terça-feira, 26 de novembro de 2013

INSATISFEITA


Por Rodrigo Arcadia

Todas os dias após sair do serviço ela caminha para o barzinho com mesinhas na calçada. Não era muito longe para ir a pé, até porque adorava olhar os movimentos, as pessoas, o perfume desagradável de poluição.
Antes de sair, fazia questão de se arrumar no toalete do serviço. Trocava de roupa, trazia saia na sacola de uma loja famosa de roupas de marca, batom e perfume, arrumava o cabelo e ia cheia de energia.
Se despedia e ganhava a direção do barzinho. Como não queria ser interrompida, desligava o celular imaginando que não fazia nada de mal, já que desejava ter uns minutos de sossego, depois de uma cansada semana de trabalho.
Não queria encher a cabeça com a louça na pia, as roupas sujas no cesto, contas, nada, nada estragaria, nem o marido de dezoito anos de convivência.
– A rotina te mata, você verá – A amiga contou certa vez. Tinha razão, a rotina estava destruindo, sufocando, tirando-a dos nervos.
Casamento é uma merda. Ouviu por acaso da colega de trabalho. Essa era cheia de aventuras mirabolantes, adorava inventar.
Sequer contava algo, se fosse intimo então, aí que segurava. Não, não era de espalhar aos ventos os problemas, total discreta. Se divertia com as tagarelices das colegas, principalmente as mais jovens ainda descobrindo as primeiras transas.
E andando descobriu o barzinho. Ambiente legal, pessoas que estavam pra tirar o stress, dar risadas, falar besteiras e jogar conversa fora.
Na primeira vez sentiu-se constrangida por estar sozinha, desacompanhada, aquilo foi um ultraje. Onde já se viu alguém chegar sem ninguém acompanhando? Com o passar das semanas ninguém ligava se havia alguém ou se aparecia solitária.
Escolhia a mesinha de fora. Tinha o presente do ar fresco do fim de tarde, mesmo com o ar poluído. Transmitia orgulho, sentada era outra personagem mulher. Como adorava se sentir assim, outra mulher. Desconheciam teu nome, tua vida, o que faz e o que não faz. Havia problemas ou não, se escondia a tristeza ou trazia a alegria ninguém saberia.
O garçom atendia com delicadeza e educação. Ela pedia chope e retirava da bolsa os óculos escuros, assim disfarçadamente olhava. Se ajeitava na cadeira, relaxava, como era bom sentir o momento tão dela, tão intimo.
Havia gente bonita? Havia. Várias. Interessantes? Muitos visitantes interessantes. Homens e mulheres. Clientes à vontade pra colocar os olhares, alguns sérios, outros de sorrisos e gestos gesticulados, poetas, sonhadores, loucos e visionários, normais.
Sua atenção recaiu numa pessoa. Um rapaz, que como ela aparecia solitário e gostava de sentar na mesinha um pouco afastada da dela, só que de frente. Acostumado a pedir chope e porção de batatas fritas, carregava consigo um livro ou às vezes passava o tempo mexendo no celular.
O jeito dele a interessou. Mil perguntas surgiram. Será que também é casado e aparece pra ganhar um pouco de liberdade? Ou é apenas visitante normal, sem compromissos, rotinas e dores de cabeça?
Enchia de muitas questões e curiosidades. E se arriscasse perguntar? Não seria do feitio dela. Uma mulher discreta fazendo o papel de adolescente à procura de um garoto cheirando a talco? Ah, não, essa não seria ela.
Tirou da cabeça que não era disso, continuou a beber, ouvir as conversas, o barulho dos automóveis e retornaria pra casa e quando girasse a maçaneta da porta e abrisse encontraria a tua vida de volta. O marido se aproximaria com o mesmo cheiro de anos, diria um olá e beijaria o rosto num beijo marcado, viria a casa e pensaria no que a amiga disse: A rotina te mata. Você verá.
Nem tem pensado em fazer amor mesmo ele a procurando, se arrumasse uma amante para o coitado não reclamaria. Amante não toma lugar da esposa, é somente para satisfazer, nada mais que isso. No entanto, imagina que ser traída não é um remédio de ser engolido. Então prefere deixar de fazer amor do que ver uma outra mulher no meio deles.
