segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O MUNDO


Por Heitor Herculano Dias
Casimiro já estava pra lá de acostumado. Ia chegando o final de semana e lá vinham as mesmas gozações com a casa da Silvinha. Na verdade, as brincadeiras do pessoal de casa não eram propriamente com a Silvinha, sua namorada firme  de mais de três anos. Com o que Cristóvão, o mano mais velho, e Isabel, a caçula, reforçados pela prima Katia Cristina implicavam era o endereço da Silvinha.
− Morar de frente pro cemitério, Casemiro? Pelo amor de Deus! – lá vinha o refrão do Cristóvão liderando a turma assim que o via de banho tomado, camisa passada pela mamãezinha, prontinho pra zarpar ao encontro da amada. Bastava Casemiro dar o clássico “tchau, mãe”, e logo explodia às suas costas o coro de “Abre o olho com o vampiro, hein! Se cuida, Casemiro, olha a caveira!”  E retumbavam os “quá-quá-quá” mesclados aos “Cô, loco, meu!” do Cristóvão lá da sala, inveterado telespectador do Domingão do Faustão. 
Mas ele não se aborrecia. No início até que se encrespara com Cristóvão, chamara-o de incruado, pior que solteirona frustrada, barrigudo e outras coisinhas tais que, felizmente, por obra e graça de Nossa Senhora Aparecida, no dizer de dona Esmeralda, nunca afetaram a união e o amor entre seus filhinhos. Casemiro saia imaginando como seria bom se não dependesse daquele ônibus circular para chegar à casa da namorada. Afinal de contas, raciocinava, era só um trajeto de uns dez minutos, no máximo. O coletivo circundaria uns poucos quarteirões em volta do tal cemitério, para deixá-lo praticamente na porta da casa da Silvinha. Ele sempre foi preguiçoso para longas caminhadas, mas às vezes chegava a imaginar que seria mais prático dar um trabalhinho às pernas, pelo menos nos dias de namoro, e atravessar todo o cemitério saindo bem em frente à residência da futura noiva. 
Casemiro jamais comentou com Silvinha qualquer coisa a respeito dos bombardeios piadísticos em casa. Seria falta de tato, julgava, um desrespeito à família da namorada, pois afinal de contas casa própria é casa própria, não importa onde. Bom, mas chegou um sábado em que dona Ivete, a futura sogra, comemorava seus bem vividos sessenta anos. Daí que a sessão de amassos do casalzinho de namorados na varanda teve que ser aditada com a reunião de toda a família em volta da mesa da sala para o "Parabéns pra Você".
− Bem, prova um olhinho de sogra.
− Mais um pouquinho de guaraná, meu filho? 
Nessas e outras, quando Casemiro se deu conta: quase meia-noite, e foi Silvinha quem deu o alarme. 
− Benzinho, não tem mais ônibus a essa hora! E agora? 
Dormir ali, na casa da namorada? Nem imaginar tal sugestão. Casemiro e Silvinha trocaram olhares significativos a respeito da impossibilidade de tal proposta ser sequer votada em plenário. O jeito, pois, seria ele voltar pra casa a pé. Chegara afinal o dia em que Casemiro iria mesmo se submeter a uma boa caminhada, que afinal de contas só poderia lhe fazer bem à saúde. Não desejava ficar igual ao Cristóvão, pouco mais de trinta anos e já com aquela respeitável barriguinha. 
Feitas as despedidas dos sogros e trocados os últimos beijinhos e apertos no portão, Casemiro  deu início ao trajeto de volta pra casa. Poderia escolher entre duas opções, calculou. Caminhar pelo menos uns oito longos quarteirões, subir uma ladeirinha, para depois desembocar logo em sua rua. Mais ou menos como se andasse num semi círculo contornando o cemitério, cujo muro estava bem ali, do outro lado da rua e de frente para a casa da Silvinha.  Se se dispusesse a cruzar o cemitério, andaria, brincando, brincando uns vinte minutos a menos. 
