quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Urso



Por Rodrigo Arcadia

— O bicho, no limiar do entardecer, espreguiça na árvore. Com os braços, abraça e ruge. Não é rugido de raiva, tristeza ou revolta. É de satisfação, de abraçar gozando prazer, o que para mim era incompreensível.

Meu avô, quando vivo, recontava essa parte. Contava a história do urso da montanha, que descia no limiar do entardecer para abraçar a árvore.

Vovô morreu e jamais conseguiu ao menos dar um disparo no animal. Faleceu dizendo que a jornada havia chegado ao fim.

O conflito do animal com meu avô começou na idade dos 18 anos, ao descobrir a intimidade que o outro tinha com a árvore.

Tal cena possibilitava acabar com a fera. O animal, parado e indefeso, e o dedo pulsando, esperando o puxar do gatilho.

— O olhar tinha mistura de feitiço ou sei lá o que. Dava pavor. Não eram olhos de urso. Eram olhos humanos.

Assim vovô, com covardia e raiva, desistia.

No grupo de caçadores, no qual se incluía seu pai, por reclamações constantes tomaram a decisão de excluí-lo. Meu avô tinha seus 28 anos.

Envergonhado de ser chamado de covarde e mulherzinha pelo pai, tomou a missão na vida: matar o urso da montanha.

Ao completar 31 anos, casou com vovó, moça dez anos mais nova. Empenhado na caça, nunca reparou na esposa, nem sentiu amor ou paixão. Também não teve nada pela filha, minha mãe.

Vovó compreendia ou disfarçava. Às vezes, mamãe via lágrimas no rostinho da coitada. Mulher forte, dizia mamãe.

Para ele, a vida era ele e o animal. A esposa e a filha eram desenhos apagados da existência.

Aos 38 anos, o pai faleceu. No leito de morte, nunca perdoou o filho pela humilhação sofrida, e após isso a expulsão do grupo.

 Sentiu-se culpado. Ou melhor, culpou o coitado do bicho. Um disparo. Faltou o disparo.

Com 42 anos, quase conseguiu pegar a fera. Quase, a bala acertou a árvore.

– Nos encaramos por dois minutos. Eu tremia. Tentei não encarar os olhos. Aquilo arrepiava. Moveu a cabeça, soltando os braços.
“Morrerá, maldito, morrerá!”
Puxei o gatilho. O maldito correu. Emprenhou-se na floresta, perdendo-se na escuridão.

Para a vida de desgosto e azar, o culpado era o urso. Até a falta de amor pela esposa e a filha.

Os 45 anos foram marcados com a saída da minha avó. Cansada, escreveu uma carta explicando a saída, levando minha mãe.

Porém, arrependida, voltou três dias depois. Pediu perdão. Desorientado, nunca pronunciava palavra alguma com vovó. Com o passar, entendeu o desgosto da mulher, a ausência com a família.

Quando nasci, meu avô era homem velho. Sequer junto da esposa, quando essa faleceu.
Posso dizer que mamãe o culpou.
Agora não era somente o pai. Era esposa e filha. Talvez vovó não. Com o andar dos tempos, entendeu a missão. Mamãe não perdoava.

Com o meu nascimento, permanecia mais na casa. Saia pouco, para caçar o maldito. Feriados, comemorações, chuva, frio, sol, lá ia com a espingarda.

Presenciava sua raiva, frustração em não conseguir seu objetivo.
Com minha presença e vendo-me mocinho, talvez enxergasse como substituto.

Foi aí, com meus 12 anos que soube das histórias. Orgulhoso narrava as caçadas. Narrava detalhes, sem se esquecer dos perigos. Contava com a intenção de me influenciar, para que eu fizesse parte dos caçadores da família.

E mamãe brigou. Briga feia. Expliquei que não seria igual. Não sairia a caçar animal nenhum. Adorava ouvir a história, adoráveis no meu conceito.
E chegou a hora que meu avô largou a espingarda.
No entanto, quem avisou foi o urso:

 – Vá descansar, velho homem. Seu tempo de caçada terminou. Guarde a arma. Sua missão e dívida estão encerradas.
Disse que as palavras vieram do animal, que o encarou com os olhos humanos.

Viu a vida que perdeu. Percebeu que a filha dera-lhe um neto e amava-o. Mesmo tendo tentado influenciá-lo.

— Não sirvo pra mais nada. Pra que presto, senão pra caçar?

Não sei se as palavras foram disparos certeiros. Mas surtiram efeito. E acordaram-no, fazendo-no entender o que perdera.