Era hora de beber o restante da bebida. Que pena, a vontade era de beber mais uma taça, mas se demorasse teria problemas. Não queria problemas, mais do que já tem.
Com um levantar de braço, chama o garçom, que prontamente veio.
– A conta, por favor.
O garçom escreve num bloquinho e retirando o papel entrega.
Mexe na bolsa e retira a nota suficiente para pagar.
– Aqui está.
Antes de levantar o garçom coloca um cartão na mesinha.
– Mandaram entregar.
– Obrigada.
Ele sai desaparecendo no fundo do estabelecimento.
Discretamente pega o cartão e vagarosamente lê.
“Esteja amanhã nesse horário.” Ass: Aquele que está próximo.
Toma susto. Quando olha na mesa do rapaz, não se encontra mais. Olha ao redor e nada. Desapareceu. Dá sinal novamente para o garçom.
– Por favor, o rapaz daquela mesinha?
– Já foi. Ele que pediu pra deixar o cartão. Algum problema?
– Não. Não foi nada. Agradecida.
– De nada.
Levanta. Não teve coragem de retirar os óculos, sem olhar pra ninguém, sem sentir que está perdendo a liberdade.
Ao entrar em casa, lá está sentado o marido em frente à TV ligada alta. Ele como de costume, já que o ritual não podia ser quebrado, se aproxima para beijar o rosto dela. Pergunta se está tudo bem e foi respondido com simples estou bem. Na cozinha um mar de louças naufragadas na pia, jantar de ontem, isso fez ter um certo pavor passageiro, teria que ser resolvido. Depois do banho.
No quarto o cesto entupido de roupas. No final de semana daria um jeito, se é que empurraria pra próxima. Só pensa no banho, banho pra relaxar.
E que gostoso, tira o tempinho para derramar a água no corpo, lembrar do rapaz e do cartão... quem sabe, uma imaginação de amor.
Arrumou tudo, a pia limpa e agradável de ver, preparou o jantar com os restos de ontem. O marido não chiou, aliás, jamais chiou. Sentados à mesa, balbuciava poucas palavras, ria pouco, ela tentava contar alguma coisa e o clima não era quebrado.
No sofá, ele prestando atenção num inútil programa. Ela tenta ler um romance que comprou há um mês, em vão. O rapaz do barzinho não a deixava em paz. Pousa o livro e observa o homem com quem convive há anos. Observa que o culpado era o tempo por ter estragado a convivência. Era emocionante olhar anos atrás, por que estava diferente hoje em dia?
E o rapaz? Mais jovial, poderia se arriscar e conversar, saber dele, beber uma ou duas taças de chope, trocar palavras, números de celulares, e-mails ou tentar um romance.
Não custaria nada ter um amante, só pra relaxar. Acho que ele também não ligaria se fossem amantes. Pegar o final de expediente e ir num desses motéis afastados, fazer amor e voltar pra casa.
Não, não seria má ideia, até porque possuía um ar atraente e chamava a atenção. E era melhor que ficar sozinha num barzinho bebendo chope.
Fica encarando o marido, que distraído assiste à TV. Voltou ao túnel do tempo, recordou do noivado, do vestido de noiva, de como o sorriso dele era maravilhoso e que ela se preparava pra prestar vestibular. O vestibular foi embora e o casamento realizado. Se sente envergonhada, magoada, carente, sozinha.
Amanhã podia começar um romance fora do casamento. Fazer amor, sentir-se amada e realizada... porém, e após a volta?
Antes colocou uma camisola branca, por dentro apenas de calcinha, cabelo solto. Nem tudo perdido.
Procura a mão do marido, faz a dela encontrar. Segura.
Ele a olha sem entender. A fisionomia contente como antigamente. Talvez nunca mudou, ela que mudou o jeito de reparar.
– O que foi? – Ele pergunta.
Sem dizer, abre a camisola e os seios saltam apontados para ele. E ele entende o que significa. Basta amá-la, amá-la muito, pois amanhã, nem se lembraria. Nem lembraria da rotina sagrada...

