segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A Novena


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem por essas bandas.

Foi tão assustador e verídico, que foi contado aos filhos dos filhos da Campina. Passou-se 90 anos e ainda causa arrepios. Credo!
Aconteceu na semana de finados quando o Padre Dimas começou a novena no dia 25, uma sexta-feira.
Como todo mundo sabe, a novena é dividida em nove dias, e naquele primeiro dia apareceu na igreja uma gente estranha que não era conhecida de ninguém. Ficaram em pé na entrada, vestiam roupas muito simples e tinham as cabeças baixas. Ninguém conseguia ver os rostos. E o Padre Dimas começou:
“Hoje, traze-me a humanidade inteira...”
E o povo que estava lá, olhou imediatamente para trás, pois parecia que as pessoas estranhas na entrada eram a própria humanidade inteira proferida pelo Padre.
“... especialmente todos os pecadores...”
Olharam para trás de novo.
“...e mergulha-os no oceano da Minha misericórdia. Com isso Me consolarás na amarga tristeza em que Me afunda a perda das almas.”
A Dona Iraci imediatamente ajoelhou-se e começou a rezar seguida das outras mulheres, dos homens e das crianças da Campina. Havia certa comoção, certo alerta durante toda a novena, e o Padre ficou feliz em ver todas as almas tão compenetradas, mesmo aquelas estranhas. Quando terminou a novena ninguém mais viu aquela gente que estava lá.
Durante todos os dias da novena, apareceram crianças sem pais, velhos, doentes e toda a sorte de pessoas desconhecidas, simples e cabisbaixas. E sempre à porta da entrada.
No quinto dia da novena, no dia 29, o Padre Dimas começou:
“Hoje, traze-Me as almas dos cristãos separadas da unidade da Igreja e mergulha-as no mar da Minha misericórdia.”
Em vez do habitual “Amém”, ouviu-se Dona Iraci chorando na primeira cadeira, em frente ao padre. É que ela tinha a certeza absoluta de conhecer uma das gentes que estavam na entrada. “Parecia-lhe alguém, alguém a quem amou”.
Naquele dia muitos choraram a lembrar de seus mortos e o Padre Dimas encerrou a novena, comovido.
E assim sucedeu até o oitavo dia da novena, quando a Dona Irma e o Seu Olice, que chegaram um pouco atrasados, juraram ter visto o jagunço Angelin – já morto – na entrada da igreja com a sua habitual capa preta.
“Hoje, traze-Me as almas que se encontram na prisão do Purgatório e mergulha-as no abismo da Minha misericórdia.”
Como o Seu Olice já tinha comentado com os outros sobre as suas impressões na entrada da igreja, todo mundo tratou de olhar para trás logo que o padre começou a novena, mas o que viram foi um vulto fugido, como o tinha sido Angelin em vida.
Ninguém mais queria ficar na igreja e todos pediram ao Padre Dimas que trocasse de novena, pois que esta estava atraindo almas do outro mundo, ao que o padre respondeu que só tinha conhecimento daquela, mas não teve negociação, todos foram para casa assustados e arrepiados, alguns correndo e esquecendo seus cavalos.
No nono e último dia da novena que seria realizada no Cemitério às oito horas da manhã em honra ao dia de Finados, o padre tinha sérias dúvidas quanto ao aparecimento do povo por lá, mas surpreso, encontrou as beatas encasacadas a acender as velas na Cruz Mestra e uma multidão que vinha aparecendo pela estrada.
O padre, que de cabeça baixa, já a rezar, postou-se em frente a Cruz Mestra e de olhos fechados disse:
“Hoje, traze-Me as almas tíbias e mergulha-as no abismo da Minha misericórdia.”
Finda a novena, o padre abriu os olhos e não viu ninguém.
Nem o povo tão seu conhecido, tampouco as gentes que estavam por lá e aquelas que estavam chegando. Olhou para a Cruz Mestra e não encontrou nenhuma vela acesa e nenhuma das beatas.
Ficou muito assustado, começou a rezar, acender velas e a benzer as tumbas quando viu chegarem pessoas tão suas conhecidas: o povo da Campina!
E o padre não entendeu nada e perguntou por que não tinham aparecido às 8 horas para a Missa e a novena e o povo respondeu como num pacto com o além:
“Mas ainda nem é oito horas seu padre.”


