terça-feira, 17 de junho de 2014

A morte mais misteriosa que se teve notícia


Por Michele Calliari Marchese

Foi quando o delegado morreu. Encontraram o corpo jogado no meio de uma mata nativa, próxima da cidade. Quem achou o delegado foi o dono daquela terra, a mando do Padre Dimas, pois havia dois dias que o homem estava desaparecido e a mulher dele, a Dona Celina, procurou o Padre com o desespero estampado em seu corpo.

A população fez um mutirão de buscas e incluiu um moderno sistema de comunicação, trabalhado por jovens a cavalos que montaram guarita nos pontos principais da cidade e do interior. Não havia vivalma que não estivesse procurando pelo delegado. Todo o comércio fechou e as grávidas que não podiam sair na busca, ajudavam nas guaritas fornecendo comida, água e conforto.

Tudo fora abandonado para a procura do delegado, e durante a noite houve revezamentos constantes e de logística surpreendente. A cada meia hora um mensageiro trazia notícias ao tabelião que marcava no mapa os locais varridos pelas pessoas, todos sem sucesso.

As beatas faziam novenas com seus terços intermináveis e choravam pelo triste destino daquela população esquecida por todos, e tão guardada pelo delegado. Jazia em algum lugar aquele protetor ardente? Rezavam para que estivesse vivo ou sequestrado ou ferido. Com as buscas eles o encontrariam de qualquer modo, independente de sua condição física; e o autor do sumiço do delegado seria punido, sem dó nem piedade e por todos os justos e bons que deviam a tranquilidade de sua vida àquele homem da lei.

Passava das quatro do segundo dia quando chegou um dos mensageiros a passo lento, trazendo na mão um resto de pano preto, rasgado de suas próprias calças, anunciando mesmo sem dizer uma palavra, que o delegado era morto. O tabelião fechou os olhos numa atitude de negação, bateu com a cabeça naquele papel de tantos cálculos que jazia sobre a mesa e com as mãos foi amassando pelas bordas todo o insucesso da investida. Levantou-se com o rosto muito vermelho de tristeza e vestiu-se de luto.

Ele juntou-se à multidão que aguardava em frente à Igreja para a chegada do delegado. Em seguida chegaram os mensageiros em seus cavalos trazendo atrás de si uma turba de pessoas que caminhavam lentamente, como se tivessem morrido também.

Ninguém levou flores para não haver resquício de alegria, não enfeitaram o caixão para que não se lembrassem de adornos naquele dia que foi o dia mais triste da cidade de Xanxerê. E quando o esquife adentrou o átrio da igreja, carregado por todas as almas enlutadas, o sol ficou muito forte, como se fosse o sol do meio dia, e iluminou o recinto de tal maneira que o coroinha munido de uma coragem sobrenatural resolveu por conta própria apagar as luzes. Levaram uma cadeira para a Dona Celina sentar-se ao lado do esquife e não houve mais espaço para o velório do delegado.

O Padre Dimas quase não podia conter a emoção durante as exéquias e não havia mais palavras a serem ditas, pois aquele corpo jazido de tiro dispensava qualquer manifestação de apreço ou da recordação dos feitos de homem honesto e bom.

Quem achou o corpo não achou rastro, tampouco vestígio de luta — se é que houve alguma — e os revólveres do delegado foram encontrados em sua cinta, sem faltar bala e sem estarem engatilhados. Deduziu-se que ele fora pego de surpresa, sem chance de defesa, sem chance de ver seu assassino, pois o tiro tinha sido de covardia, daqueles que se dão pelas costas. Não havia pegadas no chão daquela mata e nenhum galho quebrou-se quando o corpo fora jogado ali. Ninguém notou movimentação de jagunço foragido e mesmo tendo seus desafetos ele era a pessoa mais querida da cidade.

Todas as perguntas ficaram sem resposta, pois saiu para trabalhar e nunca chegou lá, segundo o imediato.

Quando ergueram o caixão para levar ao cemitério, centenas de pessoas acompanharam a caminhada mais comprida de suas vidas e tinha gentes de todos os lugares e cidades vizinhas, todos vestindo preto e assoando seus narizes.

As crianças iam logo atrás do Padre Dimas, carregando inúmeras velas para iluminar ainda mais os caminhantes pesarosos e abandonados à mercê dos bandidos e das intempéries e também das assombrações que assolam a Campina da Cascavel.

O assassino nunca foi descoberto.






