terça-feira, 6 de maio de 2014

Setembro esquecido



Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel e há sérias dúvidas de que tenha realmente acontecido, mas aconteceu. Foi há muito tempo, tanto tempo que não se sabe precisar, mas foi na época em que o Padre Dimas estava começando seus serviços religiosos por aqui.
Conta-se que numa noite de céu estrelado, a Dona Jovilde, junto com o seu marido Alencar viram chegar à Campina um cavaleiro muito estranho. Vinha montado num cavalo branco e trazia consigo um arco, mas que não puderam ver direito do que se tratava, já que estava escuro. O cavaleiro estacou de súbito em frente ao casal e disse numa voz de barítono: “Venho para vencer e quem quiser que venha comigo.” E assim como apareceu, deu a meia volta e retornou de onde estava vindo. A Jovilde e o marido acharam tratar-se de algum louco e continuaram seu passeio alegremente.
Justamente nesse horário da aparição, o Padre Dimas acordou sobressaltado com um sonho que teve a respeito da vinda do tinhoso.
Sonhou que o próprio credo em cruz arrebataria as almas da Campina num estalar de dedos e ainda se riria do pobre Padre Dimas.
Não se sabe o que pesou mais; se o medo do tinhoso ou se o orgulho ferido, mas a verdade é que na Missa de domingo o Padre convocou toda a população para uma nova novena para que as almas não se perdessem e não caíssem na conversa do demo se por uma desventura ele aparecesse.
Ele não apareceu, o Padre deu-se por satisfeito e com o orgulho restituído.
Na semana seguinte a Dona Silvana e as crianças, viram um cavalo vermelho aparecer na Campina. Conta ela que o cavaleiro tinha uma espada na mão, do tipo que jagunço usa e imediatamente mandou o filho mais velho chamar o delegado e ficou tão desconfiada que não escutara as palavras ditas pelo cavaleiro e tampouco vira quando desapareceu. Deu-se conta da gravidade da situação quando chegou o Padre Dimas suando em bicas dizendo estar se sentindo muito mal a ponto de desmaiar. “Deve ser o calor, seu padre.” Disse a Dona Silvana de olho no delegado que chegava ao seu encontro.
Mas a Dona Silvana não pôde contar nada porque aconteceu de chegaram subitamente na Campina mais de 350 jagunços fugidos da Guerra dos Pelados e corriam feitos loucos em seus cavalos pela estrada, levantando pó e trazendo muito desespero. O padre ajoelhou-se ali mesmo, seguido de delegado, da Dona Silvana e das crianças e começaram a rezar e só pararam quando a Campina ficou num silêncio de morte.
“Foi exatamente isso que eu sonhei”. Disse o Padre Dimas já refeito do susto. Com surpresa constatou que não houve gentes feridas, como também, a população incrédula não sabia do que eles estavam falando. Benzeram-se e foram embora psicologicamente abalados.
Na terceira semana, numa manhã de quarta-feira foi o barbeiro que, abrindo a porta da barbearia deu de cara com um cavaleiro segurando uma balança montado num cavalo negro.
Perguntou se podia ajudá-lo e percebeu no seu íntimo que seus preços de corte de cabelo e barba eram muito baixos e injustos e certa indignidade tomou conta de si. Ele não notou quando o cavaleiro foi embora devido a que todo o povo da Campina estava a reclamar de fome e de injustiças.
Teve que ter uma intervenção do Padre Dimas, que, segundo ele, havia também sonhado com a fome assolando a Campina, mas, ao contrário das reclamações e do sonho premonitório, ali abundava o alimento e tudo o que se plantava era colhido com sucesso. Fez as pessoas verem que tudo não passava de um grande embuste proclamado pelos Cavaleiros do Apocalipse e então as pessoas se deram conta das injúrias que tinham cometido e tentaram e conseguiram esquecer o ocorrido.
Agora restava esperar o quarto e último cavaleiro – o da morte - que apareceu na semana seguinte para o Padre. Vinha o cavaleiro segurando uma jarra e seu cavalo tinha uma cor pálida, como a de um cadáver que se decompõe, muito esquálido e quase a cair.
O cavaleiro ofereceu a jarra ao Padre Dimas e então todo o inferno apareceu diante de seus olhos. Tudo ficou escuro e mau; o Padre Dimas teve muita dificuldade em refugar o presente mortal que lhe era oferecido, mas com a força do seu orgulho conseguiu segurar, diante de seu coração, uma cruz benta e ali ficou de olhos fechados, tremendo inteiro, rezando rezas sem nexo e pedindo que a morte fosse embora da Campina.
Sentiu uma lufada de vento quente em seu rosto, abriu os olhos e viu o sol brilhando naquele dia primaveril.
A vida retornava à Campina da Cascavel e a única coisa que a população não conseguia entender é: como é que estavam no mês de outubro se não tinham vivido o mês de setembro. Poucos velhos sabiam desse episódio, mas preferiram nunca comentar.



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6 comentários:

  1. Um conto assombroso!!! Muito boa a narrativa. Prende a atenção, desperta a curiosidade e culmina em um final misterioso (desses que eu gosto).
    Bom dia, Helena. Parabéns ao talento da autora.

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    1. Oi Ana! Assombroso não? É que você não vive aqui na gloriosa Campina da Cascavel.... coisas muito mais assombrosas assolam os animos que qualquer vivente! Bom saber que gostou, venha sempre, um beijo! Michele C.Marchese

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  2. É muito agradável ler contos da natureza, com suspense. Uma ótima escolha para a postagem. Bjs.

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    1. Marilene, muito obrigada pela leitura! Beijos
      Michele C.Marchese

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  3. OI HELENA!
    CHEGUEI AQUI, LI O CONTO QUE É DE DAR MEDO E FIQUEI.
    ESTOU TE SEGUINDO.
    ABRÇS

    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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