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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O Causo do Tio Antero


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem por essas bandas.


Aconteceu num domingo, quando o tio Antero e os compadres voltaram do acampamento de pescaria que fizeram lá pelas bandas de Abelardo Luz. Voltaram galopando muito descontentes e sem nenhum peixe no bornal. Logo apearam, chamaram os vizinhos e contaram a história muito verídica que tinha acontecido com eles naquele final de semana.
“Quando nós chegamos nos matos do Abelardo, já era de tardezinha, quase noitinha, eu ia por último na fila e Juvencio por primeiro, porque nós estava armados. Eu ia por último na fila quando senti uma mão que me segurava pelo queixo me desequilibrando do cavalo, quase me fazendo cair. Não chamei os outros pois achei que não fosse nada e porque não tinha caído do cavalo.
Escureceu bem depressa e mais adiante aquela mão me pegou no queixo de novo, e se não sou rápido caía do cavalo. Mas fui forte e segui de perto o Ataíde que tava na minha frente. Controlei o cavalo que tinha se assustado e seguimos adiante até chegarmos ao acampamento. Os lampião estavam acesos e só precisava descarregar as sacolas para a gente ir pescar. Quando desceu a noite e tudo ficou preto, sem nenhuma estrela no céu, fomos para o rio com os lampião, as garrucha e os bornal. Minhoca e gafanhoto tinha bastante na beirada do barranco. Já tava lá o Nilson, com as vara e os anzol.
Preparei tudo, e entrei no rio com a vara e o lampião. Joguei o anzol muitas vezes e todas as vezes voltou vazio. Nunca tinha acontecido um troço desses porque é de noite que os peixes vem comer no anzol e lá tinha muito peixe.
Joguei de novo e o anzol pegou um peixão grande, preto e muito pesado. Mas não arrebentou a linha. Consegui puxar aquele bitelão um pouco para fora e como era preto taquei o lampião perto para alumiá e sabem o que era?
Pesquei um padre Jesuíta e quase perdi o lampião no susto.
Sim, um padre Jesuíta, que me disse que o nome dele era Bernardo de Armenta e que tinha participado numa expedição de um tal de Alonso Cabrera há muitos, mas muitos anos atrás. E nós, então, nos reunimos ao redor do padre Jesuíta, sem ter coragem de tirar o homem da água e escutamos o que ele dizia, que era para nós desenterrar um tesouro que estava enterrado debaixo de uma bracatinga próxima de nosso acampamento e ao redor tinha muito pé de marcela, acharíamos como certo pois não tinha mais pés de marcela por lá a não ser aqueles.
Perguntamos ao padre Jesuíta porque não tinha desenterrado ele mesmo o tesouro, ao que me respondeu que já estava morto há muito, e perguntamos porque escolheu a gente ao que respondeu que não aparecia gentes por lá e que nós tinha que desenterrar o tesouro e usar ele como bem aprouvesse, e perguntamos também porque não tinha falado antes, ao que respondeu que tinha me puxado no cavalo várias vezes naquela tardinha e eu não tinha entendido.
Eu já tava cansado de segurar o homem no anzol e quando fomos fazer mais perguntas ele tirou o anzol do capuz e entrou na água de novo sumindo de nossas vista.
Ficamos um bom tempo olhando um para a cara do outro. E sem dizer uma palavra recolhemos as varas de pescar, os lampião, os bornal e fomos à cata da dita bracatinga com marcela.
Encontramos.
Tivemos que buscar pá e pedaço de pau e tudo de pontudo que pudesse ajudar na escavação. Fomos tudo junto para que nenhum sozinho desenterrasse o tesouro.
Voltamos, começamos a cavar e encontramos o tesouro.
Era uma baita duma panela, cheia de moeda de ouro que chegava a reluzir na luz do lampião. Só que toda a vez que a gente tirava a panela do buraco, uma força muito grande, descomunal até, trazia a panela de volta para o buraco.
Tentamos de tudo, corda, rampa, cavalo e nada da panela sair de lá.
Resolvemos fechar o buraco e voltar para casa, pois nós já estava a três dias luitando com a panela, sem comer nem beber um gole de água.
Com as força do desconhecido nós não conseguimos luitar.”
Ninguém conseguiu dormir naquela noite, só pensando no ouro enterrado. Inclusive o padre Dilso veio dar uma benção nos pescadores com medo que eles pudessem ter trazido alguma coisa ruim com eles. Mas não tinham trazido coisa ruim não, porque por um golpe de sorte o tio Antero herdou de um parente muito distante e desconhecido uma baita fazenda no Mato Grosso, e que precisava de um mês inteirinho para conhecer toda a terra da fazenda e cheio de boi e vaca em cima, ele ficou rico de uma hora para outra e nós muito felizes.
E o ouro está lá enterrado ainda, debaixo das marcelas e da bracatinga.