Por que não tentar essa variante? Medo de quê? “Tenho medo é dos vivos!”, sempre foi seu bordão preferido quando em conversas a respeito  de mortos e cemitérios. Casemiro então se decidiu. Havia uma entrada do cemitério logo adiante, que, se não lhe traía a memória, ficava sempre aberta, mesmo à noite. Com efeito, o velho portãozinho de ferro enferrujado tinha uma de suas bandas pendentes, quase se despencando em meio ao capinzal. Escuro, totalmente, até que não estava, constatou satisfeito Casemiro logo aos primeiros passos, observando a aleia central iluminada pelas lâmpadas de dois postes, ainda que fraquinhas. E se fosse escuro, preto assim que nem breu? Ele era um homem, ou um rato? Caminhava conjecturando. O que as pessoas tinham era preconceito, superstição contra os cemitérios, pois afinal de contas é pra debaixo da terra que todos têm que ir, mais dia menos dia. Até mesmo aquela senhora que ia lá adiante! Deduziu Casemiro ao avistar  o perfil feminino a caminhar lentamente pela estreita pavimentação da via central, aparentemente sem demonstrar pavor algum. Em poucos minutos, seus passos, mais longos do que os da avistada caminhante, colocaram-no lado a lado com esta, vista assim de perto uma mulher bem idosa trajando saia comprida e um leve casaquinho de lã que deixava aparecer a blusa de gola alta e abotoada. Tinha os cabelos brancos presos num coque, e sua mão esquerda abraçava um grosso livro de capa escura. 
Já então, lado a lado com a tranquila caminhante, Casemiro a saudou com respeito: 
− Boa-noite, minha senhora! 
− Boa-noite, meu filho – a resposta foi cordial, simpática. 
Pressentindo que seus passos de mais jovem logo a deixariam para trás, refletiu contudo que pelo menos por uma questão de cortesia não lhe custaria nada diminuir as passadas e seguir andando ao lado daquela humilde senhora. Não seria por isso que ele se atrasaria tanto assim, pois a saída do cemitério estava logo lá adiante. 
− Hmmm..., bonita noite, não? – arriscou um princípio de conversa, correspondido pela ocasional companheira de caminhada. 
− É sim, meu filho. Fresquinha, né? 
− Pois é, ‘tou voltando da casa da minha noiva. Imagine a senhora que perdi o último circular.
− Oh, pena, não? 
Foi quando ele arriscou a pergunta de praxe:
− Desculpe-me por perguntar, mas a senhora não tem medo de andar por aqui sozinha, neste cemitério, à noite? 
A velha senhora deu um risinho divertido e de certo modo superior antes de responder. 
− Medo? Eu? Que nada, meu filho. Medo, só quando eu vivia no mundo!!!
Casemiro nunca soube explicar como adquiriu tanta força e presteza pra correr mais de uma centena de metros sem sequer olhar para trás, nem preocupar-se com buracos, sepulturas ou quaisquer eventuais obstáculos. Somente após uns dois copos d’água e uma enxurrada de “Calma! Calma! Já passou!”, conseguiu narrar melhor o ocorrido no campo santo. Verdade que, proporcionalmente à desaceleração de suas batidas cardíacas, cresciam as risadas e gozações comandadas pelo mano Casimiro, apesar dos reclamos piedosos de dona Esmeralda em favor do ainda apavoradíssimo filhinho. Coube a Isabel, assim que a saraivada piadística em cima do assustado irmão arrefeceu, pedir a palavra para a explicação definitiva do motivo de tanto susto: 
− Oh, Casemiro, deixa de ser boboca! Se apavorando assim à toa e assustando mamãe! Aquela velhinha é uma crente que mora aqui na rua mesmo.   Sei quem é! Ela quis dizer que agora só vive pra Cristo. Os evangélicos chamam de mundo tudo o que não interessa mais a eles depois que se converteram. Ouviu, Zé Mané? 
Mas, por essas e outras, Casemiro foi obrigado a promover uma revisão drástica em seus horários de visitas de fim de semana a Silvinha. Por mais gostosinho que estivessem os beijinhos e apertões, nada de despedidas pra depois das dez! 
− Ah, benzinho, fica mais um pouquinho só... 
− Eu, amor? Nem morto!





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2 comentários:

  1. Caras Helena e Michele, muito me honra, mais uma vez, ter um trabalho meu merecido a publicacao neste blog de primeirissima qualidade. Obrigado. Abr.

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    1. É a sua presença que nos honra! Parabéns pelo excelente texto! Abraços

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