terça-feira, 1 de outubro de 2013

Mensagens

 

Por Helena Frenzel

“Tu me espera, Dico?”, gritou a mulher em tom rasgado lá do alto. E lá de baixo em tom tímido o homem respondeu: “espero.” Mas esta parte Odorico já não ouviu. Em vez disso bateu a janela com a raiva de um “para sempre” num jocoso arremedo à voz lodosa da mulher.
Preferia o calor do cômodo àqueles gritos e o alto som das conversas de rua era marca daquele lugar. Ele não se incomodava, mas naquele dia queria concentrar-se e bem preparar-se para as provas. “Que massada!”, resmungava consigo mesmo fitando a foto de Gabo e rabiscando num papel. “Li mil vezes este texto e não tiro sentido. Se até a decrépita disse que não conseguiu encontrar nada... Criminosa, já está mais do que na hora de se aposentar.” E imitando a velha mestra: “Ora, sem isso a literatura perde o sentido: o papel de buscar“. Olhou para Julio pensando no que ela havia dito numa de suas leituras, literalmente: apoderava-se do púlpito, abria os alfarrábios e começava a lê-los de onde havia parado da última vez, sem sequer olhar o público apático, reflexo da obrigação e resignado àquela tortura, e o que mais revoltava Odorico: uma professora de literatura matando nos neófitos toda e qualquer resquício da paixão. “Se pelo menos ela tivesse dito que o papel do literato é buscar sentidos”, seguiu resmungando ao mesmo tempo que tentava pôr ordem nos papéis, ”eu até poderia me calar e deixar o dito pelo não dito, mas buscar falhas? Quem pensa em fazer literatura o tempo todo, quem?” O cigarro de Julio soltava fumaça e o oxigênio no quarto começou a rarear. “Há quem pense que está sempre a fazer literatura toda vez que senta para escrever?” E teve a atenção desviada mais uma vez para as ondas lá de fora que o escudo da janela não pôde conter: “Dico, tu me espera?”, a mulher continuava lá de cima aos gritos e seus pedidos, embora chegassem agora num volume muito menor, nada perdiam no sentido. Odorico desistiu de zangar-se e voltou ao texto. Lembrou-se da aula sobre as mensagens reais. “Será que já leu Borges?”, perguntou com os olhos fixos na fumaça que Julio soltava ou parecia soltar-se de sua foto em forma espiral. A parede azul do quarto não estranhava nada daquilo, aquele era o canto da construção e da desordem, santuário da experimentação. Voltou os olhos para baixo, abriu algumas gavetas sem saber o que buscava. “Mas claro que já leu!”, seguiu falando, “Falar de contos e não falar desse maluco é como falar de aritmética sem as quatro operações.” O conteúdo das gavetas ainda prendiam seu olhar quando: “Ela é uma catedrática. Sabe o que isso significa?” A voz não o perturbou e ele insistiu: “Mas ter lido algo não significa ter entendido. E como os colegas interpretaram La Autopista del Sur me leva a suspeitar de que não tenham entendido mesmo: nem tua proposta nem teus escritos e já não sou mais tão criança a ponto de crer em textos bem traduzidos como regra geral, viste? Não mesmo.”, os olhos toparam com o que procuravam e para lá guiaram as mãos. “Sim, mas que sentido terá este texto, que mensagens?”
“É que às vezes não há mensagens. Foi o que Borges concluiu, não? A gente escreve porque tem algo para escrever e é só isso, soltar o que vai dentro, extravasar, sem mensagem nem intenção nem enredo pronto, sentido ou moral, é brincadeira...”
“Séria...”, Julio atalhou Gabo, “Porque não se quer só escrever; não se quer só passar algo nem passar em branco e mudo no tempo e no espaço das gerações.”
“Mas a literatura perde o sentido sem isso: o papel de buscar sentidos”,  atalhou Odorico virando a cabeça de assalto para o objeto do olhar de Gabo a tempo de ter percebido um cínico riso que Julio guardou.”E o final”, comentou o rapaz, “ é vontade do autor e ponto.”
“Como está abafado aqui dentro, menino, abra um pouco essa janela para refrescar. Estou indo lá embaixo comprar cigarros, volto logo.” A mãe arrancou-o de seus conflitos já tornando a fechar a porta do quarto sem esperar reação. Ela sempre entrava sem bater, e quando batia era só por bater porque três batidas rápidas não davam tempo da pessoa cogitar sequer quem seria que já entrou. “Bateu e já está invadido, tem jeito não...”, disse contrariado e tentou voltar à concentração. Leu uns tantos quantos parágrafos até que foi interrompido por gritos de não-isso-não e um tatitatá e nesse momento levantou-se irado e decidido a tomar um café. Foi até a cozinha. Estava medindo o pó para pôr na máquina quando ouviu a porta do apartamento bater e veio a mãe buscando um isqueiro com um pacote na mão e um cigarro no canto dos lábios. Odorico ligou a cafeteira. “Houve alguma coisa lá embaixo?”, perguntou esperando um nada e já seguindo: “Ouvi uns gritos e um tatitatá.”
“Foi o Raimundico. Estava sentado num banco lá da praça quando veio um carro e pá, matou na hora. Não fui olhar não. O motorista fugiu. Você sabe que eu não gosto dessas coisas, perco o sono depois. Coitado, hoje em dia não se pode nem ficar à toa num banco de praça... mas quando chega o dia... E a Maria? Coitada da mulher...” acendera o cigarro e já havia deixado a cozinha em direção à sala; a última frase enrabichou-se à fumaça que foi atrás. Odorico serviu-se de café numa caneca e voltou para o quarto. Todas as vozes haviam cessado; lá fora e no quarto pairava o silêncio dos gritos e a fumaça da confusão.