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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O Causo da Dona Lucia


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem por essas bandas.

A Dona Lucia era conhecida na comunidade pela sua beleza deveras extasiante, tinha os cabelos pretos, lisos e compridos caindo pela cintura e que balançavam ao menor movimento da cabeça. Não tinha namorado e nem queria um “porque ainda estava no ovo o galo que iria tirar ela de casa”.
O pai de Dona Lucia não aguentava mais despachar os candidatos mediante a negativa da moça, até que foram espaçando os pedidos de namoro, casamento e, pasmem, até de ajuntamento por um moço casado de Faxinal. Foi a gota d’água que faltava para que se fechasse de vez o coração da bela Lucia.
Numa tarde de julho, voltando da mercearia, Dona Lucia sentiu uma soneira dos diabos e correu de volta para casa para dormir um tico, pois tinha seus afazeres e não costumava deixar a mãe sozinha na luta doméstica. Chegou em casa, deitou na cama e dormiu.
Quando foi a noitinha o pai deu pela falta da menina, perguntou e chamou para que ela fosse à mesa jantar. “Tá dormindo, a coitada” disse a mãe toda prestimosa. “Deve ter se cansado, deixe dormir, se ela sentir fome ela come depois”. Jantaram os pais e os oito irmãos todos varões. A mãe ficou lidando com a louça na cozinha e reclamando que o sabão estava no fim.
Na manhã do dia seguinte, com a geada cobrindo tudo, foram se levantando um a um, mas nada da Dona Lucia acordar. Quando chegou a hora de tirar o leite das vacas e tratar as galinhas, a Dona Lucia ainda estava dormindo e mesmo depois de muitos chacoalhões ela continuava em seu sono. A mãe começou a ficar assustada e a gritar convulsivamente.
“Ela está morta?” pediram.
“Não, veja, ela tá quentinha da silva”, disse a mãe entre soluços.
“E porque ela não acorda?”, disse o quinto irmão.
“Deve estar com algum mal”, o pai intercedeu. “Vou chamar o protético”.
“Chame um médico, homem, o que vai fazer aqui um protético?” disse a mãe.
“O médico não vem mais nesse mês”, disse o primeiro filho varão.
A mãe angustiada resolveu esperar o protético e até que ele não chegasse, resolveu chamar as benzedeiras que chegaram rápido e em conluio e muito cochicho chegaram à conclusão que o mal da Dona Lucia, benzedeira nenhuma curava. Fizeram uma corrente, acenderam algumas velas e entregaram nas mãos do protético, dando graças que assim, os maridos não teriam mais a quem olhar a não serem elas mesmas.
O protético chegou e começou o exame. Mal ousou abrir o botão do casaco para auscultar-lhe o peito com os ouvidos e enfim diagnosticou: “Está morta, mas esperem até amanhã que o corpo estará frio para enterrá-la” e virando para o pai choroso disse: “São duas galinhas, senhor”.
