sábado, 22 de março de 2014

Happy Day


Por Helena Frenzel

A melodia dos pássaros e o toc-toc dos galhos contra a janela fez-me esticar as pálpebras antes de abrir os olhos naquela manhã. O aconchego convidava a ficar na cama, mas era primavera e as frestas davam conta já do sol, que nasce todos os dias para iluminar seres e rotinas: não há nada novo sob o sol, sabemos bem. Chegaram as irmãs arreganhando a porta e desnudando a janela: bom dia, dormiu bem? Sentei-me bocejando e senti que estava desperta quando meus pés tocaram o frio do chão, num arrepio ergui os ombros e deixei-os cair no mesmo ritmo que o pescoço dominava minha cabeça, levando-a a distintas direções, como as mulheres aos homens. Pois chegou o grande dia! Sorri quando uma delas disse isso, mas nada revelei, levantei-me e fui ao banheiro preparar-me para a transformação.

Primeiro veio a massagista, bom começo. Depois de um rápido desjejum a limpeza de pele teve início e nesse meio-tempo a manicure chegou, pediu primeiro os pés e depois tomou as mãos, como fazem muitos, como ele fez, e um tom um pouco mais escuro do que a cor dos lábios foi a opção do esmalte. Descansei e deixei-me modelar. Estava feliz com o momento, mesmo assim não pude deixar de sentir-me como uma atriz que, a cada noite, permite-se transformar em monstros por hábeis maquiadores, e aquela equipe era profissional.

O cabeleireiro chegou mais tarde e, a contar da bagagem, acho que trouxe para cada fio de cabelo uma tesoura especial. Cabelo lavado, começou o corte, uma aparadinha só. A camada de creme no rosto parecia ter dado aos cravos aviso de despejo, senti invadirem o imóvel dos poros e começarem a lenta desapropriação. Eu tinha esse entendimento, mas bem podia ser só fantasia. Então lavaram-me a cara e a ansiedade escorreu pelo ralo como a água esbranquiçada em redemoinho na pia, e faltavam ainda duas horas para as dez. Mas eu  relaxava olhando a água, tentando esquecer do relógio e tudo o mais. A maquiagem começou com a base e terminou com meus graúdos olhos claros piscando satisfeitos os cílios alongados. Não! Era outra aquela que estava ali, mas faltava ainda o cabelo.

As madeixas no chão mostravam o pouco que fora cortado, e me deu a certeza de que teria tempo o suficiente para ler o último capítulo d’O Conde de Monte Cristo enquanto me secavam os fartos cachos e prediam-nos nas tranças do penteado. Como não podia levantar-me, com as unhas feitas e o rosto pintado livre de cravos, pedi o livro que estava na mesa de cabeceira, abri-o no último capítulo e comecei a ler.

“Tudo se compõe e se decompõe” bateu em minha cabeça e não era frase original, velha e batida como a própria vida, verdade universal. Mas era Moska quem cantava, em background.

Não fui muito longe no livro porque o vestido chegou a tempo, trago orgulhosamente por mamãe. Um coro de deslumbramento orquestrou que lindo! ao tempo que o cabeleireiro terminava o penteado e a tiara para o véu. Eu não podia crer de tanto branco. Restava agora uma hora para as dez, mais ou menos como é mesmo a vida: nunca se pode precisar.

Às cinco para as dez o Audi preto parou na porta da igreja e dentro dele três pessoas aguardavam um sinal. Duas delas estavam apreensivas e a terceira, achando tudo aquilo uma grande chateação, imagino, mas eram ossos do ofício e o pagamento era bom, que agüentasse! Foi quando deu onze horas e o sinal não veio, nem mesmo no celular, que uma das ocupantes, antes só nervosa, louca se tornou. Abri a porta e em meio a tanto pano sai correndo, pouco me importando os gritos do meu pai e os rasgões no meu vestido, dado que um coração ferido sangra muito mais. E corri e corri com toda a força, e senti quebrar um salto, um elo também, e as lágrimas caindo, e o véu que se soltou foi preso pelas mãos do vento que o conduziu suavemente, sem maiores danos, do alto ao fim da escada, do alto ao fim do sonho, e isso eu vi mas não sei como, eu não estava mais em mim. Entrei na igreja aos tropeções e aos prantos, meu noivo não estava lá.

Acordei já no meu quarto, meu pai segurava minha mão e ouvi-o dizendo: Ele pagará por isso, minha linda, ele pagará. E não pude evitar recordar daquele dia quando, pensando que eu não estava, ouvi meu noivo confessar a um amigo que eu pensava termos em comum: Feia desse jeito eu só posso comer bêbado, não é mesmo? Ah se não fosse a fortuna do pai... Ossos do ofício, meu caro, ossos do ofício! E eu me controlei para não matá-lo ali mesmo e comecei a elaborar o plano que hoje chegava ao final. Por mais de seis meses fi-lo crer que eu estava apaixonada e crente em seu amor por mim, tolerei suas conversas sem poesia, as mentiras e falsas ações; meu objetivo era único: dar a meu pai um motivo para o destruir. Não que meu pai se importasse com as filhas, mas a vergonha pública era coisa que um homem com seu temperamento e orgulho não podia suportar. Antes do final da tarde ficou conhecido que o futuro genro não comparecera à igreja por conta de uma picante despedida de solteiro, da qual participaram as mais belas modelos, incluindo as mais queridas de meu pai, que mamãe não saiba, todas devida e anonimamente bem pagas para darem ao felizardo uma noite sem igual, repleta de beleza.

