sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O intrigante causo de Leonardo Sacco


Por Helena Frenzel

No século passado, num dia nublado, Leonardo Sacco nasceu. E talvez tivesse sido outra pessoa se, ao invés de só nuvens, houvesse chovido naquele dia, porque a chuva lava pecados e alegrias, dizem alguns, e é por isso que chove quando gente boa nasce ou morre, pois até a natureza sabe chorar. Será?!

Leonardo nasceu e cresceu no seio de uma família fufulalina nem rica nem tão pobre e, seguindo o caminho paterno, entrou num seminário para ordenar-se pastor. Desde pequeno demonstrava o seu comportamento peculiar na escola e assumiu o posto de orador. Na verdade, era um chato de galochas, e era chato porque em seu infinito pequeno mundo não havia pessoa além dele que tivesse mais razão, a última palavra era sempre sua, a disputa era a sua paixão, modo de vida e dogma. Era um imaturo.

Não se sabe bem como, conseguiu uma esposa e teve dois filhos. É que às vezes,  muitas, as mulheres não decidem o próprio destino. E a esposa era calma, mansa, calada, perfeita para uma duradoura união. O discurso vazio era a sua mania, críticas e conselhos eram impostos a quem não os queria e muito menos pedia, um simples comentário era motivo para exaltação. E era tão certo de sua razão que ninguém conseguia nem tentava discutir com ele, pois era evidente a cegueira e gritante a surdez, ambas metafóricas. Não tinha jeito: era política, religião, futebol, qualquer ‘-gia’... tudo ele sabia melhor, para tudo ele tinha ‘a’ explicação e o interlocutor era um zero à esquerda que nada tinha a dizer ou acrescentar. 

A fama de Leonardo era tanta que os pais se valiam dela para ter a imediata obediência dos filhos traquinas: “Se não se comportarem, chamo Leonardo Sacco!”, rapidinho a molecada pedia clemência e a paz voltava ao lar.

Os fufulalinos se queixavam à boca pequena e teve até quem sugerisse contratar um matador na capital. “Esse cabra precisa é de trabalho de verdade”, disse alguém. “Obriga ele a passar o dia inteirinho descarregando caminhões de areia com uma colherzinha de chá pra ver se ele ainda tem tempo de ficar discursando por aí”. “Ah, mas ele pode falar enquanto trabalha, essa não é uma boa solução”, alguém lembrou.

Foi então que o prefeito, homem cordato, resolveu tomar uma ação: mandou chamar da cidade o representante de um produto assim assado e, às escondidas, convocou uma reunião para instruir o povo de como poderiam mudar aquela situação na paz e na calma.

Algum tempo se passou e Leonardo começou a se incomodar com as reações do povo aos seus discursos, que já não suscitavam ira nem raiva, tudo o que recebia, quando muito, era um “Exato!”, um “Exatamente!”, um pacífico olhar vazio de intenções ou um intrigante e alto “O quê??”. Nunca se sentiu tão pleno no exercício de sua oratória e ao mesmo tempo inspirado a gritar para aquele povo o quanto eles eram burros, ignóbeis e o quanto precisavam da sabedoria de um líder e de um pastor. 

Até em casa, a esposa, que sempre fora calma, mais mansa se tornou. Se já quase não falava, de um dia para o outro  passou a andar tão distraída que Leonardo tinha de chamá-la várias vezes ao dia.

Um belo dia, atiçado pela indiferença do povo aos seus sermões, incluindo a própria família, Leonardo sentou-se no escritório, como de costume, para escrever. Não bebia nem fumava, que pena, mas tinha o hábito de, enquanto escrevia seus discursos, manter entre os dentes a tampa da caneta de marfim que há anos usava como um talismã, pois fora um presente de seu pai, o primeiro chato de galochas nascido em Fufu Lalau, já que seus avós haviam vindo do Sul e da Costa buscando as riquezas do Interior. Estava concentradíssimo bem no meio de um argumento, quando ouviu da cozinha um barulho ensurdecedor de panelas caindo e num susto engoliu a tampa de osso, caiu da cadeira e acabou de morrer no chão, estrebuchando as últimas frases prensadas porque a última palavra era sempre sua, sim senhor!

Demorou um tempo até que, sentindo a falta do marido para o almoço, a esposa entrasse no escritório e descobrisse o corpo estendido no chão. Pediu socorro mesmo sabendo que seria sem efeito e no final dos exames confirmou-se a morte por engasgo acidental, e dizem que ele morreu com a boca tão cheia de palavras que não houve quem conseguisse fechá-la mais tarde e foi enterrado com meio palmo de língua arriada. 

E essa foi a notícia mais comentada no Diário de Fufu Lalau: Leonardo Sacco havia passado, dai graças! E muitas pessoas saíram às ruas festejando, jogando para cima minúsculos tapa-ouvidos que esperavam nunca mais na vida terem de voltar a usar, pois incomodavam bastante, mas era melhor do que ser surdo ou ter de ficar ouvindo o que não ajuda não se precisa nem se quer.

No enterro, apenas a família do morto, o coveiro e um pastor que, sem saber nada do caso havia sido chamado às pressas da cidade para o discurso de praxe: “Por ter cessado sua existência terrena, entregaremos seu corpo à terra. Terra à terra, cinza à cinza, pó ao pó. O espírito, nós o deixamos na mão de Deus.” Deus teve ter se revoltado porque nesse momento soprou um vento tão forte que a terra voou da beira do buraco, como se dissesse que nem mesmo ela se alegrava em receber aquele rebento, e do espírito não me pergunte, pois não sou desse departamento. 

Nesse meio tempo, apertando numa das palmas a bendita tampa de ossoparecia que a viúva observava os filhos e pensava no gene da chatice, e entre uma lágrima e outra de alívio rezava para que neles esse traço não saísse. Naquele dia o céu estava nublado mas, como já esperado, não choveu nem um pingo, porém houve no céu um lindo arco-íris, quem sabe uma nova esperança para aquela mulher tão... tão... triste? E ao baixarem o caixão na cova, as cordas rangeram amargo e o ataúde estremeceu. Em se tratando de quem era o morto, ela nem se surpreendeu, pois ele jamais sossegaria sem aquele último... 'adeus'.




Esta é uma obra de ficção e não se refere a pessoas ou fatos concretos da vida real. Todos os nomes dos personagens foram escolhidos ao acaso, por adequação fonética e/ou estética na narrativa. Qualquer semelhança com  fatos ou nomes de pessoas ou lugares na vida real terá sido mera coincidência e não foi proposital. Este texto é de única responsabilidade da autora e não representa, em hipótese alguma, suas crenças ou opiniões pessoais nem as de outros autores que publicam neste site.


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3 comentários:

  1. Excelente! Contém a marca inconfundível da autora: reflexão. A medida que vamos lendo vem a mente situações e pessoas que conhecemos. Tem qualidade ou funcionalidade melhor numa obra?

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  2. Coitados dos habitantes de Fufu Lalau, tolerar "Leonardos Saccos" não é fácil e ainda bem que engasgou com a boca cheia de palavras. Ótimo conto, Helena.
    Um abraço

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