segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Ele sabia


Por Michele Calliari Marchese

Ele sabia exatamente de que maneira sua vida expiraria, tal como estava presenciando naquele momento derradeiro, aquele último, onde restava somente a lembrança de saber o que ninguém nunca sabe.

Suspirava lentamente e não ousava abrir os olhos, queria ter a certeza de que acertara tim tim por tim tim sua morte visionária. Não tinha certeza de quando comprovara o desfecho final: se na primeira vez ou na segunda em que os desmaios o acometeram por banalidades e ele acabou chegando a essa conclusão sombria. Ora um encontrão distraído num poste de luz, ora uma batida de joelho na quina da cama e era o suficiente para que ele soubesse tudo.

Primeiro vinha a sensação de dor, em seguida uma disparada no coração e um frio congelante no pescoço anunciando o desmaio iminente, para em seguida braços e pernas pesarem toneladas a ponto dele não conseguir mais sustentá-los no corpo caindo pesadamente no chão. Pronto.

Morreria com esses sintomas era certo e tão certo quanto tantas vezes passara por isso a pensar: “É hoje.” Nunca desejara a morte, e benzia-se para afugentar possíveis pensamentos que pudessem porventura atrair aquela que ninguém nunca viu.

Agora estava ali, com cento e tantos anos, deitado no chão, porque o chão frio lhe fazia voltar o sangue no rosto, sozinho e de olhos fechados. Há muito a mulher partira e era a ela que havia contado, no meio de uma noite de inverno, que precisava ser socorrido quando tinha aquela sensação de desfalecimento; de ir-se embora para todo o sempre e das vistas que turvavam sem piedade.

Foi nessa vez que ela quase teve um troço quando o marido acordou de supetão e chacoalhou-a com tanta violência que achou tratar de jagunço invadindo a casa para roubar. Depois de acordá-la, saiu da cama dizendo estar passando muito mal e deitou-se no chão frio. Ela levantou aflita e não soube quais providencias tomar e foi então que ele contou todas as vezes que havia passado por essa situação sem entender nada do que lhe acontecia e que só agora falava porque sentiu nos ombros pesados a busca pela sobrevivência, ou pelo menos, para que ela não se assustasse se o encontrasse morto.

Distraiu-se quando o cóccix doeu. Sempre lhe doera quando deitava no chão, mas agora era praticamente insuportável, pela sua própria velhice não tinha muitas carnes para afofar o corpo flácido que sentia o peso da gravidade. Deitou-se de lado, porém o osso da bacia também suspirou. Colocou as mãos sob a poupança para aliviar e pensou nos filhos, todos longe, estudados, poupados de saber do mal que o pai sofria e ele sem saber como dizer naquele momento, que precisava deles ali, para erguê-lo e colocá-lo de volta na cama e contar-lhes as peripécias infantis que se perdem nas brumas do envelhecimento.

As lágrimas entraram em seus ouvidos e ele abriu os olhos. Não fora dessa vez, mas seria na próxima. Não deitaria no chão na próxima vez e escreveria algumas cartas antes do sol se pôr. Devia fazer muito tempo que estava deitado ali, pensando naquela vez que batera a cabeça na torneira e caíra. O rosto na grama fez com que os sentidos voltassem e foi aí que descobriu como livrar-se daquele mal súbito que o acometia de quando em quando. Antes nem tivesse descoberto. Mas o que estava pensando? Benzeu-se com as duas mãos, porque depois de velho parece que os pecados são mais contundentes. “Cruz credo desejar a morte”.

Mas apesar do medo que sentia em desejá-la, lá no seu íntimo pediu uma semana a mais para botar a correspondência em dia e avisar os filhos que seu tempo estava findando, assim como as borboletas, apesar de que as borboletas não vivem mais de cem anos. Riu-se e viu que precisava passar uma vassoura no chão, estava empoeirado. Riscou o seu nome em letras tão trêmulas que mal dava para ler, fez um coração e escreveu o nome da mulher morta. Nem sentia a bacia doendo naquele chão duro e segurou a cabeça com a mão esquerda enquanto rabiscava no chão aquela eternidade de amor e sofrimento.

Ela lhe entendera a vida toda. Fez mais quatro coraçõezinhos, um para cada filho e estalou os lábios ao lembrar que uma das cartas não seria escrita naquela semana, pois um dos filhos já partira levando um dos melhores pedaços de si e de sua esposa; o gelo tornou a cair em seu pescoço e ele sentiu novamente a ânsia, aquela náusea tão sua conhecida e que sentiu durante todo o tempo em que duraram as exéquias daquele filho. Pensou que não tinha mais sentido viver, mas olhou para os outros três e não poderia entregar-se, sabendo que se entregava com tanta dor que não era possível continuar. Mas continuou.

Sentiu-se melhor e nesse momento alguém entrou em seu quarto, em seguida vieram outras tantas pessoas e mais a visita do Frei Leonardo; acabaram-se as dores dos ossos, agora estava na cama e refeito. Pediria lápis e papel, não poderia esquecer jamais daqueles filhos. Sentiu um pano a limpar sua pele, um pente a pentear seus parcos cabelos, alguém a lhe colocar os sapatos de ir à missa.

Sentiu que lhe cruzavam as mãos enroladas no terço de sua falecida esposa que estava em cima da mesinha de cabeceira e chorou quando beijaram sua cabeça. A ladainha começou.

Ouviu as vozes chorosas dos filhos, inclusive daquele morto e estendeu a mão para a mão de sua mulher que o esperava sentada ao lado do caixão.






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2 comentários:

  1. Um conto envolvente, cativante, gostoso de ler. Deve ser bem interessante saber-se biologicamente morto... Muito bom!

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  2. Olá Marco Aurélio! Muito obrigada pelo seu comentário! Já pensou se todos nós soubéssemos quando a "indesejável" chegar? Mudaria todas as coisas! Abraços

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