— Só hoje sei do meu erro….

Vovô teve mais um ano de vida. A tristeza e a depressão levaram-no à morte.
Hoje, passado alguns anos relembro dos detalhes. Não moramos mais na antiga casa, mudamos para perto do centro.

Tenho um fato a contar, que até hoje permanece na minha mente.

Saí e, caminhando, fui encontrar com o bicho. Não portava arma, uma curiosidade me invadiu.
E lá estava: o  animal velho, fraco e cansado. O urso envelhecera. Com carinho e dificuldade enlaçou a árvore. Despedida, abraço final.

Encostou a cabeça no tronco e deslizou o corpo no chão. Virou a cabeça e me encontrou. Fixou seu olhar e pude ver os olhos humanos. Também me senti estranho, arrepiado. Rugiu. Rugido cansado.

O limiar do entardecer apontava e olhando-me, disse:
— Minha jornada se encerra. A vida se encerra….
Suspirou. O último suspiro.

Os braços soltaram-se. As folhas caindo no corpo. Muitas, muitas folhas caindo. Encobrindo o velho urso, ou enfeitando-o. Depois, as folhas vizinhas caíram, prestando homenagem ao animal, fazendo-se de túmulo.


Ali descobri que o homem e o animal não eram inimigos. Eram amigos. Só não sabiam explicar o que sentiam um pelo outro.



Em áudio também (clique aqui).


Nota: Assumimos que este texto se trata de ficção, ou seja: assemelha-se à realidade mas não se refere a pessoas e fatos do mundo real nem emite sobre eles juízo ou opinião. Ele nos foi enviado para publicação pelo(a) próprio(a) autor(a), sendo aqui reproduzido conforme o original recebido, tendo sido levemente editado. É de autoria e inteira responsabilidade do(a) autor(a), que detém sobre o mesmo todos os direitos autorais. Este texto não representa, necessariamente, a opinião das editoras e de outros autores deste site.

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4 comentários:

  1. Amei Rodrigo, existe nas entrelinhas muitos valores, muitas lições! O conto nos proporciona esse tipo de interpretação e graças a escritores como você, temos a oportunidade de ler obras de imenso valor ético. Parabéns!!

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  2. Oi, Michele, grato pelas palavras. Fico feliz em transmitir algo de bom aos leitores, uma mensagem, um pensamento, que traga algo de bom pra todos. É desse modo que eu quero trazer.
    Abraço!

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  3. Creio que esse foi um dos primeiros textos do Rodrigo Arcadia que li lá no Recanto. Lembro dessa leitura ter-me causado uma ótima impressão pois, em estado bruto carecendo ainda de lapidação e revisão, percebi no texto uma clara veia do autor para o gênero e em seu estilo muito potencial, sem falar do lirismo que ele conseguiu imprimir naturalmente em muito de seus textos em prosa (dos poucos que eu já li por lá). Tenho a impressão de que Rodrigo, até agora, tem escrito mais com intuição do que com técnica, e técnica é algo que se pode aprender, mas intuição para o conto não, não é todo escritor ou escritora que consegue escrever bons contos, que consegue ter a visão além do alcance para tentar pôr partes do mundo em poucas linhas. Então eu acho que Rodrigo, assim como eu, temos um longo caminho ainda pela frente, o que não podemos jamais é permitir que qualquer outro objetivo nos tire dos olhos o brilho do motivo genuíno que nos leva a escrever e seguir reunindo aprendizado que nos permita cada vez mais contar nossas histórias de diferentes formas e cada vez melhor. Obrigada, Rodrigo, por autorizar a publicação do seu texto em nosso blog! Sucesso pra você e siga escrevendo, estudando e escrevendo e melhorando escrevendo e sendo sempre fiel ao seu coração. Um abraço!

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  4. Olá, Helena.
    Você está certíssima, é bem isso mesmo. Eu não conseguiria encontrar uma definição melhor para dizer a minha maneira de escrever e você encontrou, que bom isso. Como disse, minha amiga de Porto Alegre: "Seus personagens são realistas e humanos." é bem isso que vejo. Sei que peco nas revisões, mas tenho melhorado nesse lado, mas estamos aprendendo e sempre aprendendo e sim e não deixar a peteca cair, e continuar escrevendo bastante, pois escrever também é uma técnica.
    Eu que agradeço pela oportunidade que tem me dado no blog de publicar meus textos, agradecer esse apoio tão bom que tenho recebido. Muito obrigado, Helena.
    Um abraço e sucesso pra ti e pra todos nós, que amamos escrever.

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