segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Trancas





Era para ser apenas uma escala em Lisboa, de onde seguiriam para montar a exposição no Museu de Arte Moderna. Adriana e a equipe desembarcaram muito tarde; e a febre contraída em sua passagem pela Inglaterra na visita que fizeram à curadoria do Tate Liverpool contribuiu para a decisão de acomodar-se num hotel da cidade, aproveitar o que fosse possível do dia seguinte e só então rumar de carro para Sintra.
A moça da agência de viagens oferecia opções de conforto e modernidade, mas um calafrio vindo de além da febre ditou a escolha. Seria o prédio antigo ao lado do Museu Nacional de Arte Antiga. Ninguém se opôs.
Rumaram do aeroporto direto para a Rua das Janelas Verdes. Ao avistar a fachada, Adriana sentiu-se convidada a entrar, a ficar, a deixar ali o mal-estar. Preencheu a ficha, despediu-se do marchand e da curadora da exposição e foi para o quarto.
Era uma habitação pequena, mas agradável. Da sacada poderia apreciar a vista do Tejo quando amanhecesse. Não desfez as malas, apenas procurou uma roupa para dormir e algo para vestir no dia seguinte. Não gostava de tomar decisões pela manhã, menos ainda se fosse sobre a indumentária.
Tomou um banho reconfortante e fechou a porta do banheiro para que o vapor não tomasse conta do quarto. Deitou e cobriu-se rapidamente, como se pudesse enganar a febre e deixá-la fora das cobertas, impedindo-a de colar na pele alvorotada pelo jato quente do chuveiro. Inútil. Mais sensato seria tomar um antitérmico No entanto, pensar em se pôr novamente de pé, voltar à névoa do banheiro e vasculhar o nécessaire a desanimava. Relutou um tempo, oscilando entre o sono e a hipertermia, mas deixou a razão determinar o passo. Abriu a porta do banheiro e estancou, forçou os olhos para fazer com que a visão do corredor se dissolvesse. Sabia que se chegasse à frasqueira e tomasse os comprimidos de que estava precisando seria fácil regressar ao conforto da cama.
Esfregar a vista não bastou, Adriana estava mesmo no corredor, e podia ouvir a movimentação dos outros hóspedes, o barulho nas acomodações alheias. Duvidou que fosse tamanha a febre a ponto de fazê-la confundir as portas, mas ali estava, e passos desenhavam sons de sapatos no carpete um pouco gasto. Farejou o conteúdo da bandeja carregada pelo moço que certamente estaria uniformizado. Não chegou a vê-lo, mas ouvia, sentia cheiro de condimentos; adivinhou a aproximação do empregado do hotel empurrando o carrinho com pedidos fumegantes para os interessados em cear ou aquecer-se com um chá e desejava esconder-se dos olores e dos ruídos. Ela também gostaria de um chá assim que regressasse à proteção dos aposentos que lhe cabiam.
O moço uniformizado fez as entregas, e foi engolido pelo elevador. Não a viu porque o quarto de Adriana ficava junto da bifurcação do corredor e, como ela espremeu-se contra a coluna que escondia a entrada do seu apartamento, restara apenas o temor de que a porta tivesse trancado e não pudesse ser aberta por fora. Forçou a maçaneta e escutou o som da dobradiça. Respirando aliviada, esgueirou-se para o outro lado, ainda pensando em algum remédio que aliviasse a febre.
Vestia meias grossas e uma dessas camisetas bem surradas, próprias para dormir ou passar o sábado atirada no sofá sob o cobertor e farelos de pipoca. Os trajes já seriam motivo bastante para não querer ser encontrada no espaço público do hotel, mas o mais grave para Adriana seria explicar o engano. Não gostava da associação comum que muitos dos seus conhecidos faziam entre ser artista e ser excêntrica. Preferia apresentar-se como uma representante do comum, que o inusitado visitasse apenas suas tintas.
Depois do curto alívio de constatar que as maçanetas funcionavam do lado de fora, apoiada na madeira sólida da abertura, deparou-se com a mesma luz amarelada de antes, uma claridade indecisa que tinha gosto de madrugada vazia. Aos poucos deixava o olhar ser invadido pelo discernimento de que à sua direita não estava a esperada penumbra da alcova com a cama ao fundo. Novamente escutava a privacidade escapando dos outros cômodos — enquanto uns manejavam talheres, outros tinham a televisão ligada, talvez outros já dormissem, ou então o quarto estaria vago.
