quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Escritora



Por Helena Frenzel

Cento e sessenta quilômetros, cem páginas de um manual. O letreiro acima da porta avisava: aproxima-se o destino e o local. Estava preparado. “O cliente tem sempre razão”. Alberto torceu o pescoço pensando nisso e guardou os papéis; a esquerda arrumou a gravata, a direita buscou o paletó. Já vestido, sentiu o peito vibrando e pensou em taquicardia, mas não passou do celular fino anunciando nova mensagem. “Desculpe a rudeza do meio”, dizia o email, “buscamos outras formas de contato, sem efeito. A Senhora Matoso Pedreiro faleceu esta manhã.” seguidos de uns “sinceros pêsames, favor entrar em contato de imediato para acertos finais”. Pela forma do texto nem precisava ter assinado Ester Loureiro para que ele soubesse que se tratava de uma mulher a serviço da agência funerária. Eram profissionais, como ele. A morte era o negócio e nessas horas eles bem deveriam saber o que fazer. Por isso ele não entendeu. “Que acertos finais? Tudo já não tinha sido pago?”, perguntou-se aborrecido preparando-se para o desembarque. Os trens eram rápidos nas estações não-terminais, teve que apressar-se.

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Nunca! Só sobre o meu cadáver! Nem dinheiro nem ações!”. Alberto lembrou-se da discussão que tivera com a mãe já no conforto do táxi, apartado do frio e serpenteando nas ruas vazias de gente a caminho do hotel. Pegou o celular e buscou o site. Certa vez, passando por uma crise, recebera via email o convite de uma amiga da família, Gilda, para visitar um blog. Poemas e narrativas não preenchiam sua lista de preferências, mas o que ele ali encontrou tanto o incomodou que sem se dar conta tornou-se leitor o mais assíduo. A profundeza na simplicidade dos escritos daquela mulher era para ele um enigma que tentou primeiro entender e, depois, ignorar; mas sempre nos momentos mais críticos, sentia-se compelido a voltar e ler sem pausas, e o mais estranho era o alívio que sentia no final, senão pelo escrito, pelo prazer rasteiro de ter cedido à tentação. Certa feita, sentiu um forte desejo de tomar a escritora nos braços e dar-lhe um sincero beijo de tanto que o texto o comoveu, mas nunca teve coragem de manifestá-lo. A escritora sabia que era lida por muitos, ele pensava, e a ele apetecia saber-se um ponto só nas estatísticas, anonimato total.
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Num misto de impaciência e cansaço não sentiu segurança ao dizer que azul era a cor preferida da mãe, mas achou que tons escuros e opacos bem combinavam com a ocasião. Ester Loureiro tinha uma voz firme porém macia, num tom ameno feminino que poderia interessá-lo, mas Alberto desistiu de compor a cena ao lembrar-se que sua vida em nada casava com o rol de exigências sentimentais, e lhe disse: “Façamos assim, obrigado.” Não maldizia as tantas viagens, gostava muito até. Era uma forma de estar em vários lugares sem pertencer a lugar nenhum. “Ela seria cremada mesmo e no fim: tudo cinza”, ele pensou e “escuro” respondeu desligando, pois a conversa havia terminado bem antes dispensando a praxe social. Resignado pagou a corrida, pegou a bagagem e entrou no hotel.

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Você não conhece sua mãe.” — disse-lhe Gilda ao saber da discussão que tiveram — “Não faz idéia de quem ela é”.
Fala das ações?” — perguntou Alberto.
Sim, das ações” — ela disse, friamente.

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Lembrou-se da escritora e das tantas vezes que ela, com suas palavras universais havia conseguido distrair-lhe a dor. Quando a encontrou, na internet, ficou com nítida sensação de papéis invertidos: ela, escritora; ele, leitor, porém: “Eu não leio seus escritos; é ela quem me lê antecipando o que eu digo e sonho em poder dizer, exatamente”.

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Vendidas.” — Alberto recebeu o anúncio e não soube o que dizer a Gilda. A mãe tinha aquele jeito sorumbático, pouco compartia de suas decisões. Naturalmente ele não a deixaria desamparada, se bem que ela lhe garantira ter mais que o suficiente para viver. Concluiu o curso, abriu a firma. “Certas idéias persegue-se ou elas para sempre perseguirão”. A mãe não o questionou por isso. Simplesmente disse: “Você é capaz”. Com dezoito anos ele havia deixado a casa dos pais para estudar em outro país. A mãe, viúva há um bom tempo, era ainda muito jovem quando ele partiu e não pouco alardeava amar o provinciano e a solidão, que “não é o mesmo que estar só e nada tem de melancólico, é escolha consciente pessoal”, ela dizia. O pai morrera deixando Alberto ainda bebê e em suas lembranças não havia nada da vida com ele, apenas um rosto pintado de fotos e um perfil colado de lembranças alheias.

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Há vários anos Alberto dividia a vida entre clientes, acionistas e reuniões, sobrava tempo apenas no Natal e sonhava com a aposentadoria, quando a vida, de fato, prometia começar. Soube da doença da mãe só quando esta já estava no hospital. Certas moléstias nos pegam desprevenidos, no caso dela nem a genética poderia antecipar. E em menos de um mês estava tudo concluído. Os serviços funerários ela própria havia contratado muito antes, em tempos de lucidez. Sessenta e um anos completaria num próximo maio, morreu em abril.

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Em penumbras e quartos de hotéis Alberto chorou muitas vezes, chorou como um menino que criou corpo e não cresceu, incomodado. De tanto choro, nunca soube a razão. Depois das cinzas e do espólio, Alberto lamentou nunca ter se sentido à vontade para falar de sentimentos com a mãe. Lembrou que quando criança ela perguntava vez em quando: “Você me ama?”, ao que ele sempre negava ou mantinha o silêncio com prazer só para contrariá-la, coisas que as crianças sabem tão bem fazer. Um dia as perguntas cessaram e calaram-se todas as declarações. Ele nunca quis que ela vendesse as ações para ajudá-lo em seus negócios, a essa idéia ele opusera-se feroz. Porém, diante do feito, aceitou de bom grado. Fazer o quê? Conforto material ela sempre teve; como prometera: ele nunca a desamparou.

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O incômodo só crescia quando ele recorria ao site buscando uma palavra de auxílio, um sentido qualquer e nada; há meses, nenhuma publicação. Na falta de novos escritos burilou antigos, mas nada conseguia lhe acalmar. Alí ficara um hiato, uma pausa nas postagens sem qualquer explicação e esse não saber o inquietava e fazia-o checar neuroticamente atualizações. Pela primeira vez sentiu-se órfão, sozinho. Teve certeza. Mas, desta vez, não chorou. “Quatsch!”, a disciplina falou mais alto e a ordem foi trabalhar. A noite foi-se com o sono evadido levando o temor de perder o trem, que sairia a poucas horas, e de perder-se na conta dos cordeiros: centenas de clientes, quilômetros de trilhos, milhões em ações, cem manuais...



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2 comentários:

  1. Helena, que trabalho primoroso vocês têm construído nesse blog. Feliz em fazer parte do seu mundo. Um abraço. Isabel.

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  2. Oi, Helena. Um dia vou ter tempo e cuca fresca para ler mais dos seus textos. Seu carinho de sempre está comigo. Beijos.

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