quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Acabou

Por Vany Grizante

O maço acabou. O dedo (e todo o resto do corpo) tremia, vontade voraz, secura na garganta. Se não achasse a chave da porta, sairia pela janela, não estivesse no décimo andar. Ou, pensando melhor, se caísse poderia ser salvo pela marquise; talvez valesse a pena arriscar.

Mas achou a chave. Deu duas voltas trêmulas e chamou o elevador, que estava particularmente lento naquele dia. Era um elevador antigo, desses burros, que ia para onde o chamavam, independente da ordem de andares. O menino do décimo oitavo fez de novo a brincadeira, adorava apertar todos os botões, os pais achavam uma gracinha. No décimo quinto, uma demora abusiva; ia reclamar ao síndico. Aquela família de cinco filhos, um cachorro e um gato sempre descia com uma enormidade de tralhas e o elevador ficava parado horas no andar. Assim não podia ser.
Finalmente no térreo, o porteiro puxa conversa.

— E aí seu Toledo, melhorou do dedo?

E ria, balançando a gorda pança. Era sempre a mesma brincadeira. Fazia meses que ele havia parado de sorrir quando o porteiro vinha com graça, mas não adiantava. Era um tolo bonachão que não entendia a linguagem de sinais. Mesmo quando, um dia, mais enraivecido que o normal, fez ao espirituoso homem um sinal com os dedos muito claro e universalmente conhecido, ele riu ainda mais, a pança tremendo como gelatina em mesa de pés bambos.

Finalmente na rua, relaxou um pouco. Pôs a mão no bolso para pegar um cigarro mas lembrou-se de que estava saindo exatamente para comprá-los. O relaxamento virou tensão, tossiu freneticamente por conta de uma fumaça invisível e atravessou a avenida fora da faixa de pedestres, que estava muito longe.

O bar do português estava lotado. Bando de vagabundos, meio da semana, cadê o trabalho? A fila no caixa o exasperava. Ao pagar, percebeu que havia esquecido a carteira. O português o olhou desconfiado: sem fiado. Quase saiu correndo com o maço que chegou a resvalar em sua mão ávida. Respirou fundo, tossiu de novo e saiu caminhando muito ligeiro sobre a calçada áspera, parando na beira da faixa de pedestres para esperar o semáforo — e respirar, que o fôlego andava curto.

Nova excursão lenta e angustiante ao apartamento. Abriu a porta, agarrou a carteira e saiu. A descida de elevador foi menos penosa, mas a demora para atravessar a avenida, hora do rush, comeu-lhe parte do fígado. Ao menos desta vez o porteiro nada havia dito.

Quase arrancou da mão do português o maço de cigarros. Ah, a sensação boa de segurar o pacote, abrir o fitilho, puxar o cilindro abençoado... Na porta do bar, acendeu-o. Fechou os olhos, tragando e caminhando lentamente, flutuando pela calçada cheia de pedestres, flanando pela avenida cheia de carros. Hora do rush.

O moço acabou. Causa mortis: politraumatismo com lesão cerebral. Tão jovem! O enfisema estava apenas sendo gestado e o AVC ainda ia levar uns anos...







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5 comentários:

  1. Vany!!! Adorei seu texto! O Toledo Ficou tão distraído com o vício que morreu de outra forma. Acontece. Beijos querida e obrigada por participar!

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  2. Excelente o conto, Vany, narrativa bem conduzida, fluida e muito agradável. Adorei! Beijo

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  3. Faço minhas as palavras de Michele e Celêdian. Uma ótima contribuição para esse desafio literário que foi surgindo sem ninguém planejar, surgiu e foi crescendo, gerando textos muito bons e prazerosos para ambos os lados: para quem escreve e para quem gosta de ler. Amei, Vany! Viva o fumo literário!

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  4. texto muito bom.
    dá pra entender o que se passa no personagem.
    muito bom.

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  5. Bom conto, Vany. O comentário da Michele (estampado aí acima) resume perfeitamente o conto: distraído por um vício o personagem morre de modo imprevisto e você consegue passar isso para o leitor sem sustos, sutilmente. Parabéns!

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