Com a respiração curta e receosa, desconfiava da própria lucidez, e decidiu experimentar a maciez do pavimento. Espreitou o silêncio que vinha do elevador, fazendo grande esforço para conter o impulso de bater em cada porta. Mas que espécie de ajuda poderia obter? Girou sobre as próprias dúvidas e tentou uma vez mais. Inspirou ruidosamente, deixando os pulmões lotados de ar. Com toda a tensão do corpo que isso provocava, agarrou-se à maçaneta com as duas mãos, suspendendo o momento de forçá-la pelo tempo em que resistiu o adiamento da expiração.
Queria ao menos fingir decisão, mas não pôde nada além de manter a porta entreaberta. O recorte que se apresentou a ela reconfortava a ponto de fazê-la rir, pensando em como temera não encontrar os móveis quietos e a janela aberta ao Tejo. Agora confiante, atravessou o umbral e já esquecia a vontade de curar a febre para ir acalmar-se com a vista do rio.  Depois haveria as horas de sono que merecia.
Tomou o cuidado de virar a chave e iniciou o percurso vagaroso até seu alvo. Mas cada passada era como um pingo de solvente sobre o óleo já definido de uma cena. Os móveis pareciam se desmanchar, cedendo sua forma original a outras. Derretiam-se os contornos, a cadeira era agora o extintor de incêndio, a cama subia molemente pela parede até assumir a rigidez metálica da moldura do elevador, e a porta da sacada fechara-se em uma seqüência de alvenaria intercalada por portas idênticas. Recuou para observá-las em detalhe. O entalhe na madeira do marco, o metal da fechadura, a luz débil escapando por baixo de algumas. Nenhum signo do incomum, apenas o frio querendo apresentar-se.
Pensou em descer à recepção, mesmo com a vestimenta inadequada, e pedir ajuda. Poderia contar que havia saído para o corredor por conta de um barulho qualquer, e que a porta se fechara. Acreditava que se houvesse alguém consigo a mobília e a privacidade não se atreveriam a desaparecer do seu caminho para confiná-la novamente na passagem estreita onde desembocavam os outros quartos.
O suor na palma da mão era a sensação mais acentuada imediatamente antes do movimento, arriscava-se, mas já não haveria sobressalto. Não conseguira regressar para sua lucidez exausta, tudo se repetiu com a precisão das vezes anteriores.  Ainda poderia resignar-se e aguardar a alvorada. Durante o dia toda obviedade se restabeleceria, e, no café da manhã, ela desabafaria com os companheiros de viagem, contando-lhes o pesadelo insólito.
Enquanto resolvia sobre aventurar-se ou não pelas escadas, Adriana imaginou como seria a conversa com a curadora. Será que ela lembrava ainda daquele quadro? Insistiria. Era uma sucessão infinita de portas conduzindo sempre ao mesmo cômodo, com a mesma e incansável porta ao fundo, lembra-se, Amanda?
Adriana não atribuía grande valor àquela pintura, e ela não foi o destaque da exposição que acabou acontecendo mesmo sem a participação da artista. Talvez se houvesse um ou outro olhar mais atento à obra fosse possível perceber uma sombra que mudava de lugar, ou de porta, conforme a incidência da luz.  Se um dia houvesse um estudo acurado do fenômeno, surgiriam discussões quanto à natureza dessa sombra. O crítico apaixonado pelo estilo da jovem defenderia tratar-se do vulto de uma mulher amedrontada, certos alunos distraídos não veriam nada além de sutis variações da textura. Adriana, já acostumada com o vagar entre batentes e corredores infindáveis, não faria qualquer argumentação.


Este conto faz parte da Coletânea Pedaços de Possibilidades. Uma resenha minha para esta coletânea pode ser lida aqui.

Maurem, gratas por ter-nos permitido ter este apetitoso ‘pedaço’ de sua escrita também aqui em nosso blog. Volte sempre!
Helena e Michele




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