segunda-feira, 15 de julho de 2013

O futuro que se foi



Por Michele Calliari Marchese

Houve um dia em que a Neusa passou mal, mas deixou para lá. Não gostava de incomodar ainda mais que o filho que carregava em seu ventre nasceria em pouco tempo. Decerto seriam os males de um parto prematuro.
Não eram dores o que ela sentia, mas sim um desconforto visual. Via luzes explodindo à sua frente e o efeito era tão verídico que quase desmaiou com o susto.  Não acontecia com frequência, mas depois de algum tempo, acabou por acostumar-se.
Dois meses depois, enquanto arrumava as roupas do pequeno que nasceria, as luzes explodiram e em seguida apareceram cenas onde estava somente com os três primeiros filhos. Não aparecia o quarto filho em nenhum momento, e, segurando com as mãos a fralda que dobrava com esmero, presumiu equivocadamente que aquele filho que estava na sua barriga nasceria morto.
Contou seus sentimentos ao marido, que logo foi buscar a parteira. Ela viu, mexeu, ouviu e disse que nada estava acontecendo com a criança e avisou a Neusa que assim que a bolsa estourasse era para mandar um dos meninos chamarem-na.
A bolsa estourou naquela noite e a parteira iniciou o parto sem nenhuma dificuldade, e quando disse à Neusa para dar uma força e não houve resposta, foi que notou a palidez de morte na mãe desmaiada.
Conseguiu tirar o menino com uma pressa de louca, entregou a criança ao pai desesperado que mandou os vizinhos chamarem o padre. Tentou de todo modo e jeito reanimar a Neusa, em vão.
Ela estava quase morta. Quase.  Não fossem as luzes que explodiam em suas vistas.
O marido que entrou no quarto seguido do Padre Dimas chorava muito. O que ele faria sozinho com quatro crianças e sem a mulher que amava? Enquanto o Padre Dimas fazia a extrema unção, o marido, de joelhos pedia que por uma misericórdia, qualquer uma, a deixasse viva para que pelo menos o nascido fizesse anos suficientes para se virar sozinho. Assim, desse modo, e somente depois disso é que ele permitiria a morte da mulher. Pedia em voz alta e quem escutou sofreu de angústia, por não conseguir consolar o homem naquela hora derradeira.
Mas então aconteceu o improvável — deram o ocorrido por obra do pedido do marido — a Neusa estava mais viva que antes e com os olhos abertos, pediu para ver os meninos. Foi uma comoção geral, já que todos estavam lá para velar a pobre.
A Neusa ficou curada. E quem via dizia que o único problema que ficou depois da quase morte era a dificuldade que a Neusa tinha de enxergar. Para ela era difícil locomover-se com todas aquelas cenas passando em frente aos seus olhos, ininterruptamente.
Batia nos móveis, não conseguia trocar a fralda do neném, queimava-se no fogão, e foi tanto acidente que o marido contratou uma mulher que fizesse o serviço da casa e ajudasse a Neusa no que precisasse.
Um dia, não aguentando mais todas aquelas visagens, resolveu contar uma delas ao marido, a que mais lhe incomodava. Contou que tinha visto que no dia do décimo aniversário do pequeno, uma grande festa acontecia numa casa desconhecida. Muitos riam e muitos choravam e assim que o filho assoprou a vela, outras se acenderam dispostas ao lado de um caixão, onde ela repousava num sono de cansaço. E contou mais. Contou que o bolo havia sido cortado por alguém que chamava o pequeno de “meu” enquanto o marido pedia perdão com as mãos grossas em seu peito. E aquilo a sufocava. Sufocava tanto que tinha dificuldades em distinguir as visões da realidade.
E então o marido contou que pedira a ela em seu leito de morte que ficasse um tantinho. Um tantinho mais, para que o ajudasse com a lida dos filhos e pudesse tê-la mais algum tempo.
“Devia ter me deixado ir”, disse ela num assombro que as próprias palavras lhe causaram. E repetiu: “Me deixe ir”.
O marido pediu se eram as visões do futuro que a incomodavam e que por isso queria partir. Ela respondeu que as visões que tinha não eram do futuro, e sim, de seu passado num futuro que se foi.
E o marido, então, com o coração apertado de tanta dor, deixou-a partir.




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