O padre Dimas, que chegou em seguida, não acreditava no que via e perguntou então há quanto tempo ela estava daquele jeito. “Cinco dias hoje, seu padre, e não esfria.” O padre resolveu dar um fim naquele invelório e mandou chamar o barbeiro para buscar a moça, não sem antes dar a extrema unção.
Então veio o dia que a Dona Lucia seria enterrada. O povo fez fila para dar o último adeus e tocar em suas mãos para sentir se ela já tinha esfriado.
Dona Lucia estava quente, como viva, como uma morta viva.
O povo então saiu da casa para comer os assados que a mãe tinha feito e tomar o vinho do vizinho, até que o barbeiro dava os retoques finais na morta e dar início ao féretro.
O caixão baixando na terra foi a visão mais triste que se teve notícia desde então e quando encostou na terra fria e gelada ouviu-se um “toc toc”. Todo mundo empalideceu e emudeceu e alguém lá no fim da fila desmaiou.
“Toc Toc”
“Toc Toc”
O coveiro agitado e nervoso já estava subindo e se agarrando pela terra do buraco.
“Abre aí”, disse o pai do alto do buraco.
“Eu não abro, não senhor”, disse o coveiro patinando no buraco e se agarrando nas pernas das pessoas que estavam na beirada para escutar melhor.
“Toc toc”
“Pois eu abro” disse o pai se enchendo de coragem e esperança de que a filha estivesse ainda viva dentro do caixão. A maioria já tinha escapado do cemitério. As beatas ficaram abanando o rosto da mãe que desfaleceria a qualquer momento.
Quando o pai e os oito irmãos conseguiram abrir o esquife, foi uma exclamação generalizada. O que estava no caixão era um amontoado de roupas, pedras e objetos de peso, mas nada da morta. E o “toc toc” continuava, até que por fim descobriram que o autor das batidas era o marceneiro que morava em frente ao cemitério. A mãe e as beatas acabaram por desmaiar e o pai desolado jazia de ataque cardíaco; não aguentou o tranco e por fim usou o ataúde da filha para seu próprio e a confusão de coisas e sentimentos levou o prefeito a decretar luto civil por três dias. Até o governador veio para a Campina para dar o desaparecimento por verídico.
Depois de muitos anos enfim, soube-se a verdade quando o barbeiro morreu. Ele já estava na casa dos sessenta anos e há muito doente de sífilis. Encontraram o corpo dele estendido na cama, nu.
Ao lado dele um caixão com tampa de vidro e a Dona Lucia dentro, em perfeito estado de conservação, também nua e ainda quente.



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terça-feira, 21 de agosto de 2012

O Causo do Coronel Cesario


Por Michele Calliari Marchese

Aos oriundos do Oeste Bravio de Santa Catarina

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem por essas bandas.


