião se abaixou assustado, decerto haveria por ali alguma coisa que ele não vira e da qual aquele homem estava escondido. Ficaram os dois por algum momento em silêncio. Cada um ouvindo a respiração do outro, o suor abundante, não tanto pelo calor, mas pelo medo, e isso fez com que o tabelião começasse uma conversa. Pediu o nome do assustado, o que fazia e de onde vinha e o Aparício respondia, sem pestanejar, olhando por entre o mato de quando em quando, numa verificação de aproximação.
Era tão medonha a atitude do Aparício que ele não se dera conta de que já estava deitado no chão, tremendo também, suando mais que o normal e imaginando o inimaginável. Até que por uma ordem da conversa, o tabelião pediu do que o Aparício estava se escondendo. E o homem lhe disse que fizesse silêncio, pois com o barulho que o tabelião fazia era bem capaz de serem descobertos em seu esconderijo. “Espere que a besta saia”, respondeu.
E o tabelião ficou pensando nas palavras daquele homem. “Besta? Ora essa! Que besta?” “A besta dos inferno, seu tabelião”. E o tabelião pediu como era essa besta, para se preparar para o pior, ou para se fingir de morto se o caso exigisse, mas precisava saber. E o Aparício olhava pelo meio do mato e dizia: “É preto, tem uns zóio branco esbugalhado bem na frente no lugar dos dente, ronca como o diabo e no lugar dos pé, tem roda”. E ficou olhando a reação do tabelião que esbugalhou os olhos diante da informação que batia minuciosamente com a descrição do seu automóvel. Ficou um tempo parado, sem reação, pois passara tanto medo que seus joelhos doíam e levantou-se num ímpeto, assustando ainda mais o Aparício, que temia serem descobertos.
Depois de muita discussão, um tal de puxa para baixo para esconder o tabelião e este levantando-se, foi que o Aparício começou a entender o negócio.
O tabelião puxava o braço do Aparício para mostrar-lhe o carro, e este se benzia sem parar e fechava os olhos e quase chorara implorando para que o tabelião não o levasse para a boca do satanás.
No fim do dia - porque eles ficaram escondidos a tarde inteira - foi que o Aparício entrou no automóvel para conhecer e ficou admirado com tanta inovação e tecnologia e pediu como funcionava e sacou de um lenço que tinha no bolso da calça e inconscientemente começou a lustrar todas as peças seguido dos suspiros do tabelião.
“Um dia eu vou ter um desses”, disse o Aparício ao tabelião e este lhe respondeu que um dia todos teriam um desses. Era o progresso chegando à Campina da Cascavel!

*** Conto inspirado no Livro “O velho Xaxim” da escritora Valdirene Chitollina. Fica a dica para leitura ***


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