segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O GRANDE ESCRITOR




         Acontecia a Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, evento de considerável repercussão realizado todo ano na cidade. Escritores de prosa e verso, editores, jornalistas e críticos especializados, apreciadores de literatura e curiosos circulavam pelas ruas, com seus semblantes mal disfarçados de indiferença, à procura de câmeras e holofotes nacionais e (mais desejáveis) internacionais.
         Naquela noite, todos aguardavam a palestra do premiado romancista Ronaldo Sérgio Botelho, autor de cinco Best Sellers, traduzidos para mais de vinte idiomas e vendidos no mundo inteiro, praticamente. Era também apresentador de um programa televisivo sobre cultura, de boa audiência. Mas deu-se o horário marcado e ele não chegou. Os organizadores tentaram fazer contato, esperaram por mais algum tempo e nada; Ronaldo Sérgio Botelho não compareceu. O que teria acontecido?

         A cena era apavorante! Fotos do cadáver e do local do crime foram fartamente divulgadas nos jornais e internet. Ronaldo estava caído no chão do quarto da pousada em que se hospedara, de braços abertos e levantados, sem camisa, com vários hematomas no rosto e uma tesoura marcada com suas iniciais fincada no peito, vermelha de sangue! Jornalistas tiraram fotos de tudo, os detetives não conseguiram conter sua sanha. Sobre a mesinha, apenas uma xícara suja de café.
         Formou-se um rebuliço na cidade, rompendo seus limites imediatamente e se alastrando por todo o mundo. Um assassinato na FLIP! Mataram o escritor Ronaldo Sérgio Botelho! Quem teria cometido aquele absurdo? Outros escritores, sob gestos e feições de tristeza e indignação, despiam seus pensamentos no secreto da consciência, para exercerem a vileza humana na mais liberta plenitude: uma cronista do público adolescente, com a mesma “espirituosidade” percebida em suas narrativas, poluiu assim o seu silêncio: “espelho, espelho meu, eu sou a melhor e sem precisar de maçã envenenada”; enquanto um famoso romancista repórter pensava: “o prêmio Sapoti do próximo ano será meu”. E outro: “a Editora Subjetiva estava na dúvida entre mim e ele para escrever um tema da coleção Plenas Virtudes; pois a vaga é minha”. O fato é que muitos de seus colegas de ofício sentiam-se livres de um estorvo; a fama de Ronaldo Sérgio Botelho impedia maiores e novos destaques. Trocas de acusações e desconfianças mútuas se disseminaram no meio literário.
         O evento terminou e as investigações permaneceram por mais dois meses, até que uma novidade deflagrou-se na imprensa: o assassino do escritor havia confessado espontaneamente o crime. Tratava-se de Jerônimo da Silva, o secretário de Ronaldo. Eis as declarações que ele deu a polícia e jornais:
         – Trabalho há muitos anos pro seu Ronaldo. Comecei como motorista, depois fui promovido a secretário particular. Ele descobriu que, mesmo com apenas o ensino médio incompleto, eu tinha facilidade no escrever e me propôs que lhe desse meus escritos. Como nunca havia pensado em ser escritor, apesar de gostar de ler e inventar estórias desde moleque, aceitei, já que me pagava muito bem por isto. Com a fama que tinha, graças ao programa de TV, as coisas seriam mais fáceis pra ele. E me emprestou várias obras, sempre me arrumava um livro novo. Aí, passei a tomar mais gosto pela coisa e quando via críticas positivas sobre alguma estória minha, eu me entusiasmava muito. Com o passar do tempo, comecei a  querer assinar meus próprios romances. Quando falei desta vontade pra ele, me chamou de ingrato, de desonesto e tudo mais de ruim. Reclamou da escola cara que pagava pra meus filhos e de um tanto de outros favores que me fazia. Aí, resolvi ficar quieto e continuar escrevendo em nome dele. Foi então que descobri que o maldito tinha tirado a pureza da minha filha de doze anos e abusava da pobrezinha havia um tempão.  Ele já estava na FLIP, quando minha mulher me contou essa história nojenta. A garota criou coragem e confessou tudo. Aí, eu me endoidei. Sabia onde estava hospedado e corri pra lá. Fui eu mesmo que escolhi a pousada num bairro mais afastado, mais deserto, porque ele preferia assim. Entrei sem ninguém notar, bati na porta do quarto, dizendo ser o copeiro e quando abriu, soquei demais a cara do desgraçado, disse que só não o mataria porque não queria ir pra cadeia, mas contaria a verdade a todo mundo, que era um estuprador pedófilo e que eu escrevia os romances, porque ele não sabia escrever porra nenhuma. Estava ainda sem camisa, ainda se vestia pra sair. Foi então que levei um susto com um jato de café quente que o amaldiçoado me jogou na cara e me distraí. O doido veio apontando pra mim a tesoura que sempre levava nas viagens, pra fazer recortes de matérias que por acaso encontrasse sobre ele; mania de gente vaidosa. Estava totalmente descontrolado, me dizendo que até suportaria a condenação por sua fraqueza de macho, mas jamais suportaria ser desmascarado e presenciar meu sucesso como escritor, preferia ser preso por homicídio. Tentei tomar a tesoura dele, nós caímos no chão e como sou mais forte, consegui virar a ponta em direção ao seu peito. Eu estava cego de ódio! E aconteceu o que todos sabem. Fiquei apavorado! Só pensei em fugir dali imediatamente. E saí pela janela.
         O advogado de Jerônimo alegou legítima defesa no tribunal, mas de nada adiantou; ele  foi condenado a muitos anos de prisão. Uma editora sanguessuga até se ofereceu para publicar um romance que poderia escrever enquanto cumpria pena, mas não aceitou. Quanto aos seus livros com a falsa autoria de Ronaldo Sérgio Botelho, foram retirados das prateleiras de livrarias e bibliotecas do mundo inteiro e considerados pela sábia crítica especializada, que tanto os elogiara anteriormente, como abjetos lixos literários.



Texto publicado com a gentil permissão do autor.


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4 comentários:

  1. Quantos ghost writers não gostariam de fazer a mesma coisa, não é? Excelente conto, desfecho surpreendente, valeu a leitura.

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  2. Muito obrigado, Helena. É uma honra estar aqui. Muito obrigado, Lu Narbot. Que bom que gostou.

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  3. Parabéns Marco Aurelio, fiquei aflita durante a leitura e obrigada por enriquecer nosso cantinho!

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  4. Um conto muito bem urdido! Parabéns!

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