*  *  *

RODRIGO ARCADIA é natural de São Jose dos Campos, SP. “Fazedor de contos, causos e poesias”, participará de uma antologia de contos fantásticos, ainda em produção. Publica regularmente no site Recanto das Letras. Um de seus contos, O Chá, pode ser lido no volume II da coletânea em EBook 15 Contos+.





Nota: Assumimos que este texto se trata de ficção, ou seja: não se refere a pessoas e fatos do mundo real nem emite sobre eles juízo ou opinião. Ele nos foi enviado para publicação pelo próprio autor, sendo aqui reproduzido conforme o original recebido. É de autoria e inteira responsabilidade do autor, que detêm os direitos autorais sobre o mesmo e não representa, necessariamente, a opinião das editoras e de outros autores do blog.

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terça-feira, 19 de novembro de 2013

Sábado de Aleluia


Por Michele Calliari Marchese

Numa das primeiras semanas santa havida na Campina da Cascavel, o Padre Dimas resolveu instituir a malhação de Judas para o Sábado de Aleluia como uma reflexão à comunidade, discursando belamente sobre as diversas controvérsias que havia a respeito da traição e do suicídio do apóstolo em questão.
O povo que não sabia do que se tratava a dita malhação pediu explicações ao Padre que respondeu ser uma festa que acontecia em todos os lugares e que dava vazão aos sentimentos mais ignóbeis do ser humano. Haveria lá na praça um cadafalso — construído com a ajuda dos homens — e uma corda para enforcarem um boneco de palha, a personificação de Judas Iscariotes.
Depois de tudo entendido, o povo tratou de ajudar a montar os apetrechos para o festejo fúnebre. Quem não gostou nada da história foi o delegado, mas como a turba estava influenciada pelo acontecimento, optou por não chamar ninguém à razão, tampouco o Padre.
Na sua concepção, aquela novidade de malhação poderia trazer inúmeros transtornos a todos porque sempre há aquele que se aproveita dos fatos para externar atitudes de cunho não recomendado.
Ficou de sobreaviso, de revólver na cinta e de tocaia na delegacia.
Chamou mais três compadres para ajudá-lo na empreitada que aceitaram tão logo presumiram que o delegado estava certo em suas conjecturas.
No dia do Sábado de Aleluia a população já estava na praça com o boneco de palha vestido e de sandálias esperando que o Padre iniciasse o dito ritual que ninguém conhecia e que depois que aconteceu o pseudoenforcamento, ninguém gostou. O Padre ficou sozinho junto ao cadafalso vendo que sua ideia tinha sido uma bobagem. Decerto que ali, naquele lugarejo tão pequeno as pessoas não estavam acostumadas e nem concordavam com esse tipo de coisa e o sol esquentou a sua batina e ele recolheu-se ao frio da igreja, deixando o boneco lá enforcado.
Tiraria ele depois, mas esqueceu-se com os preparativos da missa.
No dia seguinte, o Padre encontrou o delegado e outros três homens na praça gritando ordens e pedindo explicações para quem estava passando por ali. Viu com seus olhos incrédulos o boneco jogado ao chão e um corpo pendurado na forca. Ninguém conhecia o falecido, mas deduziram pela indumentária que se tratava de jagunço perdido.
“Bem que desconfiei”, disse o delegado para o Padre escutar. E ficou falando roucamente sobre aquela barbárie ter acontecido por causa de ideias de jumento que só poderiam dar nisso. O Padre se ofendeu em partes. Ficou se culpando e na missa de velório daquele desconhecido pediu desculpas pela tragédia acontecida presumivelmente por sua causa.
O jagunço foi enterrado e o povo desculpou o Padre.
O tempo passou e todo mundo acabou por esquecer o ocorrido até que aconteceu de encontrarem outro enforcado no Sábado de Aleluia do ano seguinte e descobriram tratar-se de outro jagunço foragido e tiveram muito medo que poderia ser que existisse um jagunço fazendo esse tipo de coisa a mando de outrem ou por conta própria para assustar o delegado e a população.
Os anos passaram e sempre que era véspera de Sábado de Aleluia o povo já deixava na praça uma carroça para carregarem um eventual morto que aparecesse naquele dia. Era certo e ninguém descobria como é que apareciam na praça os enforcados já mortos a tiro. Eram todos jagunços e alguns reconhecidos pelos folhetos de “procura-se” que estavam pendurados na delegacia.
O delegado já havia ficado de tocaia a noite toda na praça para pegar o meliante que colocava uma corda em alguma árvore e pendurava o morto e nunca viu ninguém, nem nada nem vulto.
Ele acreditava tratar-se de desova daquele jagunço à mando que esperava um ano inteirinho para depositar os cadáveres — alguns já em decomposição — na praça da Campina da Cascavel. Ou então que esses corpos eram postos ali por várias pessoas já que o assunto dos enforcamentos era comentário nos quatro cantos de Santa Catarina. E então resolveu mandar um telegrama para a capital que colocasse em todos os jornais do Estado informando que aquela pacata cidade não era local de desova e tampouco gostava de enterrar os mortos dos outros.
E no ano seguinte não apareceram mais enforcados na praça em Sábado de Aleluia.

Somente em meados de 1950 no governo de Aderbal Ramos da Silva é que houve a proibição da Malhação de Judas em Santa Catarina em virtude de acontecimentos condenáveis.



