quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Firmino e o Fim do Mundo



Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu quando o Firmino ainda era menino de seus 14 anos, e fez um rebuliço danado por causo de um sonho que teve. Saiu gritando porta afora, seguido de sua prestimosa mãe que tentava a todo custo calar-lhe a boca. Chorou e gritou tanto que o povo da Campina da Cascavel se aglomerou em volta do rapaz a perguntar-lhe o que havia acontecido, e o Firmino com voz chorosa disse que tinha sonhado com um andor, carregado por seis pessoas que tinham a catástrofe em seus olhos e mais seis visionários.
Algumas mulheres que estavam por ali se olharam assustadas e o Padre Dimas fazia o sinal da cruz de cabeça baixa e muito preocupado.
Firmino contou mais, contou que não conhecia a santa que seguia em cima do andor e que carregava um manto envolto na cabeça com uma frase que lhe pegava de um lado ao outro e que dizia: “O fim do mundo está próximo”. E quando terminou de lembrar sobre essas palavras apocalípticas, voltou a chorar com todas as suas forças.
A grande maioria das pessoas que estavam em volta de Firmino, começou a caminhar lentamente em passinhos silenciosos e febris em direção à Igreja e levaram o rapaz que, sem saber como e nem por que, encontrava-se dentro do átrio com o Padre Dimas a encabeçar a turba. Logo, todos se sentaram e Firmino continuou em pé.
Tinha que dizer algo, porque as pessoas que estavam ali careciam de respostas. Virou a cabeça e olhou todas as pessoas e então ele se arrependeu amargamente de ter contado o sonho e num relance viu as proporções que seu rompante havia atingido. Agora era tarde demais e viu o olhar de sua mãe, num canto da capela a auscultar-lhe o coração, infligindo mais culpa ainda em sua pobre alma assustada.
Fechou os olhos e começou a rememorar o sonho. Contou de novo e com mais detalhes sobre o andor e sua santa, contou sobre as doze pessoas que o carregavam e seus olhos assustadores. Contou sobre o manto. E lembrou que também estava escrito alguma coisa a mais e que não era no manto, mas que estava em algum outro lugar por ali, como se fosse uma data.
A data para o fim do mundo?
O Padre Dimas que tinha a cabeça baixa a escutar o rapaz, levantou de sobressalto e procurou fazer com que Firmino não continuasse em suas premonições, pois que aconteceria outra catástrofe, e pior que aquela que estava sendo anunciada.
Mas a população curiosa e interesseira não permitiu que o Firmino saísse de lá sem dizer quando, onde e por que. Até o Padre em seu íntimo tinha uma vontade incontrolável de saber quando aconteceria o fim do mundo. Só a mãe do rapaz que saiu da igreja sem mais nem menos, porque não queria saber de nada, porque queria seu filho de volta em casa, são e salvo e sabia também que dependendo do que ele responderia, poderia ficar com uma fama para o bem ou para o mal para o resto da vida e sofreria decerto com as muitas maledicências.
Mas o Firmino não arredou pé da igreja, nem quando a mãe num gesto muito rápido pediu a ele que fosse junto com ela para casa. E ele continuou com seu sonho premonitório dizendo a uma população assustada que naquele dia fatídico, aquele do fim do mundo, todos saberiam quando seria porque seria o dia em que todos reconheceriam de peito aberto a morte, escutaríamos as estrelas suspirando, a Lua dando cria e um portal de luz sendo aberto para visitarmos nossos outros eus em outras esferas. E que no dia vinte e um de dezembro de 2012 aconteceria tudo isso e todo mundo saberia em seu íntimo todos os segredos do céu e da terra e conheceria finalmente o Criador, que vinha pilotando uma máquina voadora gigantesca para nos dizer coisas sobre a água. E Firmino não parou mais.
Não se soube se foi o verbo empregado no discurso, ou se pelos absurdos de outros “eus”, mas o fato é que Firmino ficou sozinho na igreja.
Ele não foi taxado de nada como sua mãe tinha suspeitado muito pelo contrário, elogiavam a criatividade do garoto e pediam vez ou outra se ele tinha mais histórias a contar. E Firmino seguiu a sua vida sem esquecer nunca do sonho que tivera.
Hoje, com 96 anos conta os dias com um frenesi de louco porque todos os que escutaram seu relato há 82 anos estão mortos.
E espera sozinho o fim do mundo, porque todas as noites ele escuta as estrelas suspirando e isso o irrita.



