quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O Incrível Causo do Milho Deitado



Por Michele Calliari Marchese

Esse causo é muito verídico e até hoje acontece de tempos em tempos, mas naquela época era uma coisa muito sensacional e deveras assustadora.
O Fioravante tinha um bonito pedaço de terra, grande até, em que ele plantava de tudo e que o tinha deixado rico. Estava na safra de milho e várias vezes o homem fora visto com lágrimas nos olhos a contemplar a plantação.
O milho crescia maravilhosamente bem e o clima estava ajudando, seria uma das melhores colheitas na Campina e o preço da bolsa fazia com que o Fioravante cogitasse em comprar um Dodge D11, lindo de morrer.
Aconteceu que num entardecer, o Fioravante saiu da plantação mandando beijos ao vento para que o milho sentisse a sua presença de amor, despedindo-se até o dia seguinte que seria o dia em que ele passaria algum produto para fortalecer as plantas.
No dia seguinte lá foi o Fioravante com seus funcionários para a lavoura e o que encontraram deixaram-nos muito desconfiados. Muitos pés de milho estavam deitados como se tivessem sido empurrados ao chão com tal força que não era possível eles voltarem ao normal. Constataram que havia um imenso desenho ali, pois foram percorrendo por cima do milho e fizeram um círculo perfeito. Indo ao centro do círculo havia outro tanto de carreiro de milhos em pé e depois novamente uma grande área de plantas deitadas. Teriam que ver de cima para entender a extensão da coisa.
Subiram num morro longe da área plantada e que Fioravante calculava que daria para ver se não todo, pelo menos parcialmente o que estava acontecendo. Chegaram lá no dia seguinte depois de praticamente abrir a mata à facão e viram vários desenhos de tamanho descomunal, lindos, perfeitos. Mão alguma faria aquilo daquele jeito e em tão pouco tempo.
Extasiado com a situação e diante de tal espetáculo, ele nem se deu conta que os peões já tinham abandonado o local e provavelmente a comunidade inteira estava sabendo do ocorrido, pois que o vizinho já estava lá embaixo pisando no milho deitado com as mãos na boca. Gritava alucinado esse vizinho e então não sobrou alternativa ao Fioravante a não ser ficar por ali e pensar no assunto.
A primeira coisa que pensou foi que o Dodge ficaria para o ano seguinte, se nada mais acontecesse na sua lavoura. Tentou conciliar o sono com o acontecido, mas a balbúrdia era tão grande na plantação que passou a noite em claro.
O acontecido durou mais de uma semana, pois que vinham gentes de todos os lugares. Pisavam em tudo e em pouco tempo não sobrou lavoura de milho em pé para contar a história e para comprar o tão sonhado carro.
Era uma desolação. Aquilo fustigava os nervos do Fioravante até que finalmente se decidiu por um fim em tudo. Pensou duas vezes antes de despejar o conteúdo de um lampião no centro do círculo. Andou para lá e para cá e mediu a passos miúdos o desenho central e lá, exatamente lá, iniciou o fogo destruidor.
Mas aconteceu que o fogo não se alastrava e tampouco diminuía, ficava ardendo em chamas - as mesmas chamas - por um tempo que não soube precisar e pensou que talvez aquela não pudesse ter sido uma boa ideia e foi quando ele começou a pisotear o fogo para apagá-lo que apareceu em cima de sua cabeça e por toda a extensão do círculo uma sombra assustadora. Sem mais, nem menos. Achava que eram nuvens de chuva, mas aí perpassou um frio pela espinha do homem quando levantou a cabeça e deu de olhos num disco voador.
E o Fioravante não se lembrava de mais nada depois disso. Quando levantou, porque estava deitado no centro do círculo, ficou embasbacado ao constatar que as espigas estavam secas e prontas para a colheita e mais lindas do que antes.
Colheu tudo sozinho numa pressa de louco, primeiro porque os peões abandonaram a lida e segundo porque poderia chover se se atrasasse.
Não pensou mais em círculos, em fogo e em discos voadores, a quantidade de milho que colheu foi o dobro do que esperava e agora toda a comunidade vinha ver quão prolífica tinha ficado a lavoura depois do círculo misterioso e trataram de pedir ao Padre que o excomungasse, pois que era sem sombra de dúvidas obra do coisa-ruim.
O Fioravante aceitou a excomunhão com um sorriso nos lábios e os olhos espichados no Dodge D-11 que o esperava na estrada.