Aconteceu no inverno. O inverno mais frio de que se tinha notícia, tinha geada todo dia e que durava o dia todo; para pegar água no rio tinha que levar o martelo junto para quebrar a crosta de gelo que se formava em cima. A roupa lavada ficava dura em cima das pedras, e já as lavadeiras não iam mais lavar as roupas porque se quebravam todas com o frio. Tiveram que guardar os bichos dentro dos galpões e fechar as portas porque senão morriam todos congelados. O que não tinha era ovelha.  Já tinham usado todas para confeccionar as botas e roupas para suportarem o inverno rigoroso e a gordura para animarem o fogo do fogão e dos ferros de passar. Quase ninguém saía de casa.
Só o Laudemir.
Laudemir era chofer de caminhão, o único fenemê da região, orgulho dele. Carregava a madeira que era tirada e levava até o Rio Uruguai para seguirem de balsa até a Argentina. Para fazer o caminhão pegar, ele já estacionava dentro do galpão, e depois acendia uma fogueira próxima para esquentar e não deixar o óleo congelar. Quando pegava, deixava uns bons minutos ligado e carregava a cabine com cobertores de pena de ganso para por em cima das pernas.
Já estava na metade do caminho, entre a Campina e o Rio Uruguai quando se deparou com um velório. Era uma exéquia muito triste de se ver, todos estavam de luto e lamentavam muito a morte do morto, proferindo orações e rezando o terço, devia ter perto de umas cem pessoas seguindo o caixão. Um padre encabeçava o féretro, dando sequencia à esposa, aos filhos varões e as filhas. Depois umas gentes ora simples, ora de posses. E estava muito frio.
Laudemir já estava atrás do enterro umas duas horas, e não passava uma viva alma por ali, até que resolveu ver onde é que ficava o cemitério e quem sabe, levar o morto para aliviar a carga dos quatro carregadores. Informaram que ainda tinha mais ou menos uns três quilômetros para caminharem e se ele estava mesmo disposto a levar o esquife, seria um alívio. Foi o que ele fez. Amarrou o caixão junto com as toras, bem amarradinho e ainda deu carona para a viúva, que, muito triste, preferia não falar. Parecia não sentir o frio, por causa decerto de tanta tristeza. Colocou os cobertores nas pernas dela e seguiu em frente.
Soube que o morto se chamava Coronel Cesario Soares Lopes da Silva e que tinha morrido dos males do coração. Tinha lutado muitas batalhas e fora condecorado com muitas medalhas do império. Era um homem muito bom e todos o queriam muito bem. Mas que, no leito de morte, tinha exigido ser enterrado junto com os índios, lá no meio do mato. E é para lá que estavam indo.
Laudemir teve que sair da estrada geral e entrar no meio da mata, e andou até onde que foi possível andar de caminhão. Quando não pode mais seguir adiante, o enterro seguiu mata adentro, a pé. Laudemir deu as condolências e pêsames para as pessoas que ajudaram a tirar o Coronel de cima das toras e voltou para a estrada.
Estava impressionado.
Quando chegou ao Rio Uruguai, os amigos perguntaram como tinha sido a viagem e Laudemir contou o que tinha acontecido.
Todos ficaram muito interessados até que um senhor já de idade que estava passando por ali ouviu sobre o Coronel e disse: “Sinhô, esse coroné já morreu há muitos e muitos anos, eu inda era bacuri e sempre escuito que algum chofer acompanha o enterro até o meio dos mato. O coroné tá enterrado no sumitério da Campina das Cascavé, deferente do que tinha pedido na morte, e eu acho que é por isso que o coroné qué que continuem a enterrar ele lá com os índio. Vai lá vê.”
Foi o que Laudemir fez quando voltou para casa. Não precisou andar muito para encontrar a tumba do coronel e ao lado da foto dele, uma foto muito velha e gasta da viúva, coberta pela geada intermitente. Além do arrepio que não passava e do suor gelado que corria pela testa e ali ficava, percebeu que a esposa havia morrido dez anos antes do marido, justamente aquela a quem dera carona para enterrar o marido.
Algum tempo depois o governador do Estado resolveu por bem fechar a estrada geral, pois tinha passado um susto muito grande quando de visita ao Coronel Bormann em Xapecó. Ninguém nunca soube o que tinha acontecido.
Só o Laudemir.




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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O Causo da Ritinha


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem por essas bandas.