Mais tarde, vendo-me só no quarto, sentei-me diante do espelho, rosto lavado de falsas lágrimas mostraram quem realmente sou, e se o sorriso aformoseia o rosto...

Quaquaraquaquá, quem riu
Quaquaraquaquá, fui eu” (1).

Meu pai é um homem de palavra. Oh, happy day!


Aqui sim, caberia um FIM (do mundo, de um dia ou de uma história), mas por certo, sem ponto final



(1) Trecho de VOU DEITAR E ROLAR, Baden Powell e Paulo César Pinheiro, lindamente interpretada por Elis Regina





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18 comentários:

  1. Excelente conto, Helena! Final imprevisto mas que, francamente, vinga as feias! Parabéns.

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    1. Obrigada Lu, na verdade esse texto foi uma forma de homenagear as mulheres inteligentes. Mas servir pra vingar as feias é uma válida interpretação. Valeu! ;-)

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  2. Nem só de beleza vive uma mulher...

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  3. Genial o conto, você produziu imagens fantásticas com sua descrição das cenas, pude até ver o véu voando, a corrida com o salto quebrado, imaginei a personagem mancando... rs. Adorei, Helena.
    Abraços

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    1. Como disse Clarice Lispector no prefácio de um de seus textos: acho que este texto se permitiu mais do que eu queria dar. Deu nisso! Obrigada pela atenta leitura e era exatamente essa sensação lírica que em alguns trechos eu quis causar. Valeu! ;-)

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  4. Oi Helena, a história é ótima e suscita boas reflexões sobre as respostas possíveis ao modo escroto como padrões e interesses nos controlam. O texto pede alguns polimentos que tu mesma identificarás ao reler, como algumas imagens utilizadas (o espichar das pálpebras, por exemplo) e o modo escolhido para revelar a trama. E viva as reticências da vida.

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    1. Maravilha, Maurem! ;-) Leituras como esta sua são sempre muito muito bem-vindas em meus textos! Sim, eu mesma tinha consciência de alguns detalhes a melhorar, os quais trabalharei numa próxima versão. O melhor nessa tentativa de escrever contos é que parece que eles nunca estão prontos e para esses casos acho que existe o ponto final gráfico, ou o final de um prazo para publicar, ou quando o objetivo é só escrever por escrever publicamos para obter dos amigos excelentes contribuições como essas. Sim, mas o fluxo é contínuo, muito bem lembrado! Valeu, valeu! ;-)

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  5. Muito bom o teu conto, com descrições criativas, pormenorizadas, que vão conduzindo a narrativa para um final imaginável... que não se realiza!
    O desfecho valoriza sobremaneira o conto, parabéns!

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    1. Obrigada, Beatriz! Fico feliz em saber que tenhas gostado. ;-)

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  6. Uau, Helena!!!! Senti o trágico abandono da "pseudo" noiva...porém a vingança foi um deleite, muito bem armada. Armar uma trama dessas exige viver o personagem, sentir a fúria das palavras ditas e das atitudes vindas, pois nesse caso, deixar do noivo simplesmente, não fazia parte da "psique" da sua personagem. Foi um teatro psicológico muito bem montado pela sua personagem (feia ou bonita, tanto faz) e que nos deparamos aos montes por aí, mas a questão é mostrar esse lado medonho de algumas pessoas no papel. Amei de morte morrida. À quantas se vai o ser humano... Parabéns!! Beijos

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    1. Comadre, lembrei da Dona Santa e da dor dos partos... dos contos! Beijão! ;-)

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  7. Que balde de água fria, o conto, Helena, muito bom. A personagem, feia, ficando linda e poderosa, pra lançar sua vingança. Com certeza, Happy Day merecido..
    Abraço!

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    1. Será que ela era feia mesmo, Rodrigo? He he he he... Beleza é um conceito muito relativo. Valeu, valeu!! Abração ;-)

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  8. Excelente esse conto! Sua narrativa prendeu e me fez apreciar cada momento. Tenho mania de entrar na pele das personagens para poder saber bem da história. Afinal beleza não pões mesa, já dizia vovó.

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    1. Maria, eu sou sua fã. Imagine a minha alegria quando você diz que gostou de um dos meus contos... Menino! Ei, trem bão! Beijão ni tu! ;-)

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  9. Helena, amei este conto... Eu estava em dúvida sobre este ou Cráudia, mas escolhi este para divulgar para um grupo de contistas amadores de que participo no Facebook. Depois te conto a reação dos participantes a ele, pois a cada semana é postado um conto de autor consagrado e outro "amador" (ainda que te considere profissional, rsrs). Beijo grande!

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    1. Muito obrigada por ter escolhido um texto meu. Deixe-me saber o que acharam do texto, tanto faz se gostaram ou não, o importante é sermos lidos, não? ;-) Brigadu e beijo grande também!

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