terça-feira, 18 de março de 2014

Enquanto isso, na bodega...


Por Michele Calliari Marchese

Todos conheciam o Olavo pelas turras que tinha com seu compadre, o Rui. Viviam discutindo supostos textos do suposto escritor e o compadre sempre dava um jeito de dizer que nunca estavam bons. Aconteceu no dia em que descobriram o corpo do Inácio dentro do bar — já fechado — da Dona Luisa, e o Rui mandou o Olavo fazer o início de um conto. O primeiro parágrafo somente, que o resto ele lhe ditaria entre uma cachaça e outra.
O conto versaria sobre o abandono daquele corpo numa bodega. Horrível por si só e com o enredo criativo do Rui bastava o Olavo começar. E ele começou:
“Naquele fatídico dia oito, entre a avenida principal e a prefeitura, mais precisamente no estabelecimento da Dona Luisa, foi encontrado na penumbra, um corpo.”
O Rui não gostou. Esse negócio de por dia, hora e local eram coisas da paróquia e que o Olavo tomasse jeito e inventasse outro nome para a dona do bar, porque poderia ser que a própria Dona Luisa lesse e ele não gostaria de ver o fim daquilo. E botaria a culpa no Olavo. Sem dó nem piedade.
“Fazia um lindo dia de sol, o ar quente e abafado daquela tarde primaveril, trouxe à tona um cheiro despropositado. Acharam o defunto do Romero.”
Nem teve conversa. O compadre rasgou tudo em picadinho, dizendo que de tanto calor que tinha naquelas frases ele suou só de ler. Que o outro imaginasse o resto, se continuasse daquela maneira iriam queimar as mãos ao pegarem o papel. Mas, Romero ficou um bom nome.
“Acharam o defunto do Romero. Ninguém entendeu como é que ele foi parar lá, dentro de um bar fechado, sem móveis nem nada. Só a poeira a lhe fazer companhia.”
O Rui gostou da frase da poeira, o resto que se eliminasse por si só. O Olavo começou a bufar.
“Acharam o defunto do Romero com a poeira a lhe fazer companhia. O mistério que envolve o corpo encontrado dentro de um bar segue sem explicações.”
O compadre mandou continuar. “O delegado busca, intrépido...”
— Intrépido? E o Rui caiu na gargalhada. Disse ao Olavo que esse início mais parecia notícia de rádio dando as explicações sobre um caso de polícia. Não tinha nada contra o delegado, mas que colocasse outras palavras já que a perspicácia do dito cujo era conhecida até na lua. O escritor que era compadre de casamento do delegado não gostou do cinismo exagerado do Rui e comprou briga na hora. Entre a discussão sobre os quesitos investigativos do delegado e os rascunhos terem sido mastigados e engolidos pelo Olavo foi meia hora.
Foram embora do bar sem terminar o jogo e sem pagar a cachaça.
Na semana seguinte, com os ânimos em ordem e a discussão esquecida, apareceu o Olavo com vários inícios para aquele conto do Rui. Era apenas uma questão de conversa para escolher qual deles ficaria melhor no contexto geral.
E o Olavo leu com todo o amor que sentia em sua alma de escritor:
 — Esse é o primeiro: “O Romero foi encontrado morto, abandonado no chão de um bar, tendo a poeira como última acompanhante de sua vida.”
— O segundo: “Ninguém imaginaria que o cheiro que empesteava aquela cidade esquecida por Deus, era do Romero. A porta arrombada permitiu que os últimos resquícios de vida daquele lugar — a poeira — pudessem vislumbrar a luz do sol.”
— Esse é bom: “Romero jazia com a poeira. O bar havia sido sua última morada, o seu último adeus. As paredes foram as únicas a escutarem tão assombroso suspiro de fim de vida. Jazia sozinho, estendido no chão, putrefato.”
— Agora o último: “No bar, um corpo. Sozinho, lânguido, sem o sofrimento do amor e tampouco as saudades de outrora. Romero estava morto e foi encontrado porque seu cheiro empesteou a pequena cidade.”
Depois da leitura, Olavo fechou os olhos e suspirou como se tivesse empreendido grande esforço em mostrar seus sentimentos naquele primeiro parágrafo daquele conto secreto que o Rui lhe ditara.
Pois o Rui, que baixava as sobrancelhas e erguia um olho de desconfiança pediu ao compadre que porra era aquela e o Olavo, incrédulo, lhe explicou tudo o que haviam combinado e que estava esperando o resto do conto, e o compadre, dando uma gargalhada interminável, lhe disse não lembrar patavina do que iria ditar e que tampouco tinha alguma ideia na cabeça para tanto e que era para ele sentar que iriam começar o jogo logo ele pagasse a conta da semana passada ao dono do bar.

* Sobre a morte do Inácio no bar da Dona Luisa, leiam: "Último Pedido"




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4 comentários:

  1. Querida Comadre, qualquer comentário que eu faça em seus textos será sempre suspeito, pois todo mundo sabe que eu sou sua fã de carteirinha. Amei de morte morrida os últimos contos e sigo ansiosa pelos próximos. Eita Campina! Um abração e que Deus continue dando a você o tempo necessário para criar e continuar nos brindando com histórias interessantes não só da Campina, mas do seu repertório em geral. Um beijo!

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    1. Comadre, obrigada! A recíproca é verdadeira! Bom, acredito piamente que a Campina da Cascavel seja uma inesgotável fonte de causos e quanto ao meu repertório em geral, sinto dizer que assim que comecei a vislumbrar os "por baixos dos panos" daqui, não escrevei outra coisa que não fosse sobre esses inexplicáveis acontecimentos da minha cidade. Obrigada por tudo!!! Beijão

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  2. Bom demais conto, Michele, um verdadeiro esperto esse Ruim. hehehe.
    Abraço1

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    1. Oi Rodrigo! Bom saber que acompanhas os contos daqui! O Rui é daquele tipo de compadre que todos deveriam ter... ou não! Obrigada pelas palavras. Abraços

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