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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Trancas





Era para ser apenas uma escala em Lisboa, de onde seguiriam para montar a exposição no Museu de Arte Moderna. Adriana e a equipe desembarcaram muito tarde; e a febre contraída em sua passagem pela Inglaterra na visita que fizeram à curadoria do Tate Liverpool contribuiu para a decisão de acomodar-se num hotel da cidade, aproveitar o que fosse possível do dia seguinte e só então rumar de carro para Sintra.
A moça da agência de viagens oferecia opções de conforto e modernidade, mas um calafrio vindo de além da febre ditou a escolha. Seria o prédio antigo ao lado do Museu Nacional de Arte Antiga. Ninguém se opôs.
Rumaram do aeroporto direto para a Rua das Janelas Verdes. Ao avistar a fachada, Adriana sentiu-se convidada a entrar, a ficar, a deixar ali o mal-estar. Preencheu a ficha, despediu-se do marchand e da curadora da exposição e foi para o quarto.
Era uma habitação pequena, mas agradável. Da sacada poderia apreciar a vista do Tejo quando amanhecesse. Não desfez as malas, apenas procurou uma roupa para dormir e algo para vestir no dia seguinte. Não gostava de tomar decisões pela manhã, menos ainda se fosse sobre a indumentária.
Tomou um banho reconfortante e fechou a porta do banheiro para que o vapor não tomasse conta do quarto. Deitou e cobriu-se rapidamente, como se pudesse enganar a febre e deixá-la fora das cobertas, impedindo-a de colar na pele alvorotada pelo jato quente do chuveiro. Inútil. Mais sensato seria tomar um antitérmico No entanto, pensar em se pôr novamente de pé, voltar à névoa do banheiro e vasculhar o nécessaire a desanimava. Relutou um tempo, oscilando entre o sono e a hipertermia, mas deixou a razão determinar o passo. Abriu a porta do banheiro e estancou, forçou os olhos para fazer com que a visão do corredor se dissolvesse. Sabia que se chegasse à frasqueira e tomasse os comprimidos de que estava precisando seria fácil regressar ao conforto da cama.
Esfregar a vista não bastou, Adriana estava mesmo no corredor, e podia ouvir a movimentação dos outros hóspedes, o barulho nas acomodações alheias. Duvidou que fosse tamanha a febre a ponto de fazê-la confundir as portas, mas ali estava, e passos desenhavam sons de sapatos no carpete um pouco gasto. Farejou o conteúdo da bandeja carregada pelo moço que certamente estaria uniformizado. Não chegou a vê-lo, mas ouvia, sentia cheiro de condimentos; adivinhou a aproximação do empregado do hotel empurrando o carrinho com pedidos fumegantes para os interessados em cear ou aquecer-se com um chá e desejava esconder-se dos olores e dos ruídos. Ela também gostaria de um chá assim que regressasse à proteção dos aposentos que lhe cabiam.
O moço uniformizado fez as entregas, e foi engolido pelo elevador. Não a viu porque o quarto de Adriana ficava junto da bifurcação do corredor e, como ela espremeu-se contra a coluna que escondia a entrada do seu apartamento, restara apenas o temor de que a porta tivesse trancado e não pudesse ser aberta por fora. Forçou a maçaneta e escutou o som da dobradiça. Respirando aliviada, esgueirou-se para o outro lado, ainda pensando em algum remédio que aliviasse a febre.
Vestia meias grossas e uma dessas camisetas bem surradas, próprias para dormir ou passar o sábado atirada no sofá sob o cobertor e farelos de pipoca. Os trajes já seriam motivo bastante para não querer ser encontrada no espaço público do hotel, mas o mais grave para Adriana seria explicar o engano. Não gostava da associação comum que muitos dos seus conhecidos faziam entre ser artista e ser excêntrica. Preferia apresentar-se como uma representante do comum, que o inusitado visitasse apenas suas tintas.
Depois do curto alívio de constatar que as maçanetas funcionavam do lado de fora, apoiada na madeira sólida da abertura, deparou-se com a mesma luz amarelada de antes, uma claridade indecisa que tinha gosto de madrugada vazia. Aos poucos deixava o olhar ser invadido pelo discernimento de que à sua direita não estava a esperada penumbra da alcova com a cama ao fundo. Novamente escutava a privacidade escapando dos outros cômodos — enquanto uns manejavam talheres, outros tinham a televisão ligada, talvez outros já dormissem, ou então o quarto estaria vago.
Com a respiração curta e receosa, desconfiava da própria lucidez, e decidiu experimentar a maciez do pavimento. Espreitou o silêncio que vinha do elevador, fazendo grande esforço para conter o impulso de bater em cada porta. Mas que espécie de ajuda poderia obter? Girou sobre as próprias dúvidas e tentou uma vez mais. Inspirou ruidosamente, deixando os pulmões lotados de ar. Com toda a tensão do corpo que isso provocava, agarrou-se à maçaneta com as duas mãos, suspendendo o momento de forçá-la pelo tempo em que resistiu o adiamento da expiração.
Queria ao menos fingir decisão, mas não pôde nada além de manter a porta entreaberta. O recorte que se apresentou a ela reconfortava a ponto de fazê-la rir, pensando em como temera não encontrar os móveis quietos e a janela aberta ao Tejo. Agora confiante, atravessou o umbral e já esquecia a vontade de curar a febre para ir acalmar-se com a vista do rio.  Depois haveria as horas de sono que merecia.
Tomou o cuidado de virar a chave e iniciou o percurso vagaroso até seu alvo. Mas cada passada era como um pingo de solvente sobre o óleo já definido de uma cena. Os móveis pareciam se desmanchar, cedendo sua forma original a outras. Derretiam-se os contornos, a cadeira era agora o extintor de incêndio, a cama subia molemente pela parede até assumir a rigidez metálica da moldura do elevador, e a porta da sacada fechara-se em uma seqüência de alvenaria intercalada por portas idênticas. Recuou para observá-las em detalhe. O entalhe na madeira do marco, o metal da fechadura, a luz débil escapando por baixo de algumas. Nenhum signo do incomum, apenas o frio querendo apresentar-se.
Pensou em descer à recepção, mesmo com a vestimenta inadequada, e pedir ajuda. Poderia contar que havia saído para o corredor por conta de um barulho qualquer, e que a porta se fechara. Acreditava que se houvesse alguém consigo a mobília e a privacidade não se atreveriam a desaparecer do seu caminho para confiná-la novamente na passagem estreita onde desembocavam os outros quartos.
O suor na palma da mão era a sensação mais acentuada imediatamente antes do movimento, arriscava-se, mas já não haveria sobressalto. Não conseguira regressar para sua lucidez exausta, tudo se repetiu com a precisão das vezes anteriores.  Ainda poderia resignar-se e aguardar a alvorada. Durante o dia toda obviedade se restabeleceria, e, no café da manhã, ela desabafaria com os companheiros de viagem, contando-lhes o pesadelo insólito.
Enquanto resolvia sobre aventurar-se ou não pelas escadas, Adriana imaginou como seria a conversa com a curadora. Será que ela lembrava ainda daquele quadro? Insistiria. Era uma sucessão infinita de portas conduzindo sempre ao mesmo cômodo, com a mesma e incansável porta ao fundo, lembra-se, Amanda?
Adriana não atribuía grande valor àquela pintura, e ela não foi o destaque da exposição que acabou acontecendo mesmo sem a participação da artista. Talvez se houvesse um ou outro olhar mais atento à obra fosse possível perceber uma sombra que mudava de lugar, ou de porta, conforme a incidência da luz.  Se um dia houvesse um estudo acurado do fenômeno, surgiriam discussões quanto à natureza dessa sombra. O crítico apaixonado pelo estilo da jovem defenderia tratar-se do vulto de uma mulher amedrontada, certos alunos distraídos não veriam nada além de sutis variações da textura. Adriana, já acostumada com o vagar entre batentes e corredores infindáveis, não faria qualquer argumentação.


Este conto faz parte da Coletânea Pedaços de Possibilidades. Uma resenha minha para esta coletânea pode ser lida aqui.

Maurem, gratas por ter-nos permitido ter este apetitoso ‘pedaço’ de sua escrita também aqui em nosso blog. Volte sempre!
Helena e Michele




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domingo, 24 de fevereiro de 2013

Por que os ETs sumiram?



Por Michele Calliari Marchese

Depois de um pouso bem sucedido na Comunidade de Toldo Velho na cidade de Ipuaçú em 2.008, os ETs fizeram uma reunião na Nave mãe e resolveram de comum acordo fazer uma pequena avaliação do trigo que esperava a colheita numa área de terra próxima à cidade de Xanxerê.
Os capitães das naves de reconhecimento estavam nos preparativos finais, executando os comandos para que os terráqueos ficassem alheios ao que acontecia no céu. Uma espécie de lacuna no tempo, como se a pessoa “dormisse” ou tivesse um “branco”, um lapso de memória durante o tempo que precisariam para realizar seus objetivos.
E seus objetivos não podiam ser mais claros: coletar o máximo de gases dos grãos de trigo para fazer uma espécie de cerveja alienígena e com ela abastecer a grande Copa Intergaláctica do Século XX.
Século XX?
Sim! Em meus estudos mais profundos, deduzi que estamos com um déficit de no mínimo 23 anos por conta dos dias terrenos. O solstício de inverno não é mais no dia 21 de junho como é pregado e sim bem posterior a isso. Desde 2.008 passo o dia 21 contando as horas de iluminação solar para descobrir parvamente que não foi o dia mais curto do ano, como sempre desconfiei.
Mas passemos aos UFOS.
Enquanto os capitães estavam aquecendo os motores de suas naves de reconhecimento, os cientistas estudavam a combinação numérica do acontecimento para que os gases tivessem mais teor no momento da sugação.
Um extraterrestre que comandava o rádio acabou dando as instruções finais aos pilotos para que se desprendessem da Nave Mãe, com cálculos adiantados e errôneos, pois os cientistas ainda não tinham terminado de computar os dados precisos.
Os pequenos discos saíram dos casulos e começaram a percorrer a área do plantio quando, no momento da lacuna temporal, encontram diversos terráqueos portando um instrumento rudimentar e estavam naquela área de terra fazendo um círculo grotesco.
Enquanto eles estavam em branco, os pilotos comunicaram-se imediatamente com os cientistas da Nave Mãe que exigiram saber o porquê da empreitada ansiosa sem o aval deles. Mas os oficiais falaram todos juntos e acabaram por sintonizar na mesma onda de rádio as seguintes palavras já traduzidas do ufolês: “Abortaremos a missão, abortaremos a missão. Invasão não prevista de terráqueos. Retorno à Nave Mãe imediatamente.”
A Nave Mãe que estava a poucos metros do local onde seria feita a coleta dos gases, recebeu suas máquinas de volta, abriu a lacuna temporal e aguardou. Estavam curiosos.
Aquelas pessoas trabalhavam de uma maneira brutal, estavam com os dentes a mostra em sinal de felicidade e diziam coisas inaudíveis e ininteligíveis. Quando terminaram foram embora dando tapinhas nas costas uns dos outros.
A Nave Mãe continuou aguardando, pois estavam curiosos, era uma atitude muito diferenciada de tudo aquilo que já tinham visto em outras tantas galáxias. Pegavam os grãos somente no planeta Terra, as outras matérias primas conseguiam em outros planetas, como o pó tóxico dos anéis de Saturno muito usado para a cura dos males do nervo ciático.
Amanheceu e o Objeto Voador Mãe acionou um dispositivo de invisibilidade e antiferrugem pois o sol descascava o material usado na parte externa da nave e ficou à espreita. Viram os terráqueos daquela mísera cidade prestigiando a ação dos trabalhadores da noite anterior. Destruíram toda a plantação de trigo e deixaram um rastro de sujeira por onde caminhavam. E muitos deles diziam que era obra de um tal de demônio.
Os habitantes da Nave Mãe passaram o dia escondidos. Sumiram no espaço somente quando a noite ia alta. Nem abriram a lacuna temporal porque esqueceram.
O que os cientistas alienígenas descobriram naquela noite, que ficaram tão bravos quando as naves de reconhecimento saíram sem o consentimento deles?
“Que sem combinação e organização não se faz Copa Intergaláctica.”
Desse modo transferiram o evento para o próximo século marciano, sem data prevista.





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