Aconteceu na quaresma, e todo mundo sabe que durante a quaresma o diabo anda solto por aí arrebatando almas para o inferno e é prudente que não se saia de casa nesse período que é dedicado às orações. O padre Dimas vinha falando nisso todo dia durante a novena.
Só que o pessoal lá do interior do Pesqueiro se atrapalhou com as datas e promoveu um baile para o dia 18 de março – bem na quaresma. O baile ia ser dedicado ao carnaval que eles não sabiam bem certo em que data já tinha caído ou que iria cair e demorava muito alguém disposto ir até a igreja da cidade para saber do calendário das festas. De qualquer forma resolveram pedir para a Ritinha escrever uma carta ao padre, solicitando a presença para uma missa e para o baile. Mandaram a carta seguir com a carroça do leite, tudo bem explicadinho e tinha que entregar a missiva na mão do padre e esperar a resposta.
O carroceiro guardou a carta no bolso, calçou os tamancos e subiu na carroça, olhou para trás para ver se a esposa estava olhando e parou na casa da dona Amália, que subiu às pressas com um véu cobrindo o rosto. A mulher do carroceiro que espiava pela janela, viu tudo. Correu na casa do compadre e pediu ajuda para ir atrás do marido dali uns quinze minutos, que, calculou ela, era o tempo para encostar a carroça em algum mato e pegar os dois com a boca na botija.
Dito e feito.
Naquela semana houve muitos rumores, inclusive na cidade, de que o carroceiro havia sofrido um acidente e perdido todo o leite da entrega. Da dona Amália não se soube muita coisa, só que havia fugido do marido e se encontrava em lugar incerto.
Acontece que a carta se perdeu no entrevero e todo mundo esqueceu da dita, preparando a capela para a missa e o galpão para o baile. Os músicos ensaiavam as marchinhas e as mulheres faziam galinha assada para ser servida depois da missa. Foi escolhido o melhor vinho da vizinhança e os barris foram sendo transportados para o galpão. As mocinhas casadoiras passaram o dia penteando e perfumando os cabelos, lustrando tamancos e costurando as saias. Era um dia muito feliz e o único que não participaria era o carroceiro, devido ao seu delicado estado de saúde.
Quando chegou perto do horário da missa, a capelinha ficou lotada e nada do padre Dimas aparecer. Depois de duas horas, o povo resolveu desistir da missa, pois devia ter acontecido alguma coisa para o padre não aparecer. Mas o que importava mesmo era o baile. Um primor de beleza naquele galpão todo colorido com os músicos dando os acordes iniciais para o começo do Baile de Carnaval.
Era quaresma, não esqueçam.
Depois de muita música, vinho e comilança, apareceu no baile um rapaz muito lindo, vestido com o que havia de novidade na capital – assim pensavam as mocinhas – uma elegância sem tamanho. “Deve estar perdido, o coitado”, disse a Ritinha com os olhos grudados no moço. Seus olhares não passaram despercebidos pelo rapaz, que logo a tirou para dançar.
Ritinha estava atordoada. “Eu! Ele me escolheu!” pensava ela sem pedir nada para o dançarino que tampouco falou alguma coisa. Rodopiaram, beberam, dançaram, suaram. Ritinha era a mais feliz de todas.
A mulher do carroceiro foi quem percebeu o cheiro de enxofre, cutucando as comadres a fazerem cochichos. Tanto falaram que começaram a fazer as contas. “Peraí”, disse uma, “que vou buscar as minhas tabelinhas lá em casa”.
Quando voltou, pálida e esbaforida, contou às demais que nas contas dela e das tabelinhas, aquele período era de quaresma e que, portanto, o cheiro do enxofre era do belzebu. Para ligarem o cheiro ao moçoilo elegante foi um estalar de dedos e a balbúrdia teve início.
Homens, mulheres e crianças correram para suas casas a rezar e acender velas na capelinha; foi uma confusão dos diabos, já que o próprio estava por lá.
“Mas e cadê a Ritinha?” Lembrou alguém.
A Ritinha tinha sumido.
“E o rapaz, quero dizer, o demo?” Lembrou outro.
O rapaz - quero dizer - o demo, também tinha sumido.
Demorou quase um mês, até a sexta-feira santa, para que os homens fossem ao galpão fazer as averiguações e lá, além da bagunça da escapada em massa, encontraram o piso de madeira queimado no formato de patas de bode, o cheiro do enxofre que ainda persistia e o sumiço da Ritinha.
Cruz Credo.


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