quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Um Quadro na Parede


Por Beatriz Mecking

Morava no casarão — que os vizinhos chamavam de castelo — desde que nascera. Tinha-o visto cheio de gente, avós, pais, tios, primos, empregados. Aos poucos, ele foi-se despovoando, ficando mais vazias as suas peças. E, por fim, sem que quase se desse conta, acordou um dia sozinha. O marido morrera, os outros se haviam dispersado. Caminhou pelo corredor e chegou à sala, velha sala de móveis pesados, onde se destacava um Modigliani. Um Modigliani, não; preferia pensar na Modigliani, a mulher que, com seus olhos rasgados, impunha seu poder sobre o ambiente. Continuou a vistoria pela casa. Subiu as escadas, sem que o olhar se desgrudasse da figura. Aquela mulher parecia-se com ela; melhor, ela se parecia cada vez mais com a Modigliani. (Outra Dorian Gray?...) Passou as mãos pelo rosto, sentiu as angulosidades; deixou os dedos escorrerem pelos cabelos, concentrada. Aquela mulher...
Subiu ao sótão. Ali se haviam amontoado, ao longo dos anos, livros e revistas. Havia livros de arte, revistas estrangeiras, um pouco de tudo naquele esparramo. Vestígios de um tempo de fausto, época em que seus avós conseguiram coisas preciosas para decorar o casarão. Sentou-se a uma mesinha que trouxera para cima — ali estava a máquina de escrever (ainda continuava fiel a ela), papel à disposição, lãs para tricotar, etc. Sentou-se, sem vontade de fazer coisa alguma. Uns restos de sol espremiam-se pela janela, dando um calorzinho ao recanto. Encolheu-se e ficou parada, pensando na limpeza que aquilo tudo estava por merecer. A última empregada fora embora; não sabia se teria recursos para contratar uma nova.
Acendeu um cigarro. E mais outro. O foguinho crepitando para se extinguir... Estava fumando demais. Vender a casa era uma solução. Vender, desfazer-se de tudo, ir para outro lugar. Pequeno, sem passado, em que apenas ela coubesse. Apenas ela; mas, e as recordações? Haveria lugar para as recordações? Ou era melhor que não houvesse? Não saberia responder.
Deitou-se tarde. O sono foi interrompido por alguns sobressaltos. Gritos vagos se faziam ouvir. Foram tão prementes que acordou. Incêndio, pareceu escutar. Incêndio, gritaram com mais força. Ela sentou-se na cama. Já estava bem acordada. Pessoas agitavam-se lá fora.
— Abra! Olha o fogo lá em cima!
Abriu a porta e deixou que agissem. Viu os bombeiros chegarem, acompanhou a operação. O sótão, pensava, meu lugarzinho... E os fósforos? Os cigarros? A dúvida assaltou-a, penetrou fundo: teria sido ela?...

Quando foram embora, fechou a porta com a tranca de ferro. Não se animou a subir. Ficou embaixo, caminhando pela casa, ao léu. Estava um pouco mais vazia, ela própria. Seus olhos pecharam com os da Modigliani: ambas estavam inteiras, por enquanto.



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3 comentários:

  1. Adorei, Beatriz! Obrigada por engrandecer nosso cantinho! Beijos!

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  2. Obrigada, Beatriz Mecking, por ter-me permitido reproduzir este belo texto aqui. Amei!

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  3. Belo conto.
    Casas tem a grandeza de esconder bons mistérios e segredos.

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