* * *

Quem procura, acha. “Para sempre” ele falou. 
No papel se extravasa e a mensagem se constrói.




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6 comentários:

  1. Esse papo entre Cortázar e García Marquez no devaneio de Odorico me agrad, mas há referências que ficaram soltas para mim (a criminosa, por exemplo). Um contorno mais preciso do sujeito que morre e dos ecos da mulher que pede que ele a espere fariam boa moldura. Parabéns, Helena.

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    1. Obrigada, Maurem :-) Suas leituras são sempre muito valiosas para mim, que sou fã dos seus escritos, principalmente dos contos. Sabe que este conto é daqueles que custam a me convencer de que estão prontos para publicar. Briguei muito com ele, discuti com García, Julio, Borges, Odorico e com o morto até. Também com a velha mestra e o crítico interior. A única 'calada' foi a Maria, que perdeu o Dico e a razão dos gritos, e todos perderam para o conto, que bateu o pé e disse: daqui não saio mais, publique-me! Na verdade, uma das coisas que mais gosto na escrita são essas brigas que tenho com o que escrevo na hora de decidir publicar ou não... Mas ainda assim concordo com o observado em seu comentário e digo ao meu conto, em tom fanfarrão: "Eu te disse, eu não te disse?". E ele apenas sorri moleque, e rebate: "Por feedbacks assim, bons, é que eu brigo e insisto em ser publicado". Valeu, Maurem. Seus comentários sinceros e sóbrios são sempre muito vindos em meus textos, você sabe que para mim é um privilégio tê-la por aqui. Grande beijo e até a próxima! :-)

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  2. Seu texto remeteu à labuta do criador diante do que se quer criar, totalmente envolvido pelo complexo exercício de pensar, de questionar, de abstrair as respostas que porventura encontrará em seus devaneios e que exigem total dedicação dos sentidos. Lá fora, alheios à sua necessidade, ninguém pode se dar conta que ele trava consigo a sua guerra interior e cuja estratégia é ouvir de seus interlocutores imaginários, o que eles trouxeram em sua bagagem, das guerras que eles próprios travaram em seus territórios. O ambiente me pareceu tão real, que cheguei a sentar-me diante de Odorico naquele quarto abafado e a fitá-lo, como quem propõe: quer trocar umas ideias? ... rsrsr... somos assim, não? Adorei o texto.

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    1. Puxa, Celêdian Assis, muito obrigada pelo comentário e ainda mais pela experiência viva de leitura que este conto lhe proporcionou. Só por isso já valeu a publicação. Fico realmente muito feliz quando consigo escrever um conto que permite ao leitor viajar por si só, sentir-se inserido no cenário, enfim: essas coisas são difíceis, acho quanto mais nos esvaziamos de 'teorias' ao escrever, mais perto chegamos do coração do leitor. Obrigada de coração e letra!

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  3. O Dico e o Odorico no parágrafo inicial me fizeram reler o conto. Gostei muito do parto de letras. São elas as palavras que se traduzem em linguagem quando precisam ser ditas. Apenas lhes emprestamos os ouvidos, as mãos, a boca, enfim todos os sentidos ou a falta de algum. Adorei. Beijo, Meriam

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    1. Obrigada, Meriam Lazaro, por sua valiosa visita, leitura e comentários (também lá no Recanto). Pois é, Dico e Odorico nasceram de parto sem dor, na verdade foram ditando sua existência em meus ouvidos. Que bom que gostou, pois para falar ao leitor é que também nos entregamos ao escrever e tapamos os ouvidos ao crítico interior. Grande abraço e até o próximo encontro. ;-)

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