segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O bugreiro


Por Michele Calliari Marchese

“Não volto para casa nunca mais.” Foi o que o Aldir disse à família quando ficou enfezado por alguma bobagem que nem ele se lembrava. Ante os olhares embasbacados da esposa e dos filhos pegou uma malinha de mão, colocou dentro algumas mudas de roupa, pegou os chinelos e fechou a porta de supetão.
Todos ficaram inertes com a inesperada partida do homem. Para onde iria? E por que tanta irritação? Pois o Aldir era assim, enfezado, irritado e por qualquer coisa emburrava em algum canto da casa ou no porão. Passava dias sem falar e abria a boca somente para comer e dar ordens ou para reclamar de algum serviço mal feito.
Acontece que a família sentiu uma espécie de alívio, mas ao mesmo tempo pesar, pois que poderia acontecer o pior durante a viagem dele.
O Aldir não viajou e a esposa descobriu no dia seguinte que o homem estava em cima de uma árvore e só descobriu porque ele lhe jogara os chinelos sujos para que ela lavasse. Pois não era que o dito cujo tinha se enfiado no meio dos galhos de um bugreiro? E o que mais deixou a mulher irritada foi que vislumbrou uma rede de dormir, guarda chuva e uma pequena estante pregada no tronco maior.
Estava lá o bendito de mala e cuia. E não tinha esquecido o rádio. Foi então que uma coceira tomou conta do corpo da esposa e quase não pôde pegar os chinelos por causa de tanta vontade de se coçar. Saiu correndo para se lavar e depois foi até uma vizinha se benzer e desabafar o ocorrido.
A vizinha já sabia de tudo, porque numa gritaria do Aldir para que o filho tirasse direito o leite das vacas, foi que ela viu de onde vinham as ordens. Tentou acalmar a esposa do homem e lhe disse que decerto logo ele desceria, pois que o bugreiro dá alergia em todo mundo que passa perto ou encosta nele. Devia estar se coçando como o diabo. E a esposa lhe respondeu que enfezado do jeito que ele era, era bem possível do homem não ser alérgico à árvore.
Dito e feito. Além de não ser alérgico, ele estava gostando da nova morada. Poderia descer quando quisesse e deixar as roupas sujas para pegar roupas limpas. Tomaria banho na sanga quando lhe aprouvesse e não ouviria mais os xingamentos da mulher lhe dizendo que estava fedido. Era a liberdade.
Poderia também ficar vigiando para ver se o namorado da filha apareceria em horário suspeito. E lembrou-se que tinha de pegar a espingarda se caso precisasse dar um susto no rapaz. Para o leva e trás ele deixava uma caixinha pendurada numa engenhoca de roldanas que ligava o galho onde morava à janela da cozinha. Deixava lá de noite e buscava quando tudo o que tinha encomendado estava na caixa e gritou para o filho mais velho que não se esquecesse da arma, que não precisava dar explicações e que obedecesse, caso contrário tiraria lasca do bugreiro e colocaria em suas ceroulas.
Obviamente que o filho obedeceu, pois conhecia as explosões de vingança do pai.
Os dias passaram e do verão somente a lembrança e o arrependimento de abandonar uma cama quente por uma rede úmida. Tudo lhe pesava nos ossos. O subir e descer, a sujeira do corpo, a barba comprida que espinhava a boca, os atrapalhos na hora de tirar o pijama, enfim, tudo o que pode acontecer em cima de uma árvore, que com certeza não aconteceriam dentro da casa.
E o orgulho, onde deixaria? Não tinha dito que não voltaria jamais? Pensou e coçou a cabeça. Piolhos. Era só o que faltava mesmo. Mas também serviria de desculpa, já que estava no meio de um bugreiro.
Desceu.
Bateu na porta de entrada se coçando todo e gritando para que abrissem imediatamente porque iria morrer. Ninguém lhe deixou entrar, mas para o Aldir pareceu que ninguém havia escutado seus pedidos. Aguardou com impaciência a hora que todos acordassem para entrar e tratar dos piolhos ou o que quer que fosse. E recomeçou a se coçar, da planta do pé até o couro cabeludo e aquilo lhe doía mais que o orgulho ferido, e notou que manchas começaram a sair por todo o lugar. As mãos estavam cansadas de tanto esfregar a pele e tinham que continuar esfregando em outro lugar, porque a coceira era insuportável.
Quando a família abriu a porta para deixar o homem entrar, ele deu meia volta e voltou para o bugreiro, chegando lá a alergia parou. Tomaria banho na sanga no dia seguinte para se livrar dos piolhos e tentaria voltar para casa, mas quando ameaçava descer da árvore as coceiras recomeçavam.


Nunca mais pôde descer. Todos se acostumaram com o acontecido e quando faleceu, trinta anos depois, foram os netos a lhe descer da árvore içado em uma corda, meio estrangulado, meio torto, quase caindo. Tinham cavado um buraco ali mesmo no pé da árvore para que fosse enterrado em sua última moradia. Quando taparam a cova e fincaram uma cruz de madeira em sua cabeceira, o bugreiro secou.






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