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sábado, 16 de novembro de 2013

O Causo da Vassoura


Por Helena Frenzel

Minha avó contava que lá em Fufu Lalau, quando se desejava que uma visita fosse embora, o costume era colocar uma vassoura virada ao contrário atrás da porta. E funcionava mais rápido ainda se fosse posta atrás da porta principal. Outro dia, passeando por uma rua perto de casa, vi uma vassoura virada ao contrário ao lado da porta de entrada de uma casa, e fiquei me perguntando se o fiofó tinha algo com as calças e ao ver a dona da casa trabalhando na porta, preparando as janelas com enfeites para o Natal, só não perguntei o significado da vassoura virada de cabo para baixo com medo dela não entender uma curiosidade tal. A vassoura está assim já há vários dias, vai ver é parte da decoração.

Encucada com a razão da ‘invertida’, chamei a Samara Bassi e ela me respondeu: “É vero! Sempre soube que vassoura atrás da porta é para fazer visita ir embora. Bom, acho que ela quis juntar a comemoração de Natal com a anterior: o Haloween”.

Ao que Ailton Augusto acrescentou: “História interessante essa, mas desconfio que a vizinha realmente não entenderia tal curiosidade. Só para constar, tem outra "receitinha" para espantar as visitas, muito mais discreta aliás: dê um nó em um pano de prato e jogue dentro do forno (desligado, obviamente). “ E dessa do pano de prato, pergunto-me se o nó teria de ser cego ou especial e o porquê do forno  - não serviria o refrigerador? – e o que ocorreria se ao invés de um nó só, déssemos dois, bem apertados?

Então chegou a Tania Orsi Vargas com uma receita literária: “Um dos meus cunhados tinha se mudado para a capital e recebia muitas visitas interesseiras que vinham do interior. Ele descobriu uma forma muito eficaz de espantar os chatos. Pegava o volumaço de A Montanha Mágica, que acho que é do Thomas Mann, e dizia ao outro, abrindo em qualquer parte: “escuta como isso é interessante” e se botava a ler tranquilamente. O chato não demorava a se mexer e dar o fora.”

“Boa!”, estava eu pensando nesta história quando Miriam de Sales completou: “Aqui na Bahia também é assim: com a vassoura; mas o sal no fogo é imbatível”. Mas foi Alice Gomes quem fez a pergunta nuclear: “Quem será que inventou essa da vassoura, hein? Quando era pequena também ouvia isso.” E trouxe outra receita: “E espetar um garfo atrás da porta também.“

“Espetar um garfo atrás da porta?”, pensei comigo, “Mas nem toda porta se pode espetar, não é mesmo?” “Jogar sal no fogo... humm, vou experimentar!” Então veio Lu Narbot tirar-me do intento quase maligno e trouxe-me à razão: “Minha mãe também contava esta história da vassoura. Infelizmente não funciona, ela bem que tentou com um cara chatíssimo que, em pé à porta, dizia que estava indo embora e começava a contar um caso novo!“.

“Olha, isso funciona mesmo. Sério.”, retrucou Ana Bailune, Omar Carmona confirmou e a comadre Michele também. E quando eu já estava pensando em dar nó no causo e deixar a vassoura pra lá, Tania Orsi Vargas pronunciou-se outra vez: “Mas eu lembrei de uma coisa... que a maneira de GUARDAR a vassoura para não entortar as cerdas ou a palha é virando-as para cima. Deve ser por isso que a tal senhora a mantém sempre assim. Então, gurias, isso eu também aprendi: após usar a vassoura guardá-la de cabo para baixo. Há umas que já vêm com um gancho para pendurar, pelo mesmo motivo.”

E daí eu disse: “Sim, Tania, as pessoas guardam as vassouras desse modo, mas geralmente no quintal ou dentro de casa. Acho que a teoria da decoração do Dia das Bruxas é mais provável, ou quem sabe, ela esqueceu. Um dia tomo coragem e pergunto, o mistério da vassoura virada de cabo para baixo e ao lado da porta de entrada há de se resolver!“

E resolveu-se mesmo, pois um dia perguntei não à mulher, mas ao marido: “E essa vassoura, o que faz aí?” “Ah, é minha sogra de visita!”, foi esta a resposta que ele me deu. A vassoura tem tripla função, eis o segredo.

Pois é, viajar de vassoura, além de ecológico, é uma ótima forma de economizar combustível, não?

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Espero que tenham gostado do causo cronicado que a vassoura deu.





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