segunda-feira, 31 de março de 2014

Páginas em Branco


Por Henrique Mendes

Tenho comigo um livro de páginas em branco, das quais apenas algumas apresentam anotações escritas à mão. Achei que a maioria delas eu tivesse feito todas no mesmo dia, no maior dos entusiasmos, e que depois esse entusiasmo teria definhado e talvez sumido.
Parece que não foi bem assim. Os números surpreendem-me, e desconfortam-me. Na primeira página, vejo escrito pelo meu punho, laconicamente: “Começado a 3 de Dezembro de 1975”. Depois, abrindo-o ao acaso, encontro anotações de 1979, outras muitas sem data, algumas de 1988,  de 1992 de 1994 de 2000, e até mais recentes, já de 2010.
É um livrinho quadrado, de capa preta, que atravessou muitos anos junto comigo, bons e maus períodos, de farturas e carências – algumas delas insuspeitadas, mas presentes apesar de tudo. Chama-se o “Livro das minhas Citações”. Está forrado desde o primeiro dia com um plástico transparente e forte, como se já então eu pudesse adivinhar que iria dar-lhe muito uso, coisa que, pelos vistos, fiz sem sequer me aperceber.
E nele eu guardo uma memória condensada (não é isso, afinal, que são todas as citações?) de um sujeito chamado Babbit cujo nome dá o título ao livro, saboreado em detalhes nas minhas longas noites africanas. Ou de africanista, dependendo do olhar.
Essa memória refere-se à tomada de consciência de Babbit, ao momento  em que ele descobriu que podia escolher. E que isso, essa escolha, era a vida, com a qual podia fazer o que quisesse:
“Durante minutos, horas, toda uma eternidade, ele ficou na cama acordado, tremendo, atemorizado, compreendendo  que acabara de conquistar a liberdade e perguntando a si  próprio o que faria de uma aquisição tão nova e tão embaraçante...”
Às vezes sinto-me assim.  Preparo-me para  grandes batalhas, e acabo ficando quase desiludido quando vejo que não as travarei.  Já conhecedor de outras  escolhas possíveis, que me são mais satisfatórias, dificilmente pelejarei usando as armas mais óbvias ao meu dispor, com as quais a minha intimidade seria, entretanto,  total.
Talvez piore, assim, a qualidade do meu combate, não sei. Mas combato mais nos meus termos e da forma que escolho.
Também eu, um dia, me vi assim acordado na cama, atemorizado, completamente ciente de que estava sozinho no mundo. Totalmente livre, por um lado. Totalmente desprovido de alguém a quem pedir ajuda, por outro.
Nessa  noite tardia, no desconforto carinhoso de um quarto emprestado, só o Pipocas, sentado nas patas traseiras, me olhava nos olhos e parecia ver mais fundo dentro de mim do que alguém jamais tinha visto. Então, no seu silêncio de cão telepata, juntou à minha, sem a menor hesitação, a sua vida e o seu destino, sabendo – mais do que eu – que jamais o desapontaria.
Voltou a olhar-me dessa mesma maneira, vários anos depois. Estava no meu colo, muito doente, e iria começar a fazer efeito nele uma injeção que lhe tinha sido dada sob minha responsabilidade para que não sofresse mais. Olhou-me diretamente nos olhos, por muito tempo. Depois apoiou o focinho no meu braço, acomodou-se, e abanava o rabo quando adormeceu. Foi dormindo cada vez mais. Enterrei-o num lugar que ele gostaria de explorar, se estivesse vivo, sob uma pequena ponte antiga de pedra rodeada de flores. No lugar, brincam até hoje pássaros e borboletas, indiferentes à auto-estrada logo ali ao lado, e aos anos que passaram, e nem sabem que há coisas que não se esquecem.







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3 comentários:

  1. Obrigada, Henrique Mendes, por deixar nosso espaço mais bonito com tão sensível narrativa. Volte sempre que desejar, abraços!

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  2. Conto bonito, sensibilidade pura. adorei o final, muito bom, essa relação entre o cão e o seu dono.

    Abraço.

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  3. Obrigado Helena pelo convite de raspão para esta maravilhosa leitura. Ao Henrique, aplausos. Maravilha de narrativa e como foi dito, no comentário acima: Linda relação homem e animal. Parabéns ao autor.

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