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quarta-feira, 4 de junho de 2014

O Causo do Rádio


Por Helena Frenzel

Diz a lenda, lá em Fufu Lalau, que foi mais ou menos assim o causo: Mariazinha morava com a tia Noca e um dia quis passar um tempo na casa da Dina, uma tia que vivia numa outra cidade. Tia Noca brigou e brigou, foi do contra, moveu céus e infernos e que a Mariazinha fosse com a Dina ela não ia permitir! Mariazinha via na tia Noca um modelo de mulher arretada, mulher de fibra e de palavra estava ali. Mas a Noca era doidinha para ter um rádio e sonhava com o dia em que o dinheirinho desse para comprar um. Já a Dina tinha mais recursos e até um rádio, havia acabado de comprar um segundo modelo mais caro e de última geração. Mariazinha queria ir com a Dina era mais pela chance de ver o mundo um pouco mais largo do que as esquinas de Fufu Lalau, coisas de jovens, apelos da novidade. Mas Noca não ia deixar nunquinha, nem por cima do seu cadáver! Ao que Dina pensou um pouco e achou uma solução: “Quer ver como ela deixa tu vires comigo? Dou meu rádio velho pra ela e se acaba a confusão...” Mariazinha não acreditou na história e não quis crer na reação de Noca, mas foi só a Dina falar no rádio que ela logo amoleceu: “Se for pra passar só uns tempos... então vai!”. Mariazinha ficou de boca aberta ao ver que Dina tinha razão, Nora se vendera pelo rádio velho, e aos pés de Mariazinha ficou o corpo do mito no chão e os cacos do mundo caído, correu a arrumar suas coisas e foi com Dina viajar, aprender o mundo. Voltou pra Fufu Lalau mas nunca mais viu a tia Noca com os mesmos olhos e desse rádio em diante passou a prestar mais atenção nas letras do que nas músicas, pra não se deixar enganar nem pela Noca nem pela Dina nem por ninguém mais!

Então, o que parece que acontece na Bruzundanga, é que como a tia Noca há muitos por lá, que quando vêem um rádio, um carro ou uma bola são capazes de esquecer tudo o mais. E tem gente, que como a Dina, sabe disso e se aproveita, e se aproveita muito bem. O causo é que a Mariazinha, depois que foi com a Dina, nunca mais conseguiu ver a gente fufulalina com o mesmo olhar, pois que se vendiam fácil por qualquer bola, e aí o problema não foi nem a bola nem o rádio, o problema foi e continuará sendo a falta de moral.

“J’accuse!”



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terça-feira, 3 de junho de 2014

Quando duas línguas se encontram

Por Helena Frenzel

Um 'textículo' para relaxar...


Por vezes, numa terra estrangeira, destravamos a própria língua achando que ninguém vai entender, ainda mais se forem xingamentos. Ledo engano, se as paredes têm ouvidos, o que se dirá do mundo... Veja o que aconteceu com estes amigos meus brasileiros, que da Alemanha se dirigiam para Paris, ou era Londres? Não sei nem lembro. E este causo não teria existido se eles não tivessem perdido a hora do ônibus que os levaria até o local, chegaram no ponto ainda a ponto de se desesperarem ao descobrirem que o ônibus partira sem eles. Tanto tempo planejando a viagem para desistirem assim, na boca da gare, ah não! Fizeram uma vaquinha e tomaram um táxi e lá vai o taxista fazendo o possível para alcançar o ônibus na parada tal e tal assim assado. A uma certa altura, na autoestrada, onde os carros já costumam correr acima de 130 Km/h, num dado momento um dos passageiros solta um “chinela, chinela!” ao que o taxista, na pura calma, deu uma suspendida de ombros e respondeu: „Es tut mir Leid, aber schneller geht es nicht“ (Eu sinto muito, mas mais rápido não pode ser). É que ‘schneller’ em Alemão quer dizer ‘mais rápido’, mas em maranhês ‘chinela’ vem do verbo ‘chinelar’, que não está no dicionário e significa ‘acelera, mete o pé no pedal!’ - com ou sem ‘chinela’. E assim as línguas se encontram: nas coincidências do espaço entrelaçadas com as dos sons. Eles conseguiram alcançar o ônibus e chegaram a Paris sem danos, ou foi em Londres? Não sei nem lembro, mas tanto faz. O “Chinela, caboco, chinela” deu história pra contar e esta aqui me contaram, e ser for mentira é “chinela no rabo!” - da mentira, marr é claro.


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