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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O Encontro



Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu quando a Dona Maria reencontrou uma pessoa há muito tempo esquecida. No início ficou contente que essa pessoa a reconheceu depois de quase quarenta anos, mas depois foi entristecendo de tal forma que a despedida foi um alívio.
A Dona Maria era uma mulher muito feliz e extrovertida, e quando retornou para casa, depois daquele fatídico encontro improvável, tudo mudou; inclusive a forma leve que ela via e vivia a vida transformou-se de tal forma que seu sorriso raramente era visto.
Não podia simplesmente culpar o ocorrido pelo que sentia dentro de sua alma, lá no fundo do peito ela achava que era uma confusão passageira e que essa tristeza era a soma de todos os dias de sua vida. Passaria, decerto.
Porém, não passou.
Daquela infelicidade que brotou durante os cinco minutos de conversa — o que pareceu uma eternidade — veio a incapacidade de levar a vida adiante. Nem o marido que tanto amava e os filhos queridos conseguiam transpor a tristeza com a vivacidade familiar.
Dona Maria, taciturna e paradoxalmente leve, pediu ao Padre Dimas que a ouvisse em confissão, para ver se alentava o coração e voltava a ser como era antes, mas o Padre Dimas nada podia fazer diante do desabafo e sugeriu que esquecesse de uma vez por todas do encontro e daquela pessoa. E isso só poderia acontecer por vontade própria, por luta interior.
Aconteceu que a Dona Maria acabou gostando de não ter que lutar contra nada e decidiu deixar que as águas rolassem, assim como suas lágrimas, calmamente e sem desejos. Engolia com sofreguidão cada uma que escorria pela face indo cair nos cantos de sua boca.
Pensava nesses momentos que aqueles cinco minutos poderiam ter sido de beijos, aqueles beijos roubados e escondidos que tinham o sabor da juventude e da maciez carnuda, deixados para trás sem eira nem beira. Passava em seguida a mão pela boca, para afugentar tais pensamentos e limpar possíveis resquícios do que sobrou daqueles beijos. Sentia ainda a urgência dos cinco minutos. Foram mesmo cinco minutos?
Deitou em sua cama com o sol a pino, sob os olhares atentos da família. Trancou a porta. Passou a mão direita pelo pescoço e tirou uma corrente de ouro, colocando sobre a mesinha. Refez o ritual e tirou os brincos, colocando-os ao lado do colar. Fechou os olhos.
O sutiã apertava e o ar estava lhe faltando. Resolveu ficar nua.
Tirou o esmalte vermelho das unhas, tomou um banho e tornou a deitar. Agora sim. Estava nua de fato, nua na carne e nua na alma.
No quarto de um casamento de quase 45 anos, Dona Maria dormiu.
Sonhou com o encontro que nunca deveria ter acontecido, sonhou com as roupas espalhadas no chão, suas e dele. Olhou atentamente e não reconheceu as vestes do marido. Eram do outro. Aquele do encontro, aquele dos beijos. Aquele que veio com o verão e se foi como o outono. Aquele que impossivelmente seria o pai do seu primeiro filho. E sonhou também com um rompimento que fazia doer-lhe o coração. Rompeu com a vida.
Acordou com as batidas insistentes na porta e o marido, visivelmente preocupado, estava chorando. Vestiu-se sem pressa, destrancou a porta e deixou o amor entrar.



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domingo, 20 de janeiro de 2013

Pintou as unhas de vermelho e foi para a horta



Por Michele Calliari Marchese

Joana era uma daquelas mulheres extremamente apaixonadas pelos prazeres que a carne oferece. Namoradeira que só ela, dizia que o meretrício era para as putas e condenava a cobrança de tão caro prazer. Não se apaixonava nunca pelo homem que aparecia, mas pela carne que se apresentava, viril, quente. A cada um recebia de uma forma diferente, conforme ela via a personalidade do homem que se apresentava, ela se vestia ora de modo jovial, ora clássico, ora arrebatador. Cuidava da aparência com desvelo e suas mãos eram as que recebiam cuidados redobrados, suas unhas eram pintadas de rosa — uma discrição que se concedia — para acariciar seus homens prazerosamente. Recebia-os em sua casa, cujo endereço ela distribuía aos quatro ventos, e até mesmo muitos homens que ela nem conhecia e tampouco havia encontrado em algum momento já sabiam onde ela morava. Mesmo sendo uma casa pequena, a decoração era de todos os gostos, todos se sentiam bem por lá.
Mas acontece que chegou um daqueles dias que ninguém espera e que estarrece com o hálito quente e doce as diabruras do amor.
Djalma chegou com o mormaço do verão, numa tarde de suor, tocou a campainha da casa errada — a dela — para procurar um cliente de sua empresa. Não escondeu a admiração por curvas tão voluptuosas, e aceitou de pronto aquele convite insano para entrar.
Djalma tornou-se frequentador assíduo da casa.
Joana tornou-se escrava daqueles momentos e não aceitou mais nenhum encontro.
Mas acontece que chegou um daqueles dias que ninguém espera e aquele grande amor, que afoga a garganta de tão louco e intenso, abandona os abraços nus, deixa de lado os quadris e mata o sentimento de posse. Djalma se foi.
Joana não podia conceber a possibilidade de que as tardes quentes de mormaço mole estariam vazias, assim como suas carnes que não teriam o gosto do sal do amor urgente com Djalma. Ficou doente do amor abandonado e escorraçado, ligou, ligou e exigiu a presença do amante com pressa, com a urgência para um último adeus, o adeus da cama, dos beijos, do orgasmo e da calma do depois.
Djalma foi com a canalhice dos amantes que cansam de suas presas e entediado esperando os soluços chorosos da mulher descartada.


* * *



Quem ligou para a polícia foi uma vizinha — a manicure — que estranhou o silêncio de Joana e as faltas masculinas da casa. Estranhou o fato de que Joana pediu para que ela pintasse suas unhas de vermelho porque o homem de sua vida viria para ficar. Depois aquele cheiro putrefato que exalava do terreno vizinho.
Num sábado chuvoso de muito frio, a polícia e os bombeiros encontraram o corpo de um homem enterrado superficialmente no terreno. Estava irreconhecível. Na casa, Joana jazia nua em sua cama, as mãos cruzadas escondendo os seios e mostrando o vermelho vivo de suas unhas na carne branca e pálida da morte.





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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Ultimate Diluvium* ou O Bígamo Naufragado



Por Michele Calliari Marchese

Oras, todo mundo sabe da catastrófica localização geográfica da Campina da Cascavel de modo que não seria novidade alguma o grande aguaceiro acontecido no início do século passado.
Começou quando a Dona Silvia estendia as roupas brancas do marido no varal de bambu. Fazia um calor dos diabos e não tinha vento.
Era um mormaço que vinha de baixo, da terra, e que não dava tréguas ao suor que escorria pelas pernas, cuja saia estava feita em um nó próximo aos joelhos para suportar o calor da lavação. Estava tão cansada e traída que acabou tendo uma vertigem e caiu de costas no chão quente. A luminosidade não permitia que abrisse os olhos, mas com as mãos postas no rosto pôde vislumbrar as nuvens escuras e grossas que avizinhavam.
Levantou num ímpeto, desamarrou a saia e saiu correndo pegar a ramagem benta pelo padre e queimá-la na frente da futura tormenta.
Toda vez que saía da casa tinha que acender a chama na ramagem no fogão a lenha — um vento tépido lhe soprava e apagava o fogo. Assim foram repetidas vezes, tantas que não percebeu que os ramos bentos já se tinham extinguido durante o entra e sai. Bufou e foi recolher a roupa do marido que estava seca.
As nuvens carregadas e ameaçadoras estavam cada vez mais perto e ela não tinha mais com o que benzer, mas decerto que alguma vizinha já estava fazendo o que ela não conseguira fazer. Tranquilizou-se e notou a falta de um dos tamancos do marido. Onde estaria? E começou um vento que ventava metade para baixo quente e metade para cima, frio. Não sabia que sensação agradável — porém doída nas orelhas — era aquela que experimentava naquele momento. Sentiu uma precipitação dentro de si, uma vontade de largar tudo e ir com o vento, mas lembrou-se do tamanco desaparecido e voltou a si. O marido precisaria do sapato, pois só tinha aquele.
Agachou-se para procurar, em vão. Além das saias que levantavam com o vento, as roupas secas insistiam em sair dos braços e seus cabelos já estavam desgrenhados a ponto de Dona Silvia não saber mais em que pensar: se na traição, se no sumiço do tamanco, se no desembaraçar dos cabelos ou na tormenta que estava prestes a cair.
Pior mesmo era a desaparição do tamanco do marido.
O homem era um atormentado. Era exigente demais, chato demais, e ainda por cima o dito era bígamo. Bígamo. Foi a comadre que contou num sussurro e Dona Silvia levou quase um mês para saber o que “bígamo” significava, e quando soube levou um susto tão grande que não quis nem saber quem era a outra. Ficou pensando e pensando e pensando e agora com o tamanco sumido, poderia lhe atirar na cara a bigamia. Que tivesse perdido o tamanco na casa da outra e voltara com um pé no limpo. Que fosse lá e que ficasse em definitivo.
Mas não. Voltou com os dois pés, sujos, dentro dos dois tamancos, também sujos, para que ela e não a outra lavasse os bandidos. Resolveu jogar o par limpo fora, no rio, naquela parte bem funda. Mas o maldito boiou e veio tal qual terneiro a mamar na teta, devagarzinho que dava ódio.
Resolveu cavar um buraco e enterrar o calçado. Largou as roupas que saíram voando em redemoinho. Tentou agarrá-las, mas o buraco era mais importante.
Enterrou o tamanco do bígamo o mais fundo que pôde e foi para casa suja, com poeira a lhe arder os olhos e com a alma lavada. Sentia que podia tudo, até com a borrasca que desabaria em seguida. As nuvens estavam bem acima de sua cabeça e havia anoitecido sem ela perceber. Só notou que os cabelos caíram em seus ombros como uma assombração; o vento tinha parado.
Justamente nessa hora o marido chegou a reclamar dos tamancos. Ela deu uma última espiada para o tempo e disse ao marido que os sapatos estavam secando em cima das pedras do rio e que ele podia pegá-los se quisesse, pois que ela estava atrapalhada com as roupas.
No mesmo instante que os dois cruzaram a porta, ela quando entrou e ele quando saiu, ele percebeu que não havia roupa alguma nos braços da mulher, mas duvidou, porque naquele exato momento a porta se fechou a tranco e a tempestade desabou. Não via nada nem a um palmo do nariz. Era desesperador.
Dona Sílvia exclamava prazerosamente em cada janela que fechava: “Enfim, o dilúvio”. E o bígamo que corria naufragando e cego pela chuva sempre atrasado a chegar às janelas, sufocava com a água que caía ininterruptamente tentando dizer “me deixe entrar”.


*Do latim: “finalmente